NOTÍCIA
Pesquisas mostram que diversas nações omitem informações sobre o Holocausto em seus currículos. Instituições buscam manter viva a história do genocídio
Alunos árabes e israelenses no Museu do Holocausto, em Jerusalém: diversos países não ensinam sobre o genocídio |
Há 70 anos, Auschwitz, o maior campo de concentração construído durante o domínio nazista, era liberado do poder alemão. À medida que os soldados das tropas aliadas entravam nesses espaços, descobriam não apenas sobreviventes, mas pilhas e mais pilhas de cadáveres, além de ossos e cinzas de seres humanos. Junto com a libertação dos prisioneiros chegavam os primeiros relatos sobre o que haviam visto e vivido naqueles espaços, trazendo à tona uma das maiores barbáries do século 20 e, certamente, a mais bem documentada. Sob o comando de Adolf Hitler, o exército alemão criara as câmaras de gás, uma das mais eficientes máquinas de aniquilação em massa já vistaS. Por meio delas, matou milhões de pessoas, boa parte judeus, sob a justificativa de preservar uma suposta “raça superior ariana”. À medida que foram feitos cálculos e as dimensões do genocídio tornaram-se conhecidas, o mundo percebeu que aquela história deveria ficar para sempre na memória coletiva, de modo a evitar uma nova tragédia como aquela. Ensinar as novas gerações sobre o horror dos campos de concentração era, certamente, um dos principais caminhos para a história não se repetir.
Sete décadas depois, porém, parece que a promessa de tornar eterna a lembrança daquele trágico período está ameaçada pelo tempo. Um estudo publicado recentemente pela Unesco mostrou que em alguns países o Holocausto sequer faz parte do currículo escolar. Nessa lista estão Egito, Palestina, Nova Zelândia, Iraque e Tailândia. Em outros, o genocídio é tratado de forma generalizada, sem precisar os países envolvidos e o real impacto do conflito – um exemplo nessa linha são as diretrizes japonesas para a educação. Mesmo onde o Holocausto é tema obrigatório, como é o caso do Reino Unido, uma parcela considerável dos estudantes parece não estar muito atenta à tragédia humana passada nos campos de concentração durante o regime nazista.
Um estudo com mais de oito mil alunos da secondary school (equivalente ao ensino médio brasileiro) feito pela organização britânica Centro para a Educação sobre o Holocausto mostrou que uma parcela considerável dos estudantes errou feio nos cálculos dos judeus mortos durante o período. Enquanto as estimativas giram em torno de cinco a seis milhões de judeus assassinados nos campos de concentração, um a cada três estudantes afirmou que o número não passava dos dois milhões. Quando perguntados sobre o que era antissemitismo, apenas um terço soube explicar satisfatoriamente o conceito. “O Holocausto foi um ato praticado por humanos e precisamos entendê-lo. Quanto melhor o compreendermos, melhor poderemos prevenir que ele ocorra novamente. Por isso precisamos continuar ensinando sobre o Holocausto, porque um dia não haverá mais sobreviventes vivos dessa tragédia e ela não pode ser esquecida”, diz Ben Helfgott, sobrevivente dos campos de concentração e consultor no Centro para a Educação sobre o Holocausto.
De acordo com uma surpreendente pesquisa feita em 2013 pelo Museu Memorial do Holocausto, em Whashington, o regime nazista matou entre 15 milhões e 20 milhões de pessoas, um número bem superior ao anteriormente calculado. Seja em câmaras de gás, em campos de trabalho forçado ou por meio de armas, os alvos incluíam ciganos, negros, pessoas com deficiência, homossexuais, testemunhas de Jeová, eslavos (em especial poloneses), sindicalistas e opositores políticos dentro da própria Alemanha. Todos eles estavam sujeitos ao encarceramento e à morte durante o governo de Hitler, obcecado pela ideia de uma raça ariana “pura”.
Quando Hitler é pop
Um componente desafiador para a memória é que o passar dos anos, ao que parece, vem sendo benéfico para Hitler e seus aliados. É o que defende o historiador Graviel Rosenfeld, especialista em nazismo e Holocausto e que recentemente lançou o livro Hi Hitler!: How the Nazi Past Is Being Normalized in Contemporary Culture (Hi Hitler!: Como o passado nazista tem sido normalizado pela cultura contemporânea, em tradução livre). Para ele, desde a virada do milênio há uma explosão de novos modos para se referir ao nazismo, reduzindo o horror protagonizado por esse regime. “Qualquer um que faça uma busca na internet por “Hitler” vai encontrar uma enxurrada de representações humorísticas: gatos que se ”parecem” com Hitler, uma infinidade de utensílios que ”parecem” Hitler, jogos, memes, vídeos e paródias no You Tube”, exemplifica o historiador. A grande questão, fala o especialista, é saber qual será o efeito dessas abundantes versões de Hitler sobre as novas gerações, que estarão acostumadas com sua imagem como uma figura trivial e da qual se deve rir.
Rosenfeld lembra que sátiras ao caricato líder alemão eram comuns fora da Alemanha enquanto ele estava no poder. O próprio Charles Chaplin, na década de 40, inspirou-se em Hitler no filme O grande ditador. Porém, àquela época ninguém ainda suspeitava da extensão e da singularidade dos crimes cometidos pelo regime nazista. Apenas quando os prisioneiros dos campos de concentração foram liberados e puderam dar sua versão dos fatos é que o mundo percebeu a gravidade do que havia se passado na Alemanha de Hitler. Isso fez com que o próprio Chaplin, em sua autobiografia, reconhecesse que não haveria filmado O grande ditador se soubesse o que eram os campos de concentração.
“O fato de atualmente tanta gente estar disposta a fazer graça com o nazismo mostra que as pessoas estão se sentindo menos obrigadas a tratar o Terceiro Reich como um período de exceção e estão começando a vê-lo como um outro período histórico qualquer”, diz Rosenfeld. “Em uma era de crescente antissemitismo, isso pode ser visto por meio da proliferação de comparações não acuradas entre os nazistas e o Estado de Israel, que frequentemente é atacado como se fora responsável por feitos equivalentes àqueles do Holocausto”, diz o especialista.
Memória universal
Quando o assunto é o esforço para se lembrar da tragédia perpetrada pelos campos de concentração, uma organização precisa ser lembrada: a Aliança Internacional para a Memória sobre o Holocausto (International Holocaust Remembrance Alliance ou IHRA, em inglês). Sediada na capital alemã Berlim, cidade que foi o coração do regime nazista, a instituição articula desde 1988 organizações em todo o mundo que trabalham com o tema. Entre os 31 membros, há apenas uma representação latino-americana: a Argentina e, desde o ano passado, El Salvador e Uruguai participam como observadores. Uma das principais questões sempre colocadas à instituição é a necessidade de ensinar sobre o Holocausto em países sem conexão direta com a Segunda Guerra Mundial – como é o caso do Brasil, que teve
apenas uma breve e tardia participação no conflito, em solo italiano.
Kathrin Meyer, secretária executiva da instituição, afirma que não tem dúvidas sobre a importância de que o tema faça parte dos currículos em todo o mundo. “O Holocausto é um genocídio sem precedentes, que cruzou várias fronteiras nacionais e foi uma das formas mais extremas de genocídio já conhecidas”, diz. Ela lembra a definição dada pela Declaração de Estocolmo, documento assinado em 2000 por organizações de várias partes do globo que se comprometeram a preservar a memória do Holocausto. No texto, o Holocausto é descrito como um evento que mudou fundamentalmente as bases da civilização e que, por seu caráter sem precedentes, possui um significado universal. “O Holocausto não é apenas um evento histórico, mas um divisor de águas no nosso entendimento sobre a capacidade humana, para o bem e para o mal”, considera a secretária. “Essas lições universais são relevantes para todos os países, tenham ou não participado da Segunda Guerra Mundial.”
Em seu site, a organização também afirma que muitos educadores e estudantes questionam por que ensinar e aprender sobre o Holocausto, quando outros crimes contra a humanidade são perpetrados hoje. “O estudo do Holocausto pode auxiliar na nossa obrigação de desenvolver um modelo que destaca os sinais de alerta e os fatores predisponentes para a violência humana e genocídio”, defende o texto.
Testemunhas
Aos 89 anos, Harry Bibring é um dos poucos sobreviventes do Holocausto ainda vivos. Chegou à Inglaterra em 1939, trazido pelo Kindertransport (transporte para as crianças, em tradução livre), uma operação de resgate montada para levar para o Reino Unido meninos e meninas menores de 17 anos provenientes de territórios tomados pelos nazistas. A operação, que durou de 1938 a 1940, é lembrada em Londres por uma estátua na Estação de Liverpool Street, uma das principais da capital inglesa e por onde chegavam os trens trazendo os pequenos fugitivos de guerra. À época, o governo britânico decidiu conceder visto provisório para essas crianças, desde que alguma organização ou indivíduo se responsabilizasse por arcar com os demais gastos para cuidar dos pequenos enquanto eles não pudessem ser devolvidos a seus pais. Entretanto, assim como aconteceu com Bibring, a maior parte dessas crianças terminou a guerra órfã, perdendo seus familiares nos campos de concentração. Sem família, grande parte permaneceu no Reino Unido, onde reconstruiu suas vidas e, após vários anos, muitos deles começaram a participar de eventos, a grande maioria em escolas, para falar para os alunos sobre os horrores da Segunda Guerra Mundial.
Durante muitas décadas, essas testemunhas tiveram um papel fundamental na educação dos mais jovens em vários países europeus. Hoje, porém, são poucos os que, assim como Bibring, ainda estão entre nós para contar suas histórias, o que tem feito que organizações como a britânica Holocaust Educational Trust (Associação para Educação sobre o Holocausto, em tradução livre), da qual Bibring faz parte, venham buscando novas ferramentas para preservar esses importantes testemunhos. Uma das iniciativas, lançada durante o aniversário de 70 anos da tomada de Auschwitz, é o aplicativo 70 Vozes: Vítimas, perpetradores e expectadores. “Com o passar do tempo não há dúvidas de que haverá cada vez menos sobreviventes entre nós. Por isso, é importante que educadores e estudantes tirem proveito dessa possibilidade onde ela existe”, afirma Kathrin Meyer. E, para aqueles países onde esses testemunhos são escassos, como o Brasil, há sempre a possibilidade de recorrer ao material gravado em outros países. O importante é manter o tema vivo. “Entender o passado ajuda a identificar os sinais de alerta e educar sobre a história do Holocausto é uma maneira de fortalecer moralmente a sociedade civil”, considera Kathrin. Em tempos em que muito se fala sobre guerra contra o terror, a volta do antissemitismo e o anti-islamismo, esses são, certamente, valores importantes de se ter frescos na memória.
Saiba Mais |
A Aliança Internacional para a Memória sobre o Holocausto disponibiliza diretrizes e planos de aula sobre o Holocausto em seu site. Grande parte do material está disponível em português: http://bit.ly/1GvwB4T |