NOTÍCIA

Edição 297

PNLD: São Paulo continua com livros impressos 

Pressionada, Secretaria de Educação se mantém no Programa Nacional do Livro e do Material Didático. Ainda que mereça lapidações, PNLD é tido como referência enquanto política pública rigorosa e com olhar diverso. Vitória para estudantes e educadores

Publicado em 01/09/2023

por Diego Braga Norte

PNLD_2 Governador de SP Tarcísio de Freitas durante reunião com o secretário Renato Feder Foto: Ciete Silvério/Governo do Estado de SP

No início de agosto, retomada do ano letivo nas escolas, os professores e estudantes da rede estadual de São Paulo foram surpreendidos com a Secretaria de Educação (Seduc) informando que a partir de 2024 não estaria mais no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), do Ministério da Educação — política pública que SP adere há pelo menos 80 anos. A decisão valeria para turmas do ensino fundamental a partir do 6º ano e ensino médio. No lugar dos livros, seria usado material digital próprio da Seduc.  


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Pressionado pela sociedade, comunidade escolar e até por uma decisão judicial contrária à saída do PNLD, o governo de São Paulo voltou atrás e anunciou a adesão ao programa. Em nota, a Secretaria de Educação informou que: “A decisão de permanecer no programa no próximo ano se deu a partir da escuta e do diálogo com a sociedade”. Porém, durante o intervalo entre a saída e o retorno ao PNLD, diversos questionamentos e dúvidas surgiram, assim como uma forte defesa dos livros feitas por entidades como a Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação) e Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo), por exemplo.

“A aceitação foi zero, eu não vi nenhum professor contente com a decisão”, diz Maria Aparecida*, professora de turmas dos anos finais do fundamental e do ensino médio em uma escola de Heliópolis, na zona sul de São Paulo.

“Às vezes, os alunos não têm o que comer, como é que vão ter Wi-Fi em casa para fazer as atividades? Nem todo mundo tem celular, muitos esperam os pais chegarem do serviço para usarem o aparelho emprestado”, prossegue Aparecida, que leciona no estado há mais de 20 anos. 

Em Assis, no oeste paulista, a situação vivenciada pela professora Joana Silva* foi semelhante. “Logo depois da nossa volta às aulas, fizemos reuniões com os pais informando a nova diretriz. Eles questionaram muito a decisão. ‘Como assim, não vai mais ter livro?’. Ninguém gostou. Há muitos pais alienados que não se preocupam com o que os filhos fazem na escola, mas os que acompanham ficaram indignados.” Joana afirmou também que os estudantes do ensino médio, prestes a fazerem o Enem, ficaram aborrecidos. “Os mais novinhos são menos contestadores, aceitam tudo o que os professores passam, não têm maturidade ainda, é normal.”

Política pública que funciona

Nos moldes atuais, o PNLD já funciona há mais de três décadas, mas a distribuição de livros didáticos feita pelo governo federal existe desde 1937, explica Madalena Peixoto, pesquisadora e diretora da Faculdade de Educação da PUC-SP. “Os livros do PNLD são de altíssima qualidade, constantemente revisados por especialistas qualificados. É um programa antigo, referência internacional, muito consolidado no dia a dia das escolas”, avalia.

PNLD

Madalena Peixoto, diretora da Faculdade de Educação da PUC-SP
Foto: arquivo pessoal

Fernando Cássio, professor da UFABC, afirma que “o PNLD poderia ser criticado por outras razões, como pela concentração de contratos na mão de poucas editoras, mas não dá para dizer que os livros não sejam avaliados rigorosamente e que os próprios editais do programa não contribuam para melhorar a qualidade do livro didático no Brasil”. Cássio também é pesquisador da Repu (Rede Escola Pública e Universidade), entidade sem fins lucrativos que reúne docentes da Unicamp, UFSCar, UFABC, USP, Unifesp e IFSP. 

Ele e colegas se debruçaram sobre os materiais digitais da Seduc que iriam substituir os livros do PNLD e o que encontraram não foi nada animador.

“Há problemas conceituais, de contextualização e erros os mais variados possíveis, até de ortografia”, lamenta-se. “Em todos os conjuntos de slides que abrimos para analisar encontramos problemas”, diz. 

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Fernando Cássio, professor da UFABC e pesquisador da Repu
Foto: arquivo pessoal

Dentro da sala de aula, outras deficiências ficam visíveis. A professora Joana Silva relata que os slides “são bem precários” e cita exemplos. “Nos slides, todo o conteúdo é em forma de tópicos, algo muito breve. Em um deles estava escrito, ‘leia o poema tal’, mas o poema não está lá. Aí, temos que procurar o poema na internet para projetar para os alunos. A internet não funciona direito, temos que procurar no celular e ler para a sala. O aluno perde muito quando ele não pode visualizar e acompanhar a leitura.” 

Além disso, as professoras também notaram que as aulas ficam “engessadas” com o uso dos slides, dispersando a atenção dos estudantes e coibindo a margem de liberdade didática dos docentes. O uso do material digital foi intensificado porque a Seduc indicou que a Prova Paulista (uma espécie de Enem do estado de São Paulo) cobrará conteúdos dos slides. “Eu converso com os professores e eles estão angustiados porque, quando o aluno vai mal na Prova Paulista, o resultado recai em cima da gente”, conta Joana Silva.


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Digital e impresso

Depois do descontentamento geral provocado pelo anúncio do fim dos livros, o governo anunciou que iria imprimir apostilas com o conteúdo online produzido pela Seduc. A medida deveria acalmar os ânimos dos críticos, mas teve efeito inverso. Em nota técnica, os pesquisadores da Repu afirmaram: “Os custos exorbitantes com a possível impressão em larga escala de slides de baixa qualidade são injustificáveis e contrariam o princípio da eficiência na administração pública. Assim, a medida anunciada pelo governo paulista é insustentável dos pontos de vista educacional, pedagógico, administrativo e econômico-financeiro, e acarreta prejuízos à qualidade do ensino na rede estadual”. 

Além da criação de custos não previstos, a impressão de material online contrariava a proposta da própria Secretaria, que era baseada na utilização de material digital. “A grande novidade do digital é a interatividade online que ele pode proporcionar, com hiperlinks, vídeos e gráficos interativos. Na impressão, tudo isso se perde. São dois suportes diferentes, o material digital foi pensado para ser assim, não dá para transpô-lo integralmente para o impresso”, explica a pesquisadora e professora da UniRio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) Glenda Cristina Valim de Melo.

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Sobre imprimir os materiais digitais, Glenda Cristina Valim de Melo, professora na UniRio, alerta que não dá para transpô-lo integralmente para o impresso
Foto: arquivo pessoal

Os especialistas ouvidos pela reportagem são unânimes ao mencionar que não há ainda no mundo nenhuma pesquisa indicando que o aprendizado em materiais digitais é superior ao método tradicional. Pelo contrário, o que há é uma série de evidências, em diversas pesquisas, indicando que o excesso de telas prejudica a concentração, atrapalha o aprendizado e atrasa a plena alfabetização de crianças pequenas. Neste sentido, um relatório da Unesco (braço da ONU para a educação, ciência e cultura) publicado este ano fez uma varredura em diferentes pesquisas e identificou ressalvas relacionadas ao uso excessivo das tecnologias digitais na educação escolar.

A Suécia, país com altos índices educacionais, desde o final da década de 1990 vinha adotando uma estratégia de digitalizar seu ensino público. Mas, em dezembro de 2022, voltou atrás e decidiu investir, ao longo de 2023, € 45 milhões (R$ 242 milhões) na distribuição de livros didáticos impressos. Por meio de pesquisas de desempenho e acompanhamento, o governo constatou que a experiência exclusivamente digital resultou numa piora da qualidade do ensino e do desempenho escolar dos estudantes.

Para Fernando Cássio, a questão não é demonizar o material digital — desde que tenha boa qualidade, ressalta. “Nenhum professor ou pesquisador que eu conheço é 100% contra o digital, isso não existe. O que defendemos é a multiplicidade de recursos didáticos e pedagógicos, sempre. Essa maior oferta enriquece as possibilidades numa aula, dá mais oportunidades para professores ensinarem melhor e alunos aprenderem mais”, explica. Ele diz que percebe um ‘certo fetiche’ em relação às tecnologias dentro de sala de aula, “principalmente entre pessoas ligadas ao mercado, como o atual secretário de Educação”.

Renato Feder, atual nome à frente da Seduc, foi durante 15 anos CEO da Multilaser e hoje detém 28,16% das ações da empresa por meio de uma offshore em Delaware, estado estadunidense conhecido como paraíso fiscal. A Multilaser assinou no governo Rodrigo Garcia (PSDB), em 2022, três contratos com a Seduc para a entrega de tablets e computadores. O último deles, de R$ 75,9 milhões, foi fechado em 21 de dezembro de 2022, a apenas 11 dias de Feder assumir a pasta na gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e quando seu nome já havia sido anunciado para o cargo.

Ao todo, os contratos firmados com a Multilaser totalizam cerca de R$ 200 milhões. Em 24 de fevereiro, já sob a gestão Feder, a Seduc notificou — mas não multou — a empresa por atrasar a entrega de parte dos 97 mil laptops comprados. Além da notificação, o prazo para entrega do material foi estendido até agosto. A decisão da Secretaria contraria o que o próprio secretário havia dito.

“A gente vai aplicar multas e as empresas vão ser notificadas [as que descumprirem os prazos de entrega dos equipamentos]”, disse o secretário em agosto, em um evento no Palácio dos Bandeirantes. 

Na prática, Feder é o responsável por fiscalizar os contratos da Seduc que comanda com sua própria empresa. Em março, o Ministério Público de São Paulo pediu a abertura de uma investigação para apurar eventual conflito de interesse entre o secretário e a pasta. A apuração, ainda em curso, está sendo feita pela Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo.

*Temendo represália, as professoras não quiseram divulgar seus nomes

Escute nosso episódio de podcast:

Autor

Diego Braga Norte


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