NOTÍCIA

Edição 240

Diretor vira o jogo em escola ao dialogar e conseguir envolvimento de alunos e professores

André Luís Barroso, um dos personagens retratados no documentário Nunca me sonharam, deu entrevista exclusiva à Revista Educação

Publicado em 20/06/2017

por Rubem Barros

Diretor muda o jogo em sua escola ao dialogar e conseguir envolvimento de alunos e professores

André Barroso: esforço para aproximar a direção dos “atores da educação”, os professores e alunos (Crédito: Gustavo Morita)

Acreditar na potência do ser humano e abrir canais de diálogo, para que a realidade e as necessidades de professores e alunos sejam contempladas no dia a dia da escola. Munido dessas ideias, o carioca André Luis Barroso, hoje com 48 anos, assumiu em 2015 a direção da escola estadual José de Souza Marques, em Brás de Pina, zona norte do Rio de Janeiro.
Sua crença no ser humano se baseia em sua própria história: André diz que foi um aluno ruim, que não conseguia se concentrar nas aulas. Demorou a achar um rumo. Mas procurou bastante. Filho de cozinheiro e dona de casa, foi técnico eletricista, fez seis anos de seminário, cursou dois anos de teologia. Até que entrou no curso de filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Formou-se e foi dar aulas, primeiro em colégios particulares, depois no estado, onde passou em concurso público.
Três anos atrás, passou em outro concurso, para diretor. Pouco tempo depois de chegar à escola onde está, viveu o episódio que relata no documentário Nunca me sonharam, lançado em junho no Rio e em São Paulo. Nele, conta que reuniu os alunos até então tidos como os mais problemáticos da escola, convidou-os a representar o colégio num jogo de futebol e, depois de perderem e se mostrarem decepcionados, chamou-os para, a partir de então, formarem um time de verdade. Conquistou-os.
Afastado da direção em função de um infarto, Barroso veio a São Paulo para a estreia do filme, quando concedeu a entrevista a seguir.
Qual foi sua preparação para assumir a gestão da escola?
Nenhuma. Exatamente nada. Só a vontade de trabalhar. Depois do concurso, fizemos uma semana de cursinho de gestão. Uma semana para você ver tudo que pode ser a gestão de uma escola pública, desde a prestação de contas até as questões pedagógicas. Certamente, o curso não me preparou. O que ajudou muito foi a minha consciência política, de pensar a educação já havia muito tempo, de já ter feito muitas coisas e ver que a educação do jeito que está não dá para ficar.
Quando era professor você já pensava na gestão?
Sim, pensava em como deve funcionar uma escola, tinha iniciativas nesse sentido. A diretora que me indicou, Tânia Nogueira, de um Ciep onde trabalhei até o ano passado – pois continuei dando aula, agora é que estou com as duas matrículas na direção –, falou: “vai para a direção, você tem todo o perfil de diretor, quer resolver, consertar, o ar parou você quer botar pra funcionar, isso é coisa de quem está preocupado com a gestão, e não simplesmente com a sala de aula”. Aí eu fui e comecei a tocar.
Do ponto de vista desse olhar mais sistêmico, o que você achava, como professor, que estava mais emperrado, que era o principal problema?
O principal problema da educação brasileira era e continua sendo a distância entre as esferas de direção, seja a direção da escola com o professor, a direção da escola com a direção da regional e com a secretaria de Educação, e com as políticas de educação em geral. Elas não estão próximas. Você tem de resolver coisas, e a secretaria da Educação não te dá suporte. O professor fica na sala de aula, e o diretor nem lá vai, que se dane. “Isso é problema seu, você tem de controlar esses alunos aí, não tenho nada que ver com isso”. Só vai lá pra te falar que o aluno está fora da sala de aula e você tem de controlar. Isso me incomodava muito, achava que era o grande problema. A grande marca da gestão que temos no nosso colégio é aproximar a comunidade escolar, fazer todo mundo dialogar, fazer uma ciranda onde todo mundo pensa o problema da escola, aponta caminhos para a solução e mete a mão na massa.
Qual foi o ponto de inflexão para sair do cenário anterior e entrar nessa nova atmosfera?
O grande problema hoje para implementar o currículo e as políticas de educação, o que emperra isso, é que nós mesmos, profissionais e a sociedade em geral, falamos que a saída é a educação, mas na prática não acreditamos muito nisso. Na reunião de professores, por exemplo, fala-se: “ah, o cara não quer nada com nada”. Isso acaba sendo uma grande desculpa para você também não fazer nada. “Eu quero dar a minha aula e o cara não quer assistir.” Tem um hiato aí, alguma coisa que não está caminhando bem, pois outros conseguem, ou em algum momento você consegue e o aluno te ouve. Então, acabamos criando uns jargões para não atuar. Temos conseguido avançar em algumas coisas, com limitações, mas a experiência na escola tem sido muito boa, mas ainda tem muito a avançar. E para isso é preciso acreditar mais naquele espaço. Os governos, as secretarias, as direções regionais estão muito preocupados em fazer com que a política pública seja aplicada, seja de que jeito for. Aplica a política, mantém o aluno dentro da sala de aula, sem criar problemas para a secretaria da Educação. Se você fizer isso, tá tudo bem, toca a tua gestão durante 12, 20 anos sem incomodar ninguém. Mas isso não é fazer educação.
Pelo que você está falando, prevalece uma visão burocrática em sua pior acepção, sem o comprometimento do educador que aparece no filme. Quando você busca lidar com os alunos considerados mais problemáticos, e consegue ganhá-los para a escola, fica mais fácil lidar com o todo, não?
Não resta dúvida. O que o professor fala normalmente? “Não me dá aquela turma, não.” Ou “tira essa figura da minha turma”. Trabalhar com o que é fácil, com o que está dando certo, que diferença isso faz? Você está aí para fazer a diferença, ou para fazer o mesmo? Quero fazer a diferença, não dá pra fazer a mesma coisa que já tem muita gente fazendo. O que canso de falar em várias reuniões, que falei quando cheguei na escola? “Eu sou uma fraude! Eu era esse aluno, eu era esse moleque!” Depois que você vira professor, esquece tudo de ruim que fez em sala de aula quando era aluno, que fez bagunça, que desrespeitou os outros. Vira o melhor aluno. Será? Eu não fui o melhor aluno em nada! Eu era ruim. Quando eu falo com as minhas professoras de ensino fundamental – dona Sebastiana, Maria José, Sônia –, elas perguntam: “o André, professor?” “Não, o André não é só professor, não. Fez mestrado, doutorado, agora terminou a especialização em gestão.” Elas começam a chorar! A professora falava para a minha mãe que eu parecia uma borboleta, olhava o quadro, mas não enxergava. Eu era esse moleque. Então, tem jeito. Se eu tive jeito, por que eles não têm jeito?
Qual o perfil sociocultural e econômico da escola que você dirige?
É uma região muito pobre, Brás de Pina, zona norte do Rio de Janeiro. É uma região do Complexo do Alemão, mas bem distante do Morro do Alemão. É uma comunidade muito carente, mas não é uma favela. É uma região neutra, em que recebo alunos de todas as favelas da região, ou seja, podem estudar alunos mesmo que sejam de regiões de facções diferentes [do tráfico de drogas]. Os alunos até falam isso: “aqui eu consigo estudar por que não tem essa coisa de briga de gangues”. Teve um aluno que falei para ele que iria transferi-lo, aí ele me disse: “Vai transferir para onde, professor?”. Falei: “Você já está com 18 anos, vai estudar à noite para você trabalhar, pois você já está há quatro anos no primeiro ano. Vou te transferir para o Jardim América”. E ele: “Tá maluco, professor? Vou morrer!” Perguntei se ele era do tráfico: “Não, professor. Mas eu moro numa região com tráfico e no Jardim América é outro comando. Se nego me vê saindo da Cidade Alta e entrando no Jardim América, não vão querer saber se sou traficante ou não”. Aí você começa a ver quais são os entraves da educação, que vão muito além da sala de aula.
Muito além da escola…
Há caminhos, mas não uma solução única. A primeira coisa é acreditar no que você faz. Se você não acredita, entrega o chapéu ou diz que está ali só passando o tempo, ganhando sua gratificação, sei lá o quê. Mas se entrar na sala de aula e não acreditar que está realmente ensinando alguém, mediando o conhecimento para alguém, melhor sair.
Quais canais de escuta você conseguiu abrir com os alunos? O que eles querem?
Terminei uma especialização em gestão escolar na Federal Fluminense no ano passado, e fui vendo ferramentas com que a gente pode trabalhar. A primeira coisa é que tem de estar ao lado, perto. Não adianta entrar na escola, abrir os cadeados e começar a despachar burocraticamente. É preciso ir pa­ra o pátio, passar de sala em sala, receber os alunos no portão, conversar com os pais.
E o que mais?
No ano passado, fizemos uma pesquisa para saber como os alunos viam a escola. Fiz oito perguntas, eu mesmo criei o questionário, e perguntava coisas como: “O que você acha da tua escola? O espaço escolar é bom, regular, ruim ou péssimo?”. Tenho consciência de que a nossa infraestrutura é muito ruim, não chega nem a regular. E 80% dos alunos falaram que a escola era boa, um bom lugar para estar. “Como vocês são tratados?” Responderam que o tratamento era ótimo, que a direção, os funcionários técnico-administrativos conversam com os alunos. Outra coisa: espaço escolar, qual o que mais gostam? 90% disseram que a biblioteca é o melhor lugar da escola. E a biblioteca nossa é muito mal arrumada, não por culpa de quem administrou antes, mas pelo espaço físico ser ruim. Isso tem a ver com as reuniões de direção e fazer questão de estar na comunidade. Desde a primeira semana que cheguei à escola, antes de começar as aulas, a primeira coisa que fiz foi andar pela comunidade, não tratei nada de burocracia. Comerciantes, padaria ao lado, fui ver o que todo mundo falava da escola. “Ih, essa escola aí tinha de acabar. Moleque pula muro, bebe.” Agora, que fiquei dois, três meses fora depois que enfartei, volto pra saber e o comerciante me fala: “Você tem de voltar, essa escola tá muito melhor. O que você fez?” E eu digo: “Eu só acreditei. E falei pra eles que acreditava neles, que eles podiam”.
E como ficaram os alunos que antes eram mais problemáticos?
Essa coisa da bagunça e do “perigoso” na escola é um marketing, dá Ibope, reúne a galerinha. O que mudou mesmo é que a gente está junto com todo mundo. A norma na escola é que a diversidade é a nossa marca, temos de respeitar isso. Não tem essa de “esse cara não presta”. Tem de ter alguma coisa boa.
O que você fez para ter adesão dos professores?
A escola tem um corpo docente muito bom. Há muito poucas exceções, 85% dos professores estão ali há mais de seis anos. Isso já cria uma pertença, sentem que ali é o lugar deles. Poucos, só quatro, têm regime de 40 horas semanais. Não existe mais dedicação exclusiva no estado, que passou um bom tempo fazendo concurso de 16 horas. Os professores de 40 horas estão quase acabando. Agora começou o concurso de 30 horas para tentar adequar ao novo currículo do ensino médio. A maioria é de professores de 16 horas, alguns com duas matrículas na escola, como uma professora que dá química e matemática. Minha doença agora foi até um laboratório. A equipe toda se uniu e me falaram para ficar tranquilo, que estavam tocando a escola do meu jeito. E disseram: “volta logo, porque você é muito importante pra escola”. E estão segurando. Isso é fruto de gestão.
O que fez a diferença?
Criar uma equipe de gestão, com um diretor e uma equipe diretiva. Eu assino, é a minha matrícula que está ali, mas distribuí funções e poderes. E poder é para ser dado a quem merece ter. A coordenadora pedagógica tem autonomia para trabalhar, e se ela quiser consultar a mim ou à equipe, está todo mundo ali. Isso foi o grande diferencial da gestão.
E as cobranças da secretaria?
É cruel, a parte mais complicada. A burocracia não precisa ser um problema. A coisa está muito ruim há muito tempo, está tão desarrumada que você não sabe por onde começar. É como aquele cara que solta pipa com aquela linha lipasa que tinha antigamente e embolava tanto que era melhor arrebentar e dar um nó. Você fica apagando incêndio, mais preocupado se a sua escola vai aparecer na mídia por um problema como uma tampa de vaso quebrada, uma lâmpada queimada, do que em cuidar das pessoas. E a secretaria fica o tempo todo evitando que o nome dela apareça nos telejornais. Não adianta, não é assim que vai melhorar. O problema é que não há políticas de estado, só de governo, e isso não é Rio de Janeiro, é o Brasil. Dura quatro anos, se você se reeleger vira mais quatro, mais oito, dezesseis, vinte. Mas as políticas de educação e saúde não podem depender disso, são muito importantes para serem a marca de um governo. Têm de ser a marca da sociedade.
Qual sua opinião sobre a reforma do ensino médio?
É fundamental uma reforma, não tenho dúvida. Pensar partes comuns do currículo, para pensarmos o Brasil, é muito importante. Tem alunos que saem de lá e vão para a Bahia. É importante até na mesma escola, quando o aluno muda do turno da noite para o da manhã. Ou seja, a parte comum tem de acontecer. E a parte diversificada é fundamental também. Minha dúvida é se temos maturidade para aplicar essa parte diversificada. E a forma como a reforma foi feita, na canetada, é muito ruim, pois você continua não olhando para onde as coisas acontecem. A escola funciona no dia a dia, a gente faz coisas interessantes, mas isso não entra na política do governo. O governo não escuta, acha que a política tem de sair da cabeça dele. Temos de acabar com a tecnocracia na educação, ouvir os atores. Isso não é um problema. Só faço diferente porque eu ouço o aluno, o professor. Numa escola construída na década de 1960, que nunca teve uma reforma, não tem ar-condicionado, que de fevereiro a maio, mais ou menos, tem dias de 45, 50 graus à tarde, como você quer que o cara preste atenção na aula? Aí o professor diz: “hoje não dá, temos de diminuir o tempo, dar uma parada”. Você tem de ouvir e ponderar. Quando não se escutam os principais atores da educação – e os alunos são o motivo de a escola funcionar – você acaba fazendo coisas que não vão atender à diversidade que a gente tem num estado ou num município. No Rio de Janeiro, você tem uma realidade em Acari, a dez minutos da minha escola, que é completamente diferente da que tenho ali. Tenho alunos excelentes, dedicados, com condições de chegar em casa e ter um lugar pra estudar, e outros que certamente moram em barraco. Como você atende tudo isso sem pensar a partir deles? A minha crítica à reforma é essa: mais uma vez algo vindo de cima para você aplicar. Como é que vai agendar isso com as escolas, secretarias, municípios?
E a infraestrutura?
É outro problema. Minha escola não tem infraestrutura para ter uma grade de 1.400 horas anuais. Você precisa de sala e professor para isso. Minha escola não pode ser período integral. Ou, para ser integral, preciso pensar um ensino noturno diferenciado. O aluno que estuda lá de manhã trabalha à tarde. E tem de levar esses R$ 900 pra casa. Esse cara não vai ficar numa escola integral.
O tráfico chega dentro da escola?
Esse é um dos dois grandes diferenciais da escola. O primeiro é que tenho um grupo de professores fantástico, comprometido com a escola. E o fato de estar numa zona neutra, sem nenhuma influencia de tráfico de drogas.

Autor

Rubem Barros


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