NOTÍCIA

Edição 298

FNDE busca blindagem para evitar corrupção, garante a presidente Fernanda Pacobahyba

Atenta às desigualdades sociais, presidente tem feito reestruturações e quer o órgão valorizado pela sociedade. Também diz que o Fundo será uma grande plataforma de dados da educação básica e superior para pesquisadores e população

Publicado em 07/11/2023

por Laura Rachid

O dinheiro para a merenda escolar, a garantia de transporte ida e volta até a escola, a produção e entrega de mais de 140 milhões de livros didáticos, além da construção e manutenção escolar são atribuições do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), criado em 1968, vinculado ao Ministério da Educação (MEC).

Num país continental, com estudantes e educadores vivendo em aldeias e cidades, executar tudo isso é desafio, mesmo assim, há projetos que servem de exemplos para outros países, como o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), uma vez que estão entre os maiores do mundo. Repassar o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) aos estados e municípios também é da responsabilidade do órgão.


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Desde o início de janeiro de 2023, o país tem como presidente do FNDE a cearense e auditora fiscal Fernanda Macedo Pacobahyba — primeira mulher secretária da Fazenda do Estado do Ceará, doutora em direito tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestre em direito constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e MBA em gestão pública pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper).

Fernanda Pacobahyba assume a presidência do FNDE após escândalos na gestão Bolsonaro — o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro foi preso em 2022 pela Polícia Federal por tráfico de influência e corrupção na liberação de verbas do FNDE. Até barras de ouro serviram como propina. O FNDE é a ponte financeira do MEC com estados e municípios, tanto que tem uma das maiores verbas da pasta: começou o ano com 84 bilhões de reais. A presidente garante que seu comprometimento é com a transparência. Leia, a seguir, a entrevista.

Educação: Além do alto orçamento, é a verba do FNDE denominada ‘voluntária’, cuja gestão tem autonomia de decisão, que provoca a cobiça dos políticos? Desde a sua entrada, quais mecanismos foram criados para evitar corrupção? 

Fernanda: Essa questão é muito forte e simbólica pra gente, e tem sido um lema da nossa gestão. Como primeira iniciativa, procurei pessoalmente a CGU com o ministro Vinícius [Marques de Carvalho] para me voluntariar, porque estou inteiramente aberta para trabalhar com os órgãos de controle dentro do FNDE, para o acompanhamento em tempo real, com transparência. Hoje, o Programa Prisma [objetivo é combater a corrupção], da CGU, tem o FNDE como piloto e a gente está trabalhando a parte de integridade, de corregedoria, transparência, normas éticas e valores. 

Além disso, no âmbito das diretorias, o FNDE ficou com uma característica meio apartada em termos de gestão. A presidência era muito distante do que estava acontecendo nas diretorias. Trouxemos o comando para a presidência e instauramos o Conex, um comitê de governança, e todas as nossas decisões são colegiadas, publicizadas, tomadas coletivamente, temos atas, fica tudo registrado. Há diversos processos que aconteceram ao longo desses últimos anos, em especial, que você diz: ‘gente, cadê o presidente?’ Então coisas que as diretorias iam fazendo e parecia que não tinha uma certa orquestração. É isso. Temos investido muito na transparência, que é o melhor antídoto para a corrupção. 

Estamos com uma diretoria de TI com planejamento estratégico da melhor qualidade, muito bem estruturado. O FNDE tem dados e outros pessoais protegidos pela LGPD, como os dos alunos do Fies. Fora isso, o restante é para escancarar. O FNDE tem como ser o grande reservatório de dados da educação básica brasileira. E também da educação superior, porque o Fies é estruturado no âmbito do FNDE. Esses dados estão muito desorganizados. A gente recebe dados tratados de forma muito primária, com planilha de Excel. Fazemos a catalogação, ordenação, governança desses dados para ficar um trabalho incrível. A ideia é o FNDE ser essa plataforma de dados para pesquisadores, estudiosos e a sociedade poder melhor acompanhar.

Que tipos de dados são esses?

Por exemplo, para o município de Saboeiro*, no Ceará, vão ocorrer grandes programas estruturados do FNDE: ele recebe dinheiro do Fundeb, do Salário-Educação, recebe ônibus pelo Caminho da Escola, vai receber pelo Pnate, Pnae. Hoje não há uma plataforma estruturada para extrair inteligência e permitir passear por Saboeiro e tentar compreender o que é essa educação básica em números, comparar Saboeiro com outros municípios, como Tefé no Amazonas, vamos imaginar que tenha a mesma população, mesmo número de redes e conseguir olhar indicadores de performance dos estudantes.

*O fundador da revista Educação, Edimilson Cardial, nasceu em Saboeiro. Por isso o exemplo


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Secretarias de Educação criticam que há estudantes que precisam de dois tipos de canoa, além do transporte terrestre até chegar à escola, mas que a verba não considera isso, por exemplo. Como viabilizar individualidades regionais?

Às vezes vejo pessoas e até gestores se equivocando. São dois programas distintos, mas que têm sinergias. Uma coisa é o Caminho na Escola, em que você tem os veículos automotores tradicionais, normalmente rodoviários. Já houve no passado uma política não exitosa de aquisição de barcos. Qual é o problema? Estamos agora em uma licitação nacional para adquirir ônibus, e isso requer tudo aquilo que tem de mais extraordinário em termos de segurança, ainda mais porque estamos falando de transporte de crianças, então tem que ser tudo perfeito.

É muito complicado estruturar política pública trazendo um meio de transporte que é legítimo, culturalmente aceito, todo mundo sabe que faz parte daquela comunidade, como as carroças faziam parte no interior do Ceará. Mas quando você olha o requisito de segurança, como é que o governo federal vai atestar a compra de uma canoa que, se virar e o menino morrer, vão dizer: ‘por que o governo comprou essa canoa? 

Essa questão é muito complexa. Então a nossa rota de fuga e única defesa é comprar o que tem de mais bem estruturado, mas certamente não é a realidade de muitos municípios brasileiros. Isso conecta com outro programa muito importante que é o Pnate, de atendimento ao transporte escolar. Designei uma comissão do FNDE para estudar essas peculiaridades locais, mas de cara, ao assumir, eu tinha digamos essa ‘visão equivocada’ de que não estávamos olhando realidades locais.

A Universidade Federal de Goiás faz acompanhamento desses programas, tanto com o Caminho na Escola quanto com o Pnate há mais de 20 anos, inclusive é um professor que praticamente a vida dele é dedicada a isso. Eu digo: ‘professor, me mostra o que está por trás desse valor per capita que a gente está pagando para os nossos alunos’. O algoritmo é extraordinário e contempla, por exemplo, quando você vai pegar o custo do transporte do quilômetro no rio, ele é mais caro que o custo rodoviário e isso reflete no per capita. Então é possível olhar aquele valor e dizer que ainda é insuficiente tanto para a realidade amazônica como nordestina.

Sempre pergunto a prefeitos: ‘quando a gente coloca 100 reais no Pnate, o senhor tem que colocar quanto a mais?’ As pessoas vêm muito pra cima do governo federal exigindo que banque o programa como um todo. O texto constitucional, notadamente a partir do artigo 205, diz que a alimentação escolar, o transporte escolar, a assistência em saúde, são programas suplementares em que o governo federal em tese, traz um aporte de recursos, mas os governos locais precisam aportar também. Por exemplo, o prefeito de Saboeiro diz que para cada 100 reais que o FNDE bota, ele bota pelo menos 300 reais. Não é muito diferente da realidade da Amazônia. Não é suficiente, até porque esse dinheiro federal não deve ser o único montante que banque. Mas tem sido suficiente para sudestinos, nordestinos, nortistas, absolutamente todos.

Sobre o Fundeb, os critérios de equidade serão aperfeiçoados?  Secretarias estão com dificuldade nos critérios de habilitação para o VAAR (valor aluno por resultados) e há expectativa de alteração. O que pode adiantar?

Fundeb em 2024 vai aumentar 10 bilhões de reais em termos de complementação para estados e municípios. Hoje são 39.9 bilhões, vamos passar para praticamente 50 bilhões de reais. Esse complemento vai crescer até 2026. Existe uma portaria que foi designada pela secretária-executiva do MEC, Izolda Cela, instituindo um grupo de trabalho, porque há uma previsão normativa para fazer até outubro um aprofundamento e encaminhar alterações que sejam consideradas importantes. Compomos esse grupo e temos levado algumas sugestões. Mas, de fato, elas não estão finalizadas.

Um dos focos é o VAAR, sabemos que é um montante de recursos, 2,5%, que não é aquela parcela extraordinária dentro do Fundeb, mas tem um foco meritocrático de real­mente olhar boas práticas. É muito o exemplo do Ceará, de ter diretores que estão ali pela gestão e não por indicação de A, B ou C e que pode, eventualmente, desqualificar aquela gestão. Mas a gente também sabe que há uma cultura para ser desdobrada.

A ideia é que, aumentando esse montante de complemento da União, essa parcela aumente e passe a ter um estímulo financeiro mais forte para que os entes tomem determinadas medidas. Também temos trabalhado muito, especialmente a secretária Zara Figueiredo, da Secadi, nas dificuldades dos estados e municípios, mas a gente tem muito firme, especialmente esse exemplo do Ceará, de que vale a pena colocar metas, e faz parte ter dificuldades para cumprir. 

FNDE

Fernanda Pacobahyba assume a presidência após escândalos na gestão Bolsonaro
Foto: Marília Camelo


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O Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) é importante, mas precisa de ajustes. Você defende um Sistema Nacional de Alimentação Escolar (Snae). Como executar um plano com continuidade? 

Adoro esse tema. Mas, depois do artigo que publiquei na Folha, foi uma confusão, se chocou até com outros sistemas, como o de segurança alimentar. Só que a ideia não é sobrepor. Então eu mudei e publiquei no site do Conjur, com o chefe da procuradoria do FNDE, mas que tem basicamente a mesma finalidade que a da política nacional.

Fizemos essa mudança também porque estamos agora em processo de recontratação da FAO, a agência da ONU para a alimentação, e braço superimportante do FNDE, especialmente na temática internacional. E temos hoje uma rede de alimentação sustentável em que o Brasil é líder na América Latina e Caribe. Na verdade, é o maior programa de alimentação escolar do planeta [Pnae], e levamos nossas boas práticas.

O nosso foco, especialmente com a América Latina e Caribe, vai ser trabalhar modelos de políticas nacionais de alimentação escolar. Só que a lei do Pnae de 2009 não estabelece a política, ela estabelece um programa. Então eu apartei a ideia de sistema, porque estamos aqui para construir e não criar confusão, e vamos trabalhar a noção de política nacional. E o que é isso? A lógica é a mesma do Pnate. Os dados de hoje demonstram que 46% de todas as escolas que recebem o recurso do Pnae vão usar para a alimentação escolar unicamente o valor que o governo federal manda. Mas é um valor para ser, nos termos constitucionais, suplementar. 

O que queremos com essa política? Hoje, o prefeito olha para o programa e diz que por ser programa do governo federal não vai colocar dinheiro. Diria que só avança quando o cara está engajado, já entrou na lógica da importância da alimentação, que não existe educação com menino com fome. Queremos estruturar esse regime de colaboração e cooperação forte entre os entes e trazendo as responsabilidades de cada um. 

Sou apaixonada pelo Pnae e a primeira pergunta ao assumir foi: ‘quanto que custa uma alimentação adequada para um estudante na região Nordeste? Quanto custa per capita no Norte, Sudeste e Centro-Oeste? O FNDE não tem esse dado estruturado. A conta da alimentação escolar sempre foi pegar o orçamento, ver o tamanho da rede e a partir daí dividir. Não é baseado na necessidade. Então queremos com a política trazer a noção de que para alimentar bem, por exemplo, um menino no interior do Ceará é preciso um real por dia. O governo federal oferta hoje 40 centavos, valor suplementar, e o prefeito precisa bancar com as verbas; podemos negociar, fazer uma escadinha. Mas o Programa Nacional de Alimentação Escolar precisa partir dessa grande pactuação e de uma assunção de responsabilidade também, porque não há educação com menino com fome. 

Fizemos um projeto de lei, vamos ver como expor isso, para trazer a política nacional, continua o Programa Nacional de Alimentação Escolar e traz a participação social mais ativa. Mandei um ofício ao secretário do Tesouro Nacional e disse que um desafio já enquanto secretária da Fazenda do Ceará é que não há implementação de centro de custos na nossa contabilidade brasileira. É um avanço muito grande saber quanto é que custa, há algumas iniciativas, as pessoas juntam uma série de dados.

Mas quanto custa com energia, água, professor, com absolutamente tudo? Você não tem uma base que diga quanto custa esse aluno dentro da contabilidade estruturada. Então nos voluntariamos para que o Pnae seja o primeiro programa do governo federal a usar centro de custos e já queremos mapear tudo. Porque hoje também o dinheiro federal está vocacionado a adquirir gêneros alimentícios. E a merendeira, quem paga? E a nutricionista? E o gás e a energia? Quem vai comprar panelas e fogão? Ou seja, fazer alimentação escolar é muito complexo e isso até hoje não tinha sido aprofundado.

Saiu na mídia que o governo federal investe pouco com merenda escolar e que não teve ajuste nos últimos seis anos. O que coloca é que o valor não é único, e que os gestores políticos devem complementar.

Sim. Hoje temos um valor que não é individualizado por região, por exemplo. Há valor por escola urbana. No Crato, Oriximiná, em Porto Alegre será um valor só, não individualiza. Sabemos que há diferença de preços. Neste governo, uma das primeiras medidas anunciadas pelo presidente Lula foi o reajuste da merenda escolar em quase 40%. Só esse ano é um bilhão e meio de reais a mais. Não é pouco dinheiro, é muita grana, mas não pode ser o único dinheiro e é isso que defendemos. Os entes precisam compreender que não só a União tem um papel a cumprir, porque os dados dizem que 46% dos prefeitos não colocam um centavo a mais além do que é ofertado pelo governo federal. Então o que a gente quer é gerar esse movimento de compromisso para termos uma alimentação melhor.

FNDE

A auditora fiscal e presidente do FNDE Fernanda Macedo Pacobahyba foi a primeira mulher secretária da Fazenda do Estado do Ceará
Foto: divulgação

Ao assumir o FNDE, qual a situação encontrada? Foram feitas muitas alterações no quadro funcional?

Sou servidora de carreira, auditora fiscal. Uma das coisas que mais me surpreendeu foi a qualidade dos servidores do FNDE. Das notícias dos últimos anos de desvio no Fundo [escândalo de corrupção], dificilmente há envolvimento dos nossos servidores. Há envolvimento dos cargos comissionados, de pessoas que transitaram pelo órgão. Encontrei aqui uma equipe muito motivada, muito temerosa por conta, enfim; porque normalmente as pessoas que trabalham na educação gostam muito do que fazem. E quando há valorização do seu órgão e de seu trabalho, é óbvio que não querem ver sua organização sendo capa de jornal por desvio de conduta ou por atos não republicanos.

Então estamos no movimento de construção de confiança para que as pessoas se sintam, de fato, seguras para atuar, que tenham liberdade e com mecanismos que assegurem às pessoas o direito de se comunicarem para evitar. Aqui não é uma casa de freiras, não é um mundo ideal. Mas é uma organização que tem pessoas e é importante termos mecanismos claros de contenção e de apuração de responsabilidade. Não adianta fazer de conta que não está vendo para evitar escândalo porque, quando vai para o externo, chamusca ainda mais a organização.

Isso pra mim é uma prioridade absoluta no FNDE: trazer o tom de integridade, porque essa organização merece. O papel que cumpre na educação brasileira é extraordinário e encantador. Acho que os brasileiros não conhecem o FNDE, fica muito por trás da figura do MEC. E precisamos, sim, fazer o Brasil conhecê-lo a partir das boas práticas.

Escute nosso episódio de podcast:

Autor

Laura Rachid


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