Crédito: Gustavo Morita
Dois anos após o início da elaboração de sua primeira versão, a Base Nacional Comum Curricular para a educação infantil e o ensino fundamental foi aprovada e homologada em dezembro de 2017. O texto final do documento que servirá como referência para os currículos de todas as redes de ensino do país, porém, dividiu opiniões de especialistas e educadores.
Entre as questões polêmicas e que têm gerado discussão aparecem a antecipação da meta de alfabetização para o segundo ano do ensino fundamental, além da inclusão do ensino religioso no texto final do documento, com a indicação de objetos de conhecimento e habilidades.
A revista
Educação conversou com Daniel Cara, educador e coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que acompanhou o processo de elaboração e discussão da Base. Na entrevista, Cara opinou sobre a forma como a BNCC foi concebida e comentou os pontos de discordância do documento.
Para o educador, a inclusão do ensino religioso no texto final, por exemplo, aliada à recente decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que permitiu o ensino confessional nas escolas públicas, é um retrocesso. “A sociedade brasileira é diversa e o caminho trilhado pelo STF e pelo CNE deve sobrepor a matriz cristã, especialmente a católica, sobre as demais. Isso, inclusive, fere gravemente o princípio da liberdade religiosa”, avalia.
A Base Nacional Comum Curricular para a educação infantil e o ensino fundamental foi aprovada em dezembro pelo CNE. Qual a sua avaliação sobre o processo de construção e aprovação do documento?
A BNCC é uma demanda da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. A BNCC do ensino fundamental e do ensino médio foi agendada no Plano Nacional de Educação para junho de 2016. O objetivo de qualquer instrumento curricular é orientar o trabalho do professor, fazer com que a educadora ou o educador supere a dependência do livro didático, dar mais autonomia de trabalho para ele ou para ela realizar o processo de ensino-aprendizagem com os alunos, pois o aprendizado é um trabalho conjunto entre o educador e o educando, com participação decisiva da família e do conjunto dos profissionais da escola.
No Brasil os instrumentos curriculares também precisam vencer as determinações geradas pelo uso abusivo das avaliações de larga escala, pois aqui elas ganharam tamanha prevalência que se tornaram quase sinônimo de política educacional, o que por si só é um contrassenso – a avaliação é uma etapa final, que serve para analisar e reorganizar o trabalho pedagógico, mas não pode ser o principal esforço das escolas públicas e privadas de ensino.
Considerando tudo isso, a BNCC aprovada pelo Conselho Nacional de Educação em dezembro de 2017 saiu atrasada para o ensino fundamental, prejudica a concepção de educação infantil mais avançada e sequer tratou do ensino médio, recentemente deformado pelo governo Temer. E pior: cedeu aos setores fundamentalistas das igrejas cristãs por pressão do próprio Ministério da Educação, ainda que constrangida. Enfim, foi uma derrota para a educação, pois o que prevaleceu não foi o pensamento pedagógico, mas um conjunto de posições que ignoram a didática e a melhor produção científica na educação. Além disso tudo, a participação social foi inflada em 8.440% segundo estudo produzido pela Universidade Federal do ABC, liderado pelo professor Fernando Cássio.
Quais serão os maiores desafios para a implementação da BNCC?
A adesão dos professores e dos formadores de professores. Há uma articulação entre MEC, parte significativa da direção do Consed [Conselho Nacional de Secretários de Educação], parte significativa da direção da Undime [União dos Dirigentes Municipais de Educação] e um grupo de fundações empresariais, liderado pela Fundação Lemann, que está trabalhando para tirar a BNCC do papel. A Fundação Lemann segue sendo inspirada pela experiência curricular do
common core estadunidense – uma espécie de BNCC de lá. No início vai parecer que a base curricular será implementada em todo o Brasil, as organizações de gestores realizarão eventos bem estruturados, os organismos internacionais apoiarão, bem como veículos de imprensa. Haverá uma forte injeção de recursos financeiros para construir esse clima de que a BNCC é uma espécie de fio condutor da política educacional.
Mas depois vem o dia a dia da educação, a realidade crua das escolas e das redes públicas – algo que não se modifica por um simples instrumento curricular, muito menos por um instrumento curricular ruim como é o caso da BNCC recém-aprovada. Nos EUA, o
common core está naufragando. Nova York já o abandonou, em um movimento equivalente ao abandono da remuneração por resultados em 2011, conhecida aqui como remuneração por mérito dos professores, algo que comprovadamente não funciona. Nova York é um lugar curioso: é uma cidade pioneira na adesão aos modismos educacionais, mas também é a primeira a abandoná-los, quando eles não dão certo.
Um dos pontos da Base que mais gerou discussão foi a antecipação da meta de alfabetização do 3º para o 2º ano do ensino fundamental. Quais as implicações dessa mudança? Ela é positiva ou negativa?
Em primeiro lugar, não existe idade certa para alfabetizar. A alfabetização, pedagogicamente, deve seguir o ritmo da criança. Não há qualquer estudo que indique que uma criança alfabetizada mais cedo será mais bem-sucedida do que uma criança alfabetizada mais tarde – pelo contrário. O que se sabe, na verdade, é que forçar a alfabetização é ruim. Porém, considerando a educação um direito, o Estado precisa organizar uma política universal e precisa determinar referências. O Plano Nacional de Educação foi sábio: alfabetizar a criança até os oito anos de idade ou até o terceiro ano do ensino fundamental. O Brasil é um país diverso, a oferta de educação infantil está aquém do necessário, as famílias têm desafios específicos, há uma forte diversidade regional e a política educacional precisa ser pensada globalmente: uma boa política de Educação de Jovens e Adultos, com a alfabetização ou retomada dos estudos dos pais e avós, por exemplo, impacta decisiva e positivamente a alfabetização de crianças. O PNE acertou, em um processo coerente com o conjunto da lei, pois o PNE precisa ser implementado integralmente para dar certo. Adiantar a alfabetização para os sete anos vai gerar uma pressão desnecessária sobre educadores e crianças, sem dar a eles escolas adequadas à realização do processo de ensino-aprendizagem. Ou seja, mais uma vez, ignoraram a pedagogia.
O ensino religioso, que havia sido retirado do documento na terceira versão, foi reincluído. Apesar de seguir optativo para os alunos, ganhou diretrizes com relação ao que deve ser ensinado do 1º ao 9º ano, com a indicação de objetos de conhecimento e habilidades. O que significa oferecer esses parâmetros para o ensino religioso no documento? Na sua visão, isso deveria ocorrer?
O CNE não precisava incluir o ensino religioso na BNCC. Mas quis incluir. O motivo, embora muitos conselheiros insistam em buscar inúmeros argumentos para justificar o injustificável, é obedecer à base parlamentar de Michel Temer, que se reuniu com o MEC para determinar essa inclusão do ensino religioso, bem como para excluir identidade de gênero e orientação sexual da BNCC. Foram as três conselheiras que votaram contra a BNCC, os demais cederam à pressão. O resultado é que a educação brasileira, oficialmente, abre espaço para o enfraquecimento da já frágil laicidade do Estado Nacional. É frustrante observar o quanto estamos regredindo como sociedade. Estamos imersos no obscurantismo, com agressões a obras artísticas, museus, aos educadores e à educação. O STF errou em sua decisão sobre ensino religioso, a Corte, por mais Suprema que seja, é falível. Contudo, um erro não justifica o outro. E a decisão do STF foi tomada como um salvo conduto para os conselheiros do CNE agradarem aos setores mais retrógrados da sociedade, que apoiam Michel Temer.
O CNE estabeleceu, via parecer, que deverá ser realizada uma deliberação em comissão específica para definir se o ensino religioso será tratado como área do conhecimento ou como componente curricular em ciências humanas no ensino fundamental. Na prática, qual a diferença entre os dois tratamentos?
Área do conhecimento é muito grave, pois exige estruturar um conteúdo completo de ensino. Componente curricular, em tese, é mais ameno, pois está submetido ao conjunto das Ciências Humanas. Contudo, na prática, a diferença tende a ser pequena. Um município gerido por um religioso que não é imbuído de espírito público e não obedece à Lei, por exemplo, seja ensino religioso área ou componente, terá agora espaço para fazer proselitismo de sua religião. Para ficar mais claro para o leitor, a porteira para o proselitismo religioso está aberta e legitimada pelo CNE.
Hoje, como o ensino religioso é tratado nas escolas da rede pública? Há muitas diferenças entre os sistemas de ensino?
Hoje é absolutamente facultativo, na prática – em escala nacional – quase inexiste. É de decisão autônoma de cada sistema público de ensino. Defendo que a questão religiosa tenha espaço nas escolas, como um tema, como parte da cultura, como um elemento da vida social. Deve ser discutida, sem amarras e, especialmente, com criticidade. Porém, é equivocado ensinar uma religião nas escolas, apresentar um conjunto de dogmas e uma moral. A sociedade brasileira é diversa e o caminho trilhado pelo STF e pelo CNE deve sobrepor a matriz cristã, especialmente a católica, sobre as demais. Isso, inclusive, fere gravemente o princípio da liberdade religiosa.
Em setembro, o STF permitiu que as escolas públicas ofereçam ensino religioso confessional – o que vai na contramão do que é apontado na Base e na LDB. O que essas definições contrastantes podem gerar?
O STF errou, mas mesmo com a BNCC aprovada ainda há margem de manobra para não mergulharmos no obscurantismo e no proselitismo religioso. Os sistemas de ensino possuem muitos instrumentos de determinação da política educacional, podem encontrar caminhos de bom senso. Porém, isso não deve frear uma onda de desrespeito às matrizes religiosas não cristãs. E creio que os neopentecostais não perceberam o todo, embora tenham lutado muito em favor do ensino religioso no STF e no CNE. O caminho trilhado pela BNCC, após a decisão do STF, vai beneficiar essencialmente a Igreja Católica, que embora esteja perdendo fiéis, é de longe a mais estruturada. Aliás, nunca é ocioso lembrar, a estrutura da Igreja Católica é milenar, ela sabe lidar com as intempéries da história e com o rumo dos acontecimentos.
Os temas relacionados a orientação sexual e identidade de gênero foram retirados do documento, e devem ganhar orientações específicas do CNE posteriormente. Como o senhor avalia a retirada desses pontos da Base e a previsão de uma orientação a ser oferecida depois?
Foi uma inversão. Quem deveria receber orientações posteriores, com o devido debate e cuidado, deveria ser o ensino religioso. Mas ele foi incorporado em prazo recorde. A questão da identidade de gênero e da orientação sexual é central nas escolas brasileiras, especialmente porque trata do respeito à identidade dos alunos, profissionais e familiares. A religião, como eu disse, deve ser respeitada nas escolas, não promovida. Ou seja, independentemente da BNCC, deve ser ensinado o respeito às religiões, bem como à orientação sexual e a identidade de gênero. Contudo, infelizmente, a opção do CNE foi promover religião nas escolas, mas não tratar, de forma respeitosa, das questões de gênero e orientação sexual. Em termos da promoção de valores humanos, a educação está enfraquecida com a BNCC aprovada sob o governo Temer.
A despeito dos pontos polêmicos, de maneira geral, como o senhor avalia o documento? Quais são os pontos positivos?
Não vejo pontos positivos, honestamente. E para formar minha posição procurei fazer uma reflexão simples. Estudo, na minha pesquisa de doutorado, diversos pensadores da educação. Entre os brasileiros, me detenho mais em Anísio Teixeira, Paulo Freire, Celso Beisiegel, Maria Helena Souza Patto e Vitor Henrique Paro – que é meu orientador. Com base nas minhas leituras e no estudo dos melhores interpretadores desses autores, me pergunto: o que eles pensariam sobre a BNCC de Michel Temer? Com absoluta certeza, diriam que se trata de uma proposta medíocre, limitada a uma visão arcaica de instrução em detrimento a concepção plena de educação. Aprendi com Paulo Freire que a educação deve emancipar a mulher e o homem. Para Anísio Teixeira, ela deve ser um caminho para felicidade. A BNCC sequer se preocupa com isso.
Quais os principais desafios que os profissionais de educação vão enfrentar em 2018, um ano em que a agenda eleitoral vai dominar os debates? Como o senhor avalia a celeridade com que questões centrais da pauta educacional vêm sido deliberados na atual gestão do MEC?
Não é a atual gestão do MEC que é apressada. É todo o governo Temer. Eles têm até dezembro de 2018 para implementar uma agenda regressiva ultraliberal e ultraconservadora, que desconstrói o estado de bem-estar social desenhado pela Constituição Federal de 1988, que sequer foi implementada. Nenhum governo eleito pelo voto será capaz de tomar medidas tão impopulares e tão equivocadas quanto esse governo. E se trata de um governo coerente, pois o ensino médio foi deformado para atender a um mercado de trabalho desregulamentado pela reforma trabalhista, que desfigurou os direitos trabalhistas. Do mesmo modo, a BNCC é a política educacional que cabe abaixo do teto dos gastos públicos federais, que impedirá investimentos novos na educação por quase 20 anos.