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Alexandre Le Voci Sayad

Jornalista, educador e escritor. Mestre em inteligência artificial e ética pela PUC-SP e apresentador do Idade Mídia (Canal Futura)

Publicado em 22/04/2025

A quem ainda interessa a democracia?

Como o primeiro lócus democrático para as crianças, a escola tem de ensiná-la na prática, e também estimular a participação e a cidadania

Na Grécia antiga, Platão e Sócrates se debruçaram sobre essa questão — mas desde o século passado, a pergunta seria impensável para um cidadão de qualquer nação ocidental. Entretanto, com muita naturalidade, o autor e ativista político estadunidense Charlie Kirk disse recentemente em um programa de rádio que a democracia não é uma ‘grande coisa’ da qual ele ‘não é um fã’.

No seu desdém, ele se justificou explicando que, nesse sistema político, ‘51% decidem o que é melhor para 100% da população’. E mais: que a democracia não era um valor dos Estados Unidos, ao contrário, o país deveria viver uma ‘república constitucional’. Essa é a premissa de seu movimento Turning Point USA (ou Ponto de Virada). Em outro depoimento público, dessa vez na rede social X (antigo Twitter), disse acreditar que a democracia então seria o primeiro passo para uma ditadura, pois significava impor a vontade sobre uma ‘minoria’, levando as nações à polarização.

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Por um lado, não é necessário muito esforço intelectual para desmontar sua linha de pensamento, que segue a cartilha da desinformação ao criar uma espécie de neblina conceitual sobre como os conceitos funcionam na prática. A criação de uma falsa dicotomia entre ‘direitos individuais’ e ‘democracia’, no caso, serviu para justificar justamente a retirada de direito das minorias, em nome de uma liberdade de expressão absoluta; a estratégia foi colocar em rota de colisão a democracia e a república que, segundo diversos cientistas políticos ouvidos por revistas como a The Atlantic, são conceitos semelhantes atualmente. Democracia não é apenas sinônimo de voto, mas um processo vivo, em constante aperfeiçoamento na sociedade, nas diversas áreas em que a população define o caminhar da nação.

O que chama a atenção, entretanto, não é apenas a tentativa do conservador Kirk de justificar o desmantelamento do Estado, aqui usado como um exemplo ilustrativo, mas o fato de alguém publicamente cogitar desmerecer e diminuir um regime político que, até há alguns anos, era quase unânime na agenda política dos Estados Unidos, entre republicanos, democratas e até extremistas dos dois lados. Em outras palavras, como alguém pode ‘não ser fã’ da democracia e ainda anunciar isso em um megafone? Em nome dela, países foram à guerra, batalharam em frentes diplomáticas, além de milhares de cidadãos terem ido às ruas reivindicá-la.

O que Kirk nos revela é um sintoma político-social do que vivemos hoje: de maneira geral, a ideia de que o poder deve emanar da vontade popular está enfraquecendo como solução para os problemas do mundo. A democracia parece fatigada e posicionada, por seus inimigos, como um modelo falido. Após as duas grandes guerras, gerações enxergaram a democracia como o único caminho para a liberdade e justiça social — palavras que soavam no passado como um pleonasmo para o ‘bem-estar’. Quem nasce hoje talvez não enxergue isso como o melhor caminho a se viver em paz e seguro.

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Há uma evidente sede de perpetuação de poder por parte de regimes autodenominados socialistas como o de Nicolás Maduro, na Venezuela, que se comporta como que se adulterar um resultado de eleição seria, no fundo, um mal necessário que o governo faz à população. Cada vez mais, o flerte como o autoritarismo também emerge dos países de tradição democrática (ao menos das fronteiras para dentro), impulsionado pela força do capital privado, como um saudosismo de tempos de glória e soberania.

Esse é o caso dos Estados Unidos. Trump acena para forçar um improvável terceiro mandato, ameaçando alterar leis centenárias. Tudo em nome da volta de uma América imponente — longe de imigrantes, pobreza, controle social e qualquer outra opinião que não seja a do governo.

As estratégias para tanto passam por minar a imprensa livre, a educação pública e a pesquisa acadêmica — contudo, o prório Kirk faz caravana por universidades e escolas. A tática começa pela formação de ciclos de desinformação, com a criação de notícias falaciosas ou imprecisas, fortalecidas pela descredibilização da imprensa. Em nome da preservação da ordem, o cerco à liberdade de outras opiniões e visões inicia-se com o banimento de termos, conceitos e até iniciativas de pesquisadores de universidades, além da proibição de livros e ações de representatividade em instituições de ensino e empresas. Afinal, a visão dominante e o governo não podem ser maculados, em nome do progresso e da segurança nacional. A democracia torna-se assunto para ser debatido em um segundo momento, quando ‘tudo estiver em seu devido lugar’.

 

democracia

Democracia não é apenas sinônimo de voto, mas um processo vivo, em constante aperfeiçoamento na sociedade, nas diversas áreas em que a população define o caminhar da nação (Foto: Shutterstock)

Escola e democracia

Qual seria o papel da escola em um mundo em que a democracia está deixando de ser atraente? Estimulá-la na prática e desbancar a teoria de que ela causa mais divisão. Como o primeiro lócus democrático para as crianças, John Dewey, ainda no século passado, trouxe princípios importantes para que educadores possam estimular a participação e a cidadania dentro do ambiente escolar. 

Atualmente, isso pode ser traduzido na forma de estímulo à liberdade de expressão, práticas de jornalismo — e checagem de notícias —, na atuação do grêmio estudantil, ou mesmo na criação cultural pungente. A escola pública brasileira deve ser laica e universal e para isso não existe mágica, mas práticas já previstas em documentos como a Base Nacional Comum Curricular estimulam a participação da escola como um núcleo vivo da comunidade. Essa é uma questão emergencial.

Há crime, mas, para o otimismo geral, há castigo. Nações que sofreram nas mãos de presidentes eleitos democraticamente, mas que agiram como ditadores, estão acertando as contas com o passado. Nas Filipinas, em que Rodrigo Duterte comandou um grupo de assassinato em massa, hoje responde, sob custódia, ao Tribunal de Haia. O tema é urgente e a oportunidade é para que educadores mostrem que a democracia é complexa, muitas vezes difícil e imperfeita, mas um caminho que vale a pena ser percorrido. Ela deve interessar a todos, em último caso, por questões de dignidade e sobrevivência.

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