NOTÍCIA

Edição 297

“Estudantes não querem só sobreviver”, alerta presidente da Ubes Jade Beatriz

Para além de comida e transporte, a presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) reforça as vontades e preocupações da juventude. Ela também critica que as escolas não fornecem autonomia e legitimidade

Publicado em 25/10/2023

por Laura Rachid

O Brasil possui mais de 40 milhões de estudantes na educação básica regular, técnica, pré-vestibular e educação de jovens e adultos — a população total da Espanha, por exemplo, é de quase 50 milhões de pessoas. São esses milhões de brasileiros que a cearense e filha da escola pública Ana Jade Beatriz, de 22 anos, busca representar. Ela, que atualmente faz cursinho, é a presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), fundada em 1948, no Rio de Janeiro, e hoje presente em todos os estados e Distrito Federal.


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A entrevista aconteceu por videochamada. Jade estava em Brasília: “passo a maior parte da semana aqui por conta da Ubes, não diretamente pela entidade, mas porque tudo está acontecendo aqui. Então as decisões políticas, audiência pública, votação, tudo que envolve a educação básica a gente fica aqui de sentinela para garantir que nada de ruim aconteça e para conseguir aprovar também”.  A jovem conta que a Ubes dialoga com todos os setores, dos secretários de Educação, deputados, vereadores, prefeitos e o Ministério da Educação. Confira a entrevista.

Laura, revista Educação: A Ubes é contra o atual novo ensino médio, inclusive elaborou um documento inspirado nos institutos federais entregue ao MEC. Por que discordam e o que propõem? 

Jade Beatriz: Um dos principais pontos é a carga horária das matérias de conhecimento geral básico que, reduzida, não consegue dar conta da demanda que é o ensino médio. São matérias de base importantes como história, geografia, sociologia, português e matemática, e no lugar delas entram os itinerários formativos, que em tese seriam para aproximar o estudante do mercado de trabalho, mas na realidade não será assim porque não são itinerários, por exemplo, de robótica, aula de logística, administração, informática. É aula de como fazer bolo de pote ou de como fazer brigadeiro caseiro, aula de como pintar unha, como fazer boneco de palha. Isso só distancia a juventude da escola pública que hoje é majoritariamente composta por estudantes negros, de baixa renda e por mulheres, aprofundando a desigualdade social.

Entendemos que a nova proposta de ensino médio precisa beber das experiências dos institutos federais. Tudo bem ter itinerários que querem aproximar os estudantes do mercado de trabalho, só que precisa ser digno e fazer sentido com o ambiente daquele estudante. Sem contar o orçamento para a execução, um dos maiores problemas. Os institutos federais são modelos de sucesso na entrada para a universidade, no mercado de trabalho e possuem uma porcentagem grande de produção científica do país.

É preciso aplicar o modelo científico e tecnológico dos institutos federais nas escolas e que as escolhas das matérias conversem com as necessidades locais para o estudante não cair no subemprego. Porque o caminho que esse novo ensino médio traça para os jovens é esse. 

Entendemos que o modelo pedagógico no Brasil caminha a passos lentos comparado com o que deveria ser. Por exemplo, somos da América Latina e não é obrigatório ter espanhol. A gente também não concorda que o ensino médio volte a ser o que era antes, amarrado a uma estrutura de 50 anos atrás, de cadeira enfileirada uma na frente da outra. Entendemos que a escola precisa cumprir o papel de garantir que o estudante consiga formar pensamento crítico, tenha acesso às matérias que são ponte para a universidade e cumpra o papel de combater as desigualdades sociais. Então, quando foge dessas três coisas, a escola pública perde o sentido e é isso que está acontecendo no novo ensino médio. 

Por isso queremos uma nova proposta. Entregamos a nossa nota técnica para o MEC e estamos entregando agora para o Congresso Nacional. Dialogamos tanto com deputados de esquerda como de direita e centro para garantir que um novo modelo de educação seja entregue e que nesse modelo a gente possa aprender a história do Brasil, fugindo da lógica de que foi a princesa Isabel que libertou os escravos, sendo que não tem registro ali de quem foi Dandara, Zumbi dos Palmares, o importante papel que os quilombos cumpriram para a construção do que foi a anistia do povo negro no Brasil e a forma como o país foi construído a partir do nosso próprio povo. E não contando uma história europeia de como os europeus construíram o Brasil.

Como funcionam os movimentos estudantis e os encontros estaduais e nacionais?

O movimento estudantil é dividido em três entidades nacionais: a Ubes, que envolve todos os estudantes da rede particular e pública de ensino médio, técnico, pré-vestibular e ensino de jovens adultos, além de representar todas as crianças — basicamente, é todo estudante que ainda não está dentro da universidade. Tem a União Nacional dos Estudantes (UNE), que é dos estudantes universitários, e a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG). Mas cada região tem a sua própria entidade estadual e em alguns locais, municipais. Por exemplo, na Ubes, entre as estaduais, temos a Associação Cearense dos Estudantes Secundaristas; já no Rio Grande do Norte, a Associação Potiguar dos Estudantes Secundaristas. Então o grêmio da escola faz parte da entidade municipal e estadual e essas entidades fazem parte da Ubes.

O movimento estudantil é composto por várias organizações ligadas ou não a partidos. Existem pessoas de direita, esquerda e até oposição. Todos os nossos eventos são bem democráticos porque todas as chapas dos movimentos conseguem defender o que querem. Tudo é votado. Na Ubes temos várias atividades, como o Encontro Nacional de Grêmios, Encontro de Mulheres Estudantes, Encontro de Negras e Negros, tem o Encontro Nacional de Escolas Técnicas, todos acontecem de dois em dois anos. Já o evento deliberativo, que discute o que a Ubes vai defender nos próximos anos, é o Conselho Nacional de Entidades de Base (Coneb), que acontecerá em julho do ano que vem para eleger a nova diretoria, e aí vou passar o bastão para outra pessoa.


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Quais vitórias o movimento estudantil tem conquistado nos últimos anos e como viabilizam isso?  

São muitas. Vou falar por mim. Comecei a olhar o movimento estudantil quando estava no 8º ano, em 2016. Conheci a Ubes por conta das ocupações das escolas, me perguntava o que estava acontecendo e conversava com as pessoas. Mas minhas primeiras movimentações vieram com os cortes na educação do governo Bolsonaro de bilhões de reais, que gerou o ‘tsunami da educação’ [em 2019], com manifestações sendo marcadas praticamente de 15 em 15 dias. Os cortes foram revertidos e pra mim foram as primeiras experiências vitoriosas. Também presenciei o PL da dignidade menstrual, que tornou obrigatório todas as escolas terem absorvente, teve o PL da conectividade e o reajuste da merenda escolar. 

Já no novo governo Lula, o ministro Camilo Santana me pediu para colocar o pin [broche] nele e eu pedi uma reunião que aconteceu na segunda semana de governo. Levamos uma lista de coisas para fazer, como recomposição orçamentária e recomposição dos institutos federais. Eles cumpriram com a nossa lista já no primeiro semestre. Sobre a expansão das escolas em tempo integral, só uma coisa o MEC não colocou e estamos resolvendo agora para que entre ainda nos próximos dois meses, que é a bolsa permanência para todos os estudantes, visando conter a evasão. De vitória teve também a aprovação do novo Fundeb, que foi muito importante.

Ubes

Há uma lógica enraizada, detalha Jade: “É fácil conseguir emprego em aplicativo, aí faz supletivo e pronto. A pessoa diz que não quer entrar na universidade porque sabe que não tem chance de passar”
Foto: Karla Boughoff

A Ubes possui algum projeto para quebrar questões estruturais como o fato de estudantes negros evadirem mais da escola do que os estudantes brancos, conforme apontam pesquisas como o Saeb?

Temos uma entrada maior na escola pública, escola privada é muito difícil entrar, e tudo o que defendemos envolve isso. Então bolsa permanência para as escolas de tempo integral, expansão dos institutos federais, ficamos em cima do MEC para poder melhorar o Enem; tudo voltado, principalmente, para os estudantes negros que são maioria na escola pública e justamente os que mais evadem. Nos últimos três anos, o Enem teve uma queda nas inscrições, sendo maior entre estudantes negros e indígenas da escola pública.

Poucas pessoas sabem, mas sobram vagas de cotistas nas universidades, isso porque os estudantes deixam de se inscrever e os que se inscrevem possuem dificuldade, mesmo com a Lei de Cotas. Então hoje as universidades estão com vaga sobrando porque o jovem não está entrando na sala de aula. A nossa luta principal é a defesa da educação, só que o acesso a ela é muito importante e a gente prioriza que esse acesso seja para esses estudantes. 

Está no Congresso Nacional uma proposta de poupança estudantil para quem concluir o ensino médio. É importante, mas não pode ser o único caminho porque estamos falando do agora e um jovem não vai sair do trabalho para poder estudar porque se fizer isso não terá comida em casa. ‘Estou com fome hoje’. ‘A minha família está passando fome hoje e não quando terminar o ensino médio’. Ele precisa de uma certeza no mês. Acho que poderia se assemelhar ao que é a bolsa de assistência estudantil do ensino superior ou a própria bolsa da Capes da pós-graduação. O jovem é o público que mais se ‘lasca’ porque ainda não conseguiu entrar na universidade e nem no mercado de trabalho, e justo nós somos as pessoas com a maior faixa de desemprego. 

E esse valor não pode se voltar apenas à alimentação e transporte. Falei para o Camilo Santana: os estudantes não querem só sobreviver. Também queremos um tênis, sair no final de semana, presentear a namorada. Inclusive, isso é um dos principais motivos para sair da escola, porque é fácil conseguir emprego em aplicativo, aí faz supletivo e pronto, termina o ensino médio. A pessoa diz que não quer entrar na universidade porque sabe que não tem chance de passar, já que não teve acesso ao mesmo tipo de educação da escola particular. É uma lógica enraizada. Vi vários amigos passarem por isso. Eu estudei em escola técnica estadual de tempo integral no Ceará, que tem uma estrutura melhor, mas mesmo assim, o fato de não ter uma bolsa permanência fez metade da minha sala sair da escola. Minha turma no ensino médio começou com 42 estudantes e só 20 se formaram. 

O que falta nas escolas (direção, coordenação e docência), para o protagonismo juvenil ser estimulado? Como os estudantes veem e querem a escola?  

Permitir autonomia e garantir legitimidade em todos os processos de construção da gestão escolar — duas coisas em que as escolas mais pecam hoje. Por exemplo, no Ceará e Rio Grande do Norte, é obrigatório que toda escola pública tenha grêmio, mas o grêmio acaba sendo montado pela direção, coordenação e até pelo próprio secretário. Há uma falha grande da gestão escolar de não permitir que o grêmio e o estudante tenham autonomia, o que é garantido por lei. Há também uma falsa sensação de que os estudantes não podem ter uma opinião política, o que é ruim e perpetua que a escola pública só prepara os estudantes para serem uma máquina de apertar botão. Não, a gente também pensa.

A Ubes defende que todos os secretários, coordenadores e diretores deveriam ser eleitos não só pelo corpo docente, mas também pelos estudantes da escola, pela comunidade escolar. Esse espaço deveria ser construído da mesma maneira como ocorre nas universidades, por exemplo, com o reitor. 

Você faz cursinho. Quais seus objetivos e sonhos? 

Tenho curso técnico em logística e estou na metade do curso técnico de edificações. A gente, que veio de escola pública, eu morava na periferia de Fortaleza, o nosso maior medo é dar errado na vida. Há um desespero. Ano que vem vou deixar o movimento estudantil e pretendo entrar na universidade. Hoje, meu desejo é fazer direito. Quero ser advogada e trabalhar com política por meio da minha profissão. Estou estudando para prestar Enem.

Em relação à educação básica, você concluiu direto ou chegou a sair da escola por um tempo?

Não precisei parar, mesmo com todas as dificuldades que eu tinha em casa, sendo a mais velha de quatro irmãos, tendo que ajudar. E sempre arrumei tempo para poder empreender: já vendi escondido todo tipo de mercadoria alimentícia na escola, e se não vendesse, teria que sair da escola. Vendi dindin [geladinho], salgado, bolsa, e até amortecedor de crochê para cela de bicicleta, esse vendia por 15 reais, e assim pude viver o meu ensino médio.

Escute nosso episódio de podcast:

Autor

Laura Rachid


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