NOTÍCIA
Tanto na educação básica quanto no ensino superior, ainda há muito o que fazer para que a educação democrática e antirracista se concretize
Publicado em 19/11/2023
Por Nilma Lino Gomes*: Uma educação democrática e antirracista é aquela que afirma a força e o potencial emancipatórios da diversidade, em especial, a diversidade étnico-racial, na qual a população negra brasileira se encontra.
Para construir uma gestão democrática e antirracista é preciso compreender que o racismo está na estrutura da sociedade e nas instituições. Ao considerarmos essa realidade, entenderemos que a instituição escolar é também passível de racismo.
Leia também:
Nilma Lino Gomes: descolonizar o conhecimento para incluir saberes indígenas e negros
O papel da gestão escolar na formação continuada docente
Há resistência de alguns setores educacionais em aceitar essa realidade, fruto de um posicionamento conservador e muitas vezes reacionário que tenta a todo custo omitir os conflitos e relativizar o peso de fenômenos perversos, tais como: racismo, patriarcado, capacitismo, etarismo, LGBTQIA+fobia na vida dos sujeitos da escola, no cotidiano e no currículo escolares, na relação pedagógica, nos tempos e espaços das escolas. Fenômenos construídos historicamente nas tensas relações de poder e que reverberam em todas as instituições sociais.
Quanto mais lutamos para democratizar a sociedade e suas instituições, mais a raça, a classe, o gênero, a orientação sexual, as diferentes idades e vivências sociais e culturais se destacam. Quanto mais políticas educacionais, de igualdade racial, de gênero, para pessoas com deficiência, de moradia popular, de combate à fome e à pobreza existirem, mais essa situação será explicitada. Políticas essas que foram ameaçadas e descontinuadas no período de 2016 a 2022 quando padecemos de um desgoverno federal, sofremos com a pandemia covid-19 e assistimos a um sério ataque às instituições democráticas.
Esse projeto de poder e de destruição do público e da democracia, felizmente, foi derrotado no último pleito eleitoral. Mas ainda convivemos com as suas raízes perversas espalhadas nos mais diversos setores políticos, jurídicos, sociais, midiáticos, religiosos e educacionais. E o que é mais sério: elas estão incrustadas nas mentalidades e valores de várias famílias que afrontam e ameaçam as instituições educacionais, as educadoras, os educadores, as gestoras e os gestores que, publicamente, se posicionam a favor de uma escola que proporcione o conhecimento crítico, emancipatório, que respeita e reconhece a diversidade, que preza pelo direito à diversidade religiosa.
São as instituições com esse perfil político e pedagógico que incluem o antirracismo como um princípio orientador da prática pedagógica, do currículo e da gestão. É nestas que encontramos um conjunto de educadoras e educadores que entendem que a educação é um direito humano a ser garantido de forma permanente. E estas é que realizam práticas pedagógicas que efetivam a alteração da LDB pela Lei 10.639/03 e suas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana.
Por tudo isso, concluo que precisamos qualificar ainda mais o nosso debate sobre a gestão e a democracia nas escolas, à luz da educação antirracista. O antirracismo indaga e reeduca a gestão. Precisamos compreendê-la e debatê-la como uma ação e uma função pedagógica e eminentemente política.
A gestão democrática em uma perspectiva antirracista é aquela que constrói ações pedagógicas, políticas, administrativas e orçamentárias junto ao corpo docente, discente, demais profissionais e famílias que colocam em prática o direito à diversidade e às diferenças. Revela-nos que além da tomada coletiva das decisões, do trato competente e ético das questões técnicas e administrativas é também sua atribuição: o trato humano e digno de cada um e cada uma, o respeito à ancestralidade, a prática da não violência, da justiça, da igualdade e da equidade.
Uma gestão escolar democrática e antirracista não faz concessões ao racismo. Não admite preconceitos de qualquer ordem e age de forma firme na desconstrução dessas práticas junto aos docentes, discentes, profissionais da escola e famílias. É aquela que explicita para todas e todos que o antirracismo é um preceito constitucional, pois o racismo é crime inafiançável e imprescritível (CF, artigo 5º, inciso XLII). Além disso, a injúria racial, por meio da Lei 14.532/2023, foi equiparada ao crime de racismo. Logo, a prática desses dois crimes em qualquer instituição brasileira, inclusive na escola básica e nas instituições de ensino superior públicas e privadas, significa a transgressão de uma lei e é passível de sanção.
Uma escola injusta não é nem democrática e nem antirracista. O antirracismo coloca a educação diante do dever ético e político de ser justa, ética, acolhedora e equânime.
Que possamos fazer estas e outras reflexões, pois a realidade da gestão e das práticas educativas nesses 20 anos de sanção da Lei 10.639/03 revelam que, tanto na educação básica quanto no ensino superior, ainda há muito o que fazer para que a educação democrática e antirracista se concretize em nosso país.
*Nilma Lino Gomes é professora titular emérita da UFMG. Ex-reitora da Unilab (primeira mulher negra a assumir esse cargo em uma universidade federal do país).Ex-ministra da Secretaria de Políticas e Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR)
Revista Educação: referência há 28 anos em reportagens jornalísticas e artigos exclusivos para profissionais da educação básica