NOTÍCIA

Políticas Públicas

Autor

Luciana Alvarez

Publicado em 28/02/2025

Celular na escola: popularização do smartphone coincide com queda global na aprendizagem

Mundialmente, a aprendizagem dos alunos vêm caindo desde 2012, época que precede a pandemia e coincide com a expansão desse dispositivo

A antiga promessa de que a tecnologia digital revolucionaria a educação foi virada do avesso. Hoje, gestores e gestoras educacionais e até governantes de diferentes países prometem às famílias reverter o uso excessivo das telas pelas crianças e adolescentes. Em especial, é claro, fala-se do grande vilão: o celular, acoplado, claro, à internet. Mas o refluxo digital tem se mostrado um processo complexo, pois a tecnologia está entremeada nas rotinas de todos. É preciso reduzir sem alienar, cortar sem impor. Ainda estão em construção os caminhos para equilibrar o acesso ao digital na mesma medida em que se preparam as próximas gerações para um futuro inevitavelmente mais tecnológico que os dias atuais.

Um bom ponto de partida é que estamos praticamente todos na mesma página. Uma pesquisa de opinião da Nexus de novembro do ano passado mostrou que 86% dos brasileiros são a favor de algum tipo de restrição ao uso de celular dentro das escolas. Segundo o levantamento, 54% são favoráveis à proibição total dos aparelhos e 32% acreditam que o uso do celular deva ser permitido em atividades didáticas e pedagógicas, mediante autorização prévia dos professores. Mais do que um certo consenso nacional, o tema vem criando um movimento aparentemente global, pois a regulação de usos de dispositivos é uma questão discutida atualmente também em vários outros países, como Austrália e Finlândia.

Não se trata apenas de opinião; há evidências de que o uso excessivo do celular prejudica a saúde e o desempenho acadêmico dos estudantes. Globalmente, as aprendizagens dos estudantes medidas pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), realizado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), vêm caindo desde 2012, uma época que precede a pandemia de Covid-19 e coincide com a popularização dos dispositivos portáteis. No intervalo de 10 anos, de 2012 a 2022, a porcentagem de alunos que alcançaram o nível mínimo de proficiência em leitura caiu 12 pontos percentuais.

 

celular

Há evidências de que o uso excessivo do celular prejudica a saúde e o desempenho acadêmico dos estudantes (Foto: Shutterstock)

————————————————

Leia também

Proibição dos aparelhos celulares não pode impedir a inserção da tecnologia nas aulas

Desafios e oportunidades da lei que proíbe o uso de celulares nas escolas

————————————————

Rodrigo Bressan, médico e presidente da ONG Ame sua Mente, instituição que atua com formações para educadores sobre essa temática, não tem dúvidas de que os dispositivos digitais são prejudiciais. Ele conta que, ao fazer check-up de saúde mental, tem visto uma situação repetidamente: as famílias dizem que o filho usa o celular três horas por dia, o filho diz que são quatro, mas na contagem dá seis — e dessas seis horas a maior parte é em redes sociais. “Muitas vezes, o filho usa de madrugada e o pai nem sabe. Esse uso noturno está diretamente relacionado ao atencional, ou seja, cai a atenção no dia seguinte”, conta o psiquiatra.

O celular prejudica o sono, e a falta de sono prejudica o aprendizado. Mas não é só pela falta de horas de sono: na disputa pela atenção, os conteúdos da escola acabam perdendo numa disputa ‘desleal’, segundo o médico. “A gente não foi codificado geneticamente para ficar 50 minutos parados numa aula, ou sentar e ler, mas isso é um aprendizado cultural. Se há uma alternativa à mão, como ficar vendo piada, ou sucesso do seu post ou o que quer comprar, não dá para a escola competir com esse tipo de estímulo”, explica ele.

O presidente da Ame sua Mente lembra que não se trata de um problema das elites ou de certos grupos. A grande epidemia de distração é democrática, sem fazer distinção entre lado político ou classe social. “A quantidade de moleque com acesso a celular é maior do que água potável no país. Acredito que em conjunto, como sociedade, conseguiremos tirar as telas das crianças — o que será muito saudável”, garante.

————————————————

Leia também

Educação libertadora na prática com Gina Vieira Ponte

Educação cidadã precisa de prática e sentido

————————————————

Em meio a tantos déficits e desigualdades, incluindo as desigualdades de acesso a tecnologias, o importante é não demonizar os aparelhos que, para muitos, podem ser a única porta de entrada no mundo digital. “O celular não foi feito para fins pedagógicos. No entanto, se eles forem utilizados para fins pedagógicos, podem ser uma ferramenta bastante importante. Neste sentido, precisamos fazer com que o setor de educação e os professores se apropriem das tecnologias para poder utilizá-las nas salas de aula para fins pedagógicos. O que define se teremos mais vantagens ou desvantagens no uso de celulares por estudante é como ele é utilizado”, afirma Rebeca Otero, coordenadora do setor de educação da Unesco no Brasil.

O relatório de 2023 da Unesco, Monitoramento global da educação, tem como tema A tecnologia na educação: uma ferramenta a serviço de quem?,e aponta, por exemplo, que estudantes com deficiência foram grandes beneficiados por aplicações inclusivas em aparelhos portáteis, assim como professores que hoje possuem materiais didáticos de qualidade graças ao acesso à internet. Como muitas escolas não estão devidamente conectadas, celulares e chips próprios acabam sendo sim ferramentas educacionais. 

O cerne do problema é que, na maioria dos casos, os celulares não são usados com objetivos educacionais. Mesmo em países desenvolvidos, o estudo da Unesco aponta que só 10% dos adolescentes de 15 anos usam o celular para estudar ciências ou matemática por mais de uma hora por semana. Mais uma vez, ganha força a ideia de que é preciso afastar os aparelhos da escola, a menos que ele seja para situações bem específicas e determinadas pelos professores.

No país, a cidade do Rio de Janeiro assumiu a dianteira ao criar a lei que proíbe o uso de celular dentro das escolas da rede desde março do ano passado. No primeiro semestre de experiência, 38% das escolas informaram ao governo local estar com dificuldades de implementar a medida. Porém, dados divulgados pela secretaria em outubro indicaram que os resultados positivos da medida são quase imediatos; em só meio ano letivo, as chances de alunos do 9º ano alcançarem o nível adequado de aprendizado em matemática aumentaram 53% nas escolas que conseguiram de fato proibir os aparelhos.

 

celular

Rebeca Otero, da Unesco Brasil: como o celular é utilizado pelo estudante é que define as vantagens e desvantagens (Foto: Edson Fogaça)

————————————————

Leia também

Direção escolar: um turbilhão também passou por aqui

Recreio sem celular na escola ganha mais brincadeiras analógicas

————————————————

Na sequência, o estado de São Paulo promulgou uma lei semelhante, que passa a valer no início do ano letivo de 2025. Em nível nacional, a lei proposta pelo Ministério da Educação (MEC) foi sancionada em 13 de janeiro deste ano pelo presidente Lula, e inclui a proibição do dispositivo até nos intervalos, com algumas exceções, por exemplo, fins pedagógicos e o uso a estudantes que necessitam de acessibilidade. Com as decisões tomadas às vésperas do início do ano letivo, é difícil prever quando se tornará realidade nas salas Brasil afora.

De qualquer maneira, as leis trazem respaldo a uma tendência crescente nas escolas. O levantamento TIC Educação apontou que, entre 2020 e 2023, a proporção de escolas dos anos finais do ensino fundamental com proibições ao uso de celulares subiu de 10% para 21%. Contudo, no ensino médio, com alunos adolescentes e com mais autonomia, a porcentagem se manteve na casa dos 8%.

A etapa pode até ser mais desafiadora, mas há exemplos de que é possível tirar o celular do ambiente escolar com sucesso. No Colégio Marista João Paulo II, em Brasília, os esforços anticelular começaram com os 6º e 7º anos, mas no ano passado a proibição já foi ampliada até o final do ensino médio. “A gente não queria proibir, mas entendemos que a exposição prolongada prejudica o desenvolvimento e, nessas idades, mesmo que você combine uma regra, é difícil para eles cumprirem. Alguns até conseguem, mas não todos”, explica a vice-diretora, Luciana Winck.

Depois de muita conversa e conscientização, os celulares nesse colégio estão proibidos quase o tempo todo, com exceção de um intervalo de 15 minutos no qual é liberado. A solução prática foi criar armários com nichos com os nomes dos alunos e, na chamada da primeira aula, cada um deposita seu aparelho no local. A regra é a mesma até para os professores. Os docentes também foram preparados para a mudança. “Tivemos de nos preparar porque alguns poderiam manifestar ansiedade, frustração, tínhamos de saber como acolhê-los, mas isso aconteceu num número bem menor do que imaginamos”, relata a educadora.

————————————————

Leia também

A educação como resistência à barbárie: reflexões a partir da visão de Bernard Charlot

————————————————

Outra surpresa, segundo Luciana, foi que grande parte dos estudantes não pega o celular mesmo durante o intervalo em que têm permissão. Ela reconhece que, fora da escola, muitos dos seus estudantes vão voltar a se grudar às telas, mas vê como positivo o período que passam sem elas. “Ainda estamos monitorando se houve evolução acadêmica. Porém, está claro que há um ganho de convivência muito importante. Um afastamento ainda que momentâneo das telas traz um maior equilíbrio”, afirma.

Mas, para que haja algum equilíbrio verdadeiro, as famílias e a sociedade de forma geral devem contribuir nesse esforço. Crianças e adolescentes precisam ler, estudar e conviver no mundo real também quando estão fora da escola. Contudo, em um país desigual e injusto como o Brasil, em que muitas famílias tentam a sobrevivência, essa consciência ainda é negada.

Por sentir a necessidade de afastamento dos dispositivos também nos tempos livres, Adriana Reischtul, mãe de duas meninas de cinco e oito anos, entrou para o Movimento Desconecta, que propõe às famílias um compromisso de não dar smartphones antes dos 14 anos e não deixar os filhos terem redes sociais antes dos 16 anos. Só que os excessos digitais vão além disso. “Nas idades das minhas filhas, o celular ainda não é tanto o problema, mas muitas crianças já usam o tablet direto”, conta ela.

Por mais que seja capaz de controlar os usos dentro da sua casa, Adriana acredita que um pacto coletivo traz mais resultado. “Se cada um fizer sua parte, a pressão social para usar, para não ficar de fora, que hoje é um grande problema, diminuirá”, defende. Ela apresentou a ideia do Desconecta na escola das filhas e logo recebeu muito apoio, mas, ainda assim, sente que os desafios são imensos. “A gente promove eventos de conscientização na escola, mas são sempre as mesmas famílias que aparecem. Sinto que estamos pregando para os já convertidos”, relata.

————————————————

Leia também

Entre traços e tecnologias, o poder da escrita manual

————————————————

Sem esperar por um compromisso das famílias, em novembro de 2024, a Austrália proibiu que crianças e adolescentes com menos de 16 anos tenham contas em redes sociais. Para muitos especialistas, a proibição não tem viabilidade técnica; apenas simbólica. De qualquer forma, a medida repercutiu no mundo inteiro, que agora olha atento à espera de ver qual será o nível de sucesso alcançado.

Mesmo na Finlândia, um país tido como farol global quando se trata de educação de qualidade, a questão não se encontra pacificada. Neste momento, discute-se no país se os estudantes devem ou não ter acesso aos celulares nos intervalos. “Em Helsinque, as escolas têm um ‘código de conduta’, o qual estabelece que os alunos não podem usar celulares durante as aulas, a menos que o professor peça para usá-los como parte de uma atividade pedagógica”, explica Marjo Kyllonen, secretária municipal de Educação e Serviços Públicos de Helsinque. “Na sala de aula, os alunos interagem muito bem presencialmente. Mas, nos intervalos, muitos passam a se comunicar apenas por mensagens nos celulares, mesmo estando fisicamente próximos”, relata.

 

celular

“O programa piloto [de retirar o celular] mostrou que discussões educativas funcionam melhor do que proibições”, analisa Marjo Kyllonen, secretária de Educação da capital finlandesa

Para tentar mudar esse panorama, foi feito um programa piloto em algumas escolas de tirar os celulares também nos recreios. Não houve exatamente uma proibição, mas um trabalho de conscientização e recomendação, com workshops para famílias, estudantes e professores. “Eles discutiram os impactos negativos do uso excessivo de redes sociais e também como passar o tempo sem depender do celular. Descobrimos que 20% dos nossos estudantes de 15 anos ou mais diziam que passam mais tempo online do que gostariam. O programa piloto mostrou que discussões educativas funcionam melhor do que proibições”, afirma Marjo.

Outro ponto importante foi que as escolas organizaram recreios mais ativos, com jogos e atividades conduzidos por adultos, para ajudar os alunos a se desconectar dos celulares. Mas tudo isso, claro, num contexto que não alijou as crianças e jovens do contato com tecnologias digitais. “As escolas estão bem equipadas com tablets e laptops, então não há necessidade de usar celulares pessoais”, diz a diretora de desenvolvimento.

Marjo defende que a aprendizagem deve promover o bem-estar dos estudantes, algo que o contato cara a cara faz muito melhor do que via tecnologias. E, quando usada, o foco da tecnologia seja para melhorar os relacionamentos reais. “Há anos temos dito que primeiro é necessário ter um objetivo pedagógico [para usar a tecnologia] mas, hoje em dia, eu enfatizaria o aspecto social do aprendizado. Vivemos em um mundo cheio de tensões e dilemas, e precisamos ensinar os jovens a dialogar com pessoas de diferentes opiniões e encontrar soluções em conjunto”, conclui a finlandesa.

——

Revista Educação: referência há 30 anos em reportagens jornalísticas e artigos exclusivos para profissionais da educação básica

——

Escute nosso podcast

 


Leia Políticas Públicas

Sao,Paulo,,Brazil,,October,09,,2015.,Class,Of,Students,In

Cultura impacta desempenho escolar, avaliam familiares

+ Mais Informações
celular foto Shutterstock

Celular na escola: popularização do smartphone coincide com queda global...

+ Mais Informações
Close,Up,Of,Unrecognizable,Teenager,Putting,Smartphone,In,Box,In

Desafios e oportunidades da lei que proíbe o uso de celulares nas escolas

+ Mais Informações
educação alimentar - Shutterstock

Educação alimentar ainda não é realidade nas escolas

+ Mais Informações

Mapa do Site