NOTÍCIA

Formação docente

Autor

Ariene Susui

Publicado em 27/06/2025

A educação que forma lideranças indígenas

Em Manaus, Centro Amazônico de Formação Indígena já recebeu mais de 100 lideranças. Após cerca de 10 anos inativo, recentemente acolheu novos cursistas que compartilham seus desafios e propósitos

A repórter Ariene Susui é do povo Wapichana. É jornalista, ativista indígena e mestre em comunicação | A formação para ser líder não é uma tarefa fácil: envolve compromisso, foco e, principalmente, atenção aos ensinamentos. Quando se trata de liderança indígena, o desafio é ainda maior. Foi com esse propósito que o Centro Amazônico de Formação Indígena (CAFI) foi criado, em 2006, em Manaus (AM), pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). O foco é na formação política e técnica.

Surgido como uma resposta ao movimento indígena, o CAFI já formou, desde sua fundação, mais de 100 lideranças amazônicas. Contudo, desde 2011 estava inativo. Em 2022, após um período de inúmeras perdas de líderes, ocasionadas pela Covid-19 e pela saída de um governo anti-indígena, os diálogos começaram a ser retomados para estruturar outra formação, marcando, assim, uma nova fase do CAFI.

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Após diversas conversas de alinhamento com lideranças, a primeira turma pós-retomada foi oficializada. Com a presença de 34 alunos indicados por suas organizações, oriundos dos nove estados da Amazônia que integram a rede da Coiab e da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (UMIAB), os cursistas permaneceram por três meses (da primeira quinzena de fevereiro até maio de 2025) na cidade de Manaus, Amazonas para o Curso de Formação Estratégica para Lideranças Indígenas.

A gerente do CAFI, Gracinha Manchineri, destaca que contou com a contribuição direta das lideranças das organizações estaduais, que ajudaram a traçar os perfis dos indicados, levando em consideração a paridade de gênero. Ainda assim, ela diz que foi desafiador formar essa nova turma.

Essas lideranças também integraram o comitê pedagógico do curso. Inicialmente, eram 30 alunos, mas alguns trouxeram suas esposas, que também passaram a integrar a formação.

formação indígena

Formação indígena aconteceu no CAFI de fevereiro a maio, com 34 cursistas (Foto: Ariene Susui)

Compromisso com as raras oportunidades

“Tivemos três meses muito proveitosos. As lideranças indígenas, mesmo sendo jovens, demonstraram compromisso e responsabilidade, pois sabiam que foram indicadas por uma organização e que precisavam dar retorno a elas. Isso ficou muito claro na relação deles com suas organizações e conosco”, ressalta Gracinha.

O coordenador da Coiab, Toya Manchineri, conta que a ideia inicial do CAFI era criar uma universidade indígena — um sonho que ainda não acabou —, mas que, por ora, o CAFI tem cumprido sua missão de formar quadros para o movimento indígena.

“Vivemos momentos muito difíceis até chegarmos aqui. Se hoje estamos reunidos, é graças a inúmeras lideranças que, no passado, se sentaram e pensaram: ‘Como vamos formar nossos quadros profissionais?’ Daí nasceu a ideia de criar a primeira Universidade Indígena da Amazônia Brasileira. Como o mundo fora dos nossos modos indígenas não é o nosso mundo, não conseguimos concretizar esse projeto por falta de recursos e outros instrumentos, como doutores. Assim nasceu o CAFI, que já formou diversos líderes hoje reconhecidos no movimento indígena. E agora uma nova turma é formada, fruto dessa construção do passado”, compartilhou Toya em sua fala na formatura dos alunos.

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“Tivemos três meses muito proveitosos”, diz a gerente do CAFI, Gracinha Manchineri (Foto: Ariene Susui)

Formação que encoraja

Vinda da Terra Indígena Bacurizinho, da aldeia Piaçaba do Mearim, no município de Grajaú (MA), a jovem Irenilde Guajajara, do povo Guajajara, é estudante de licenciatura em ciências humanas – geografia, pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Centro de Ciências de Grajaú. Cacique de sua aldeia ao lado do pai, ela foi indicada pela Coapima (Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão) para participar dessa formação em Manaus.

Ela conta como foi a logística para chegar à capital amazonense:

“Saí da minha aldeia em 16 de fevereiro, um domingo. Aluguei duas motos: uma para levar minhas malas e outra para eu ir. Peguei uma estrada que dava acesso a uma cidade e, de lá, fui até a rodoviária. Peguei uma van e saí da minha cidade por volta de uma da tarde, rumo a Imperatriz, onde precisei me hospedar. Não consegui encontrar um local, mas conversei com a coordenadora da Coapima e acabei ficando na sede da organização. No dia seguinte, fui de carro até o aeroporto e, finalmente, segui para Manaus”, relata.

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Já em solo manauara, como se referem aos que vivem em Manaus, ela se viu envolvida em uma formação que contribuirá para todo o seu processo como liderança e que a encorajou a falar firmemente junto ao seu povo:

“Eu tinha medo de falar. Mas, ao chegar no CAFI, percebi que, como liderança, eu precisava estar preparada para lutar em defesa do meu povo, ser a voz do meu povo. Essa formação me proporcionou coragem e conhecimento. Ser liderança é estar na linha de frente pelo seu povo, lutar por ele, ser a voz que ecoa e trabalhar pelo coletivo.”

Já Aleixo Wapichana, do povo Wapichana, de 19 anos, foi indicado para a formação pelo Departamento de Juventude do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Oriundo do território Pium, viu na oportunidade uma forma de se fortalecer e seguir contribuindo com o movimento indígena de seu estado.

“Sou fruto da Caravana da Juventude do CIR e, hoje, estou aqui graças a essa indicação, a esse movimento. Estou me fortalecendo para levar à base, ao nosso território, essa trajetória que estamos construindo com outros povos. Apesar da dificuldade de ficar longe de casa, estamos aqui por uma causa maior”, relata Aleixo.

Juventude atenta 

Os jovens representaram a maior parte dos indicados à formação — cerca de 90% do total. Entre eles, também estava a jovem Jucymeire Teixeira Garcia, do povo Tariana, de 20 anos, coordenadora do Departamento de Adolescentes e Jovens Indígenas do Rio Negro, pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). 

Conhecida como Jucy Tariana, é da Terra Indígena Alto Rio Negro, do município de São Gabriel da Cachoeira (AM). Ela conta que nunca havia saído de seu território, muito menos viajado de avião, até ser indicada pela FOIRN. Aceitou o desafio e destaca a importância da presença de mais meninas indígenas em espaços como o CAFI.

“Que nossa juventude esteja sempre disposta a aprender os conhecimentos do movimento indígena, para defender nossos direitos. Que venham mais lideranças indígenas, juvenis, meninas e mulheres, para representar nossas organizações e fazer a diferença enquanto juventude e adolescentes também”, avalia.

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Outro cursista que marcou sua trajetória no CAFI é o jovem Ruwi Manchineri, coordenador da Manxinerune Tsihi Pukte Hajene (MATPHA), do Acre. Ele destaca a necessidade de formar lideranças com visão ampla, tanto interna quanto externa aos territórios. Seu maior desafio foi deixar a família para participar do curso, mas a possibilidade de levar o filho e a esposa tornou sua experiência mais tranquila e significativa.

“É sempre um desafio, como liderança indígena, lidar também com a responsabilidade familiar. Eu fiquei preocupado com minha esposa e, agora, como pai, com meu filho em casa. Tive a honra de trazer os dois comigo. A COIAB, por meio do CAFI, conseguiu enxergar essa necessidade. E não fui o único: outros parentes também trouxeram suas famílias, fortalecendo esse ambiente de formação com um laço familiar”, conta.

Os jovens representaram a maior parte dos indicados à formação — cerca de 90% do total (Foto: Ariene Susui)

Luta diária, aprendizagem diária

A jovem Rayane Suruí, da Terra Indígena Sororó, do povo Suruí Aikewara (PA), veio acompanhando o esposo, também cursista, e trouxe com ela a filha, Coen Louise Suruí.

“Estar nessa formação foi desafiador por estar com minha filha ainda pequena. Nós, como mães, carregamos nossos filhos onde quer que vamos. Sinto-me mais segura com ela ao meu lado, principalmente na luta. Ela está crescendo vendo como não é fácil. Algumas vezes tive vontade de desistir — notícias ruins do nosso território, parentes e amigos falecendo —, mas a gente segurou firme na mão um do outro e disse: não, vamos terminar todos juntos.”

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Apesar da longa trajetória no movimento indígena, o líder Gilson Curuaia, 44 anos, presidente da Associação Indígena Kirinapan, de Altamira (PA), e do conselho fiscal da Coiab, também foi indicado para a formação no CAFI. Ele ressalta que esses meses serviram para qualificar ainda mais seus conhecimentos.

“O CAFI é um instrumento que tem se fortalecido. Ele surgiu no passado com um papel muito audacioso e desafiador. Hoje, está se consolidando e eu não tenho dúvida da importância do CAFI, bem como de sua evolução e crescimento. Futuramente — e não tão distante assim — ele será um instituto ou até mesmo uma universidade, que contribuirá significativamente para os povos e sociedades indígenas da Amazônia e do Brasil”, acredita.

Em 17 de maio, em uma solenidade carregada de emoções, os 34 cursistas concluíram a formação presencial. Todos retornaram aos seus territórios levando consigo uma bagagem rica em conhecimentos. Após essa etapa, o acompanhamento continua, agora de forma remota.

Da vontade de criar uma Universidade Indígena da Amazônia Brasileira, criou-se o CAFI, conta o coordenador da Coiab, Toya Manchineri (Foto: Ariene Susui)

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