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Educação no Mundo

O nome é ditadura

Passaram-se 40 anos do golpe de Estado no Chile, mas o uso do termo "ditadura" nos livros didáticos ainda gera intenso debate no país

Publicado em 28/02/2014

por Victor Farinelli, de Santiago

O nome é ditadura

 

Corbis
Imagem de 1978 mostra manifestação contra desaparecidos da ditadura Pinochet

Nos livros de história ao redor do mundo, o período em que o general Augusto Pinochet esteve à frente da presidência do Chile, entre 1973 e 1990, é apresentado como um dos momentos mais dramáticos do país. Segundo a Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura, o total de vítimas do regime, entre executados, desaparecidos e torturados, supera os 40 mil. Nas estimativas extraoficiais, fala-se em mais de cem mil. Mas, até recentemente, as crianças chilenas nem ouviam falar na palavra ditadura. Censurado até então, o uso do termo no material escolar provoca intensa discussão.

O debate remonta a janeiro de 2012, quando a questão se transformou em uma intensa disputa entre acadêmicos de direita e de esquerda, que volta e meia apresenta uma nova reviravolta. As duas mais recentes aconteceram no final de 2013, e começaram justamente na semana em que o golpe de Estado chileno – ocorrido no dia 11 de setembro de 1973 – completou 40 anos.

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Dois dias antes da data, o Conselho Nacional de Educação do Chile (CNED), um órgão assessor do Ministério da Educação cujos membros são indicados pelo presidente da República, divulgou uma resolução na qual determinava que os livros de história do ensino básico e médio deveriam chamar o período como “ditadura”. A medida foi comemorada por organizações de direitos humanos e considerada relevante pelo contexto em que foi anunciada.

Porém, três meses se passaram e, em dezembro, o mesmo organismo divulgou nova resolução, na qual jogava por terra o que dizia a anterior, e aceitava também o uso de termos como “regime militar” ou “governo militar” – diversidade já aceita atualmente. A decisão gerou protestos de entidades como a Associação de Familiares de Desaparecidos pela Ditadura (AFDD), que alegou haver uma espécie de golpe para reverter o anunciado em setembro. “A primeira resolução foi aprovada numa votação onde participaram todos os conselheiros, mas essa nova foi votada por um número reduzido de representantes, pois que alguns já se encontravam de férias, e curiosamente os que votaram contra na primeira vez estavam todos presentes”, reclama a jornalista Gabriela Zúñiga, assessora de imprensa da AFDD.

Segundo o comunicado que acompanhou a nova resolução, o CNED considerou que “a utilização de diferentes termos para denominar o período não altera o caráter autoritário que caracterizou o governo ao qual se refere, e esse aspecto é bastante abordado no conteúdo autorizado para os livros de ensino médio e dos dois últimos anos da educação básica”.

Uma das integrantes do CNED, a historiadora Carmen Norambuena, afirmou que “a resolução que encontramos não busca esconder a verdade do que foi o governo de Pinochet, mas sim permitir outras formas de interpretação, desde que essas não ignorem fatos históricos inquestionáveis, como o uso da força para a tomada do poder, as violações aos direitos humanos e o caráter totalitário do regime”.

Uma briga política
Não é a primeira vez que o Chile se vê diante de uma polêmica a respeito de como abordar esse tenso episódio de sua história, e a primeira vez aconteceu há dois anos, também durante o governo do conservador Sebastián Piñera – em cuja base partidária estão muitos ex-colaboradores civis da ditadura e alguns reconhecidos teóricos pinochetistas. Em janeiro de 2012, por exemplo, o mesmo CNED aprovou uma resolução que era justamente o inverso da que foi aprovada no último setembro: estabelecia o termo “regime militar” para classificar o governo de Pinochet, “porque era o mais adequado, pensando em um consenso definitivo diante das diferentes visões que existem sobre sua natureza”, segundo alegado pelo organismo à época.

O então ministro de Educação, Harald Beyer, justificou a mudança dizendo que “as grades curriculares são conteúdos mínimos basea­dos em princípios fundamentais. Depois, dentro da sala de aula, cada professor tem autonomia para usar o termo que quiser, inclusive ´ditadura´ se achar o mais adequado”. Uma das funções do CNED é aprovar recomendações sobre tendências a serem seguidas pelos conteúdos dos livros publicados pelas editoras públicas e privadas (ambos os sistemas são usados na rede pública de ensino).

Porém, a forte pressão vinda de dentro e de fora do país – sobretudo depois de uma reportagem, em um meio local, mostrando que o governo de Piñera havia indicado um ex-militar para integrar e presidir o CNED – levou Beyer e o Conselho a retrocederem. Em fevereiro de 2012, uma nova resolução permitia o uso de diferentes termos para denominar o período. Portanto, o caso ocorrido entre setembro e dezembro de 2013 foi uma espécie de déjà vu às avessas.

Em todo caso, aquele discurso de Beyer fez escola. A ministra de Educação, Carolina S­chmidt, disse que “o importante é saber que, dentro da sala de aula, os professores utilizem a liberdade de ensino para convidar os alunos a um debate independentemente das visões ideológicas sobre essa história, considerando as diferentes versões, e que daí eles mesmos tirem suas conclusões”.

Leitura ideológica
Algo diferente do recomendado por historiadores como Jorge Pinto Rodríguez, da Universidade do Chile. Vencedor do Prêmio Nacional de História em 2012 e uma das vozes mais respeitadas do país nesse aspecto, ele acredita que por trás do discurso da diversidade de ensino está justamente o contrário do que se apregoa. “A possibilidade de contar qualquer versão sobre o que aconteceu na ditadura não coíbe as leituras ideo­lógicas, pelo contrário, estimula o professor a defender a sua leitura ideológica dos fatos, inclusive passando por cima dos fatos históricos.”

Rodríguez também diz lamentar que a polêmica seja um sintoma da dificuldade da direita chilena em aceitar sua participação em um regime antidemocrático, o que segundo ele é combatida com a negação do caráter desse regime. “Não se trata de coibir os acadêmicos cuja obra justifica o regime de Pinochet, que não são poucos, mas simplesmente entender que essa defesa não pode ignorar os fatos que são oficiais, que estão documentados, que até a ditadura e o próprio ditador teve de admitir em algum momento.”

Fato é que a resolução do CNED, que não tem poder de lei, foi uma das últimas publicadas pelo organismo durante o governo de Piñera. Em março, ele entrega o poder à socialista Michelle Bachelet, que foi presa e torturada durante a ditadura e cujo pai foi um dos militares que tentou resistir ao golpe de 1973, sendo assassinado por isso.

A campanha de Bachelet se baseou, entre outras coisas, na promessa de uma reforma profunda no sistema educacional, que inclui remodelar organismos assessores, como é o caso do Conselho.

Perda de tempo
Em outros países que viveram ditaduras no mesmo período não acontecem polêmicas semelhantes, embora existam diferenças em como os respectivos regimes são relatados. Na Argentina, as escolas da rede pública retratam de forma bastante profunda o período da última ditadura do país (entre 1976 e 1983, desde os últimos anos do ensino fundamental. Algo semelhante acontece no Uruguai, cuja ditadura aconteceu entre 1973 e 1985.

No Brasil, não existem reco­men­­da­ções específicas sobre co­mo tra­tar do tema. O professor Jo­sé Ro­berto Feliciano dá aulas de história na rede pública, na cidade de Santos, desde os anos 80. Seus primeiros anos de sala de aula coincidiram com os últimos anos do regime militar instalado no Brasil em 1964. “A ditadura impôs sua versão da história nas escolas de maneira informal”, explica Feliciano.

A historiadora Juliana Dias, que leciona na rede pública estadual do Rio de Janeiro, acredita que atualmente, apesar de não haver censura, falta estímulo aos professores. “A ditadura brasileira não é um tema proibido, mas tampouco é incentivado”, reflete.

Ela lembra casos de reclamações contra os professores que tentam “politizar demais as aulas”. “Sempre tem os comentários sobre que aprofundar demais sobre certos temas é absurdo, ou é ‘perda de tempo’ ”, exemplifica.

Autor

Victor Farinelli, de Santiago


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