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Educação no Mundo

Com a batuta, a Venezuela

Escolas de Brasília adotam modelo de educação musical baseado em sistema venezuelano que, a depender da presidente Dilma Rousseff, deve se tornar política nacional

Publicado em 02/08/2013

por Fabiana Lopes

Com a batuta,  a Venezuela

Corbis
Aluna do Sistema Nacional de Orquestras, moradora de uma das muitas favelas dos arredores de Caracas, na Venezuela

Na Venezuela, a cena é comum: diariamente, milhares de crianças com idade a partir de 2 anos deixam suas casas no contraturno escolar e se dirigem aos chamados núcleos. Lá, passam de três a quatro horas por dia, até seis dias por semana, imersas no aprendizado de instrumentos musicais e na preparação para a participação em conjuntos orquestrais. A rotina faz parte do famoso “El Sistema”, criado há 38 anos pelo maestro José Antonio Abreu e exportado para 25 países – entre eles, o Brasil, que se prepara para adotar o modelo, agora de maneira sistematizada e com investimento do Estado, nas escolas públicas do Distrito Federal.

A partir do segundo semestre deste ano, 16 escolas de Ceilândia e oito de São Sebastião (cidades satélites do DF) oferecerão aulas de musicalização para todos os alunos e de prática de instrumentos de sopro e cordas para 300 estudantes. Tudo acontecerá em horário extraclasse, sob a batuta de músicos da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro e da Escola de Música de Brasília.
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É só o começo. O projeto Brasília Musical será implantado em todo o distrito com base no decreto nº 34.267, publicado em 9 de abril no Diário Oficial do Distrito Federal, que torna obrigatória a formação musical complementar na rede pública de ensino do Distrito Federal. O governo federal tem interesse em usar a iniciativa como campo de testes para uma possível transformação do projeto em política nacional – e, para isso, conta com o apoio explícito da presidente Dilma Rousseff.

Metodologia
As aulas de musicalização, obrigatórias, serão ministradas até o 5º ano do ensino fundamental e preveem atividades de percepção, canto orfeônico, prática coral e percepção rítmica, incluindo instrumentos como pífaro e flauta doce. Já a prática instrumental é opcional e será oferecida a alunos do 3º ano do ensino fundamental até o 3º ano do ensino médio – serão aulas coletivas e individuais (por níveis), de percepção, teoria musical, história da música e prática de conjunto, com ensaios para desenvolvimento de repertório. “O foco será a música clássica, mas também buscaremos explorar o repertório brasileiro”, conta Claudio Cohen, maestro titular e diretor artístico do Teatro Nacional Claudio Santoro, que também está à frente da direção artística da iniciativa na capital federal.

A metodologia de ensino por trás do Brasília Musical é totalmente inspirada no El Sistema, mas também considera a experiência do projeto Música nas escolas de Barra Mansa (RJ), implantado pelo regente Vantoil de Souza, um dos profissionais à frente da iniciativa do Distrito Federal. As aulas de musicalização, a exemplo do que ocorre na Venezuela, serão baseadas no método Orff, que busca desenvolver a percepção rítmica e melódica dos alunos por meio de elementos atrativos para o universo infantil – cantar, rimar, dançar, bater palmas e usar objetos para obter sons, de maneira que seja possível ouvir e fazer música de acordo com a capacidade individual.

Nas aulas de prática instrumental, a proposta é que os monitores, professores e gerentes de grupo especializados garantam a formação de instrumentistas de alto desempenho – o maestro José Antonio Abreu se comprometeu formalmente a dispor pessoal e materiais didáticos para auxiliar na capacitação dos profissionais. “Estamos dispostos a oferecer todo o apoio pedagógico ao projeto de Brasília, a ajudar na formação de monitores e professores para que todos trabalhem em torno de um mesmo método, que permita o ensino de um instrumento em pouco tempo”, afirma Alejandro Orellana, venezuelano oriundo do El Sistema responsável por intermediar a transferência de conhecimento entre os dois países. Foi ele quem deu início à articulação que conseguiu apoio austríaco para a iniciativa – a Embaixada da Áustria firmou um acordo de colaboração que prevê a troca de experiências dos profissionais brasileiros com músicos de conservatórios e universidades do país europeu.

Tudo para que o ensino oferecido no Brasília Musical seja de alto nível. “O objetivo é preparar o aluno para vivenciar a música não como um passatempo, mas de modo que permita o direcionamento vocacional para a música. Queremos evitar que os jovens tenham muito tempo ocioso e, ao mesmo tempo, oferecer uma formação de nível elevado que auxilie o desenvolvimento intelectual desses jovens”, afirma o maestro Vantoil de Souza. A expectativa é formar, até o fim de 2014, 11 orquestras sinfônicas e uma orquestra juvenil com os melhores alunos do projeto.

Ao contrário do que ocorre na Venezuela, que tem núcleos exclusivos e independentes do El Sistema, o projeto Brasília Musical estará inserido na própria estrutura da Educação Básica. Apesar de acontecerem no contraturno, todas as aulas serão oferecidas dentro das escolas, que abrigarão instrumentos, mobiliário e material didático específicos para a prática musical. A proposta é formar polos de instrumentos – em Ceilândia e São Sebastião, de início serão dois de sopro e percussão, e mais dois de cordas. Essas estruturas darão origem a orquestras, bandas sinfônicas e grupos de percussão.

“Vamos usar a estrutura já existente e garantir que haja espaços específicos para essa formação. Estamos antecipando a base para a educação de tempo integral nas escolas públicas”, diz Souza.

Resultados
Além da contribuição social do projeto, a expectativa é que haja impactos reais na qualidade da Educação Básica, especialmente com a redução da evasão escolar, do aumento do índice de frequência e do desenvolvimento intelectual dos alunos. A experiência do El Sistema traz números animadores. Cerca de 70% dos alunos do El Sistema são de famílias consideradas abaixo da linha da pobreza – destes, 63% têm bons ou excelentes resultados escolares, com desempenhos significativos em quesitos como pontualidade (95%), responsabilidade (95%) e disciplina (86%). Entre os participantes do programa, a frequência em sala de aula chega a 95,5%, em comparação a 87,6% da população não participante. A taxa de evasão escolar é surpreendentemente reduzida: 6,9%, em comparação com 26,4% do público não participante.

No Brasil, o projeto Música nas escolas de Barra Mansa já atinge 72 escolas da rede municipal de ensino do município carioca. Lá, os números de evasão escolar e reprovação estão abaixo de 5%. Iniciativas que têm o El Sistema como base tendem a ser perenes. Exemplo disso é o projeto Neojibá, na Bahia, já com seis anos de funcionamento, e o Instituto Bacarelli, criado em 1996 e até hoje em plena atividade.

Polêmica
Apesar das promessas do projeto Brasília Musical, a iniciativa gerou polêmica no meio acadêmico. Entre professores e especialistas em educação musical, o maior questionamento é pela escolha do método.

“É muito complicado importar um método sem levar em consideração o contexto da escola. O El Sistema será aplicado antes que seja possível entrar em contato com os alunos e com a cultura local. Por que esse método e não outros?”, diz Luciana Del Ben, professora do departamento de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (Anppom).

“Hoje temos uma prática de ensino musical mais relativizadora, que acolhe a diversidade musical, cultural e social brasileira. A ideia é construir o conhecimento musical a partir da vivência, com propostas locais. O ideal é uma visão mais sociológica do processo, em que a educação musical acontece na escola, pela escola e para a escola, de acordo com as recomendações da Lei de Diretrizes e Bases. O projeto do Distrito Federal vem de fora para dentro, o que fere o princípio de autonomia das escolas”, afirma.

Para Flavia Candusso, professora do departamento de Música da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a expansão das orquestras do projeto Neojibá é um exemplo de que replicar o sistema venezuelano funciona, sim – mas discorda de sua aplicação em detrimento de outras expressões musicais vivas que raramente recebem o apoio e a atenção necessários.

“E os blocos afro, os grupos de capoeira, samba, choro, hip hop e mil outras possibilidades? Por que escolher orquestra e não considerar os demais? O El Sistema utiliza um método tradicional, que não traz novidades, mas se prenuncia como um monopólio, sem levar em conta a pluralidade de expressões musicais”, conclui.

A Secretaria de Educação do Distrito Federal afirma que a escolha do El Sistema foi feita com base na avaliação foi a de que, com a adoção do ensino integral no estado, o formato venezuelano representaria uma oportunidade para os jovens da capital federal em situação de vulnerabilidade social.

Além disso, afirmou que a prioridade em sala de aula será o ensino da música clássica, por meio da experiência. “Mas não haverá restrição a outras expressões musicais”, afirma Natália de Souza Duarte, assessora da secretaria.

Metodologia permitiu criar orquestra nacional

Concebido e fundado em 1975 pelo professor e músico venezuelano José Antonio Abreu, o El Sistema sistematizou o ensino e a prática individual e coletiva de música por meio de orquestras e corais. Para Abreu, tratava-se da maneira mais eficiente de promover o desenvolvimento humanista de crianças e adolescentes – a experiência coletiva e social traria uma busca constante pela excelência, capaz de proteger e oferecer uma nova perspectiva a crianças em situação de vulnerabilidade social na Venezuela.

A metodologia de ensino criada pelo maestro foi colocada em prática pela primeira vez no interior do país, nas cidades de Maracay e Barquisimeto, e deu origem à primeira Orquestra Sinfônica Nacional Juvenil da Venezuela. Hoje, 38 anos depois, são 450 mil jovens estudando e fazendo música de concerto em 24 estados.

Grandes nomes da música nasceram das salas de aula do El Sistema. Gustavo Dudamel é o mais famoso deles. Aos 32 anos, ele é o regente titular e diretor musical da Orquestra Filarmônica de Los Angeles e  também costuma se apresentar à frente da Orquestra Simón Bolivar, outro fruto do El Sistema, além de ser visto como convidado de formações renomadas em todo o mundo.

Autor

Fabiana Lopes


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