NOTÍCIA
Estudo da ONU expõe que uma em cada quatro brasileiras já faltou à escola por não ter como comprar absorvente. Indignadas, jovens entre 14 e 21 anos escreveram dois projetos que viraram leis no RJ: absorvente distribuído na cesta básica e em escolas públicas estaduais
Publicado em 07/10/2021
A fila de pessoas para receber ossos de boi descartados no açougue e o caso de uma mãe que morreu após 90% do seu corpo ser queimado com álcool, por não ter condições de comprar gás, estamparam recentemente diversas manchetes. Quando um prato de comida ainda é privilégio, imagine o resto. É diante dessas dificuldades financeiras que o uso de pelo menos 16 absorventes descartáveis para um ciclo menstrual mensal, que gira em torno de oito reais, se torna irreal, escancarando a pobreza menstrual.
Entrevistadas para esta reportagem afirmam que é comum na falta do absorvente pessoas usarem jornal, miolo de pão, papelão ou plástico. Sim, são alternativas presentes na vida de meninas, mulheres, homens trans e pessoas não binárias que menstruam e que podem gerar danos à saúde íntima e até atraso escolar, uma vez que, segundo a ONU, estima-se que uma em cada 10 meninas no mundo falte à escola durante a menstruação. Por aqui a realidade é ainda mais desigual: uma em cada quatro brasileiras já faltou à escola por não ter como comprar absorvente.
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O levantamento divulgado este ano Impacto da pobreza menstrual no Brasil, encomendado pela marca Always, aponta que o simples fato de não ter condições de comprar absorvente faz com que percam 45 dias de aula por ano letivo.
É importante destacar que pobreza menstrual vai além de não ter absorvente, inclui também a falta de conhecimento sobre o ciclo menstrual e infraestrutura, por exemplo. Divulgado no primeiro semestre deste ano, o estudo do UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas) com o Unicef Pobreza menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos aponta que 713 mil meninas vivem sem acesso a banheiro ou chuveiro em seu domicílio, 900 mil não têm acesso a água canalizada e 6,5 milhões vivem em casas sem ligação à rede de esgoto.
Ano passado, na pandemia, um grupo de jovens de 14 a 21 anos que atua com foco na zona norte do Rio de Janeiro, pertencente ao clube criado em 2019 Girl Up Elza Soares, organização sem fins lucrativos vinculada à ONU – mas sem contato direto e independente – passou a arrecadar absorventes descartáveis e ecológicos para quem precisa. Só que elas entenderam que as doações não podiam ser de vez em quando, uma vez que a menstruação tende a ser mensal. Foram atrás de uma saída justa e conquistaram uma vitória inspiradora: em julho de 2020 o então governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel (PSC) sancionou uma lei que inclui entre os itens que deve estar na cesta básica o absorvente – se colocando como o primeiro do país nesse tipo de distribuição.
Para essa vitória ocorrer, as meninas do Girl Up Elza Soares escreveram, em síntese, um projeto de lei mesmo sem experiência alguma nesse universo político e enviaram por e-mail para deputados da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Por fim, após a aprovação na Alerj o projeto seguiu para o governador. “Conseguimos aprovar em caráter emergencial e apoiado com distribuição de fraldas infantis e geriátricas”, conta Du Dias Cardoso, 20 anos, que atua nas relações públicas e coordenação de campanhas do clube Girl Up Elza Soares.
Em setembro de 2021, mais uma vitória do clube via projeto de lei: distribuição de absorventes nas escolas públicas do estado do Rio de Janeiro. “Ativismo do sofá não é bem assim como criticam. Conseguimos fazer de casa, apenas com a internet”, comenta Du Cardoso.
Aliás, antes da pandemia, o clube fazia encontros presenciais em comunidades cariocas para orientar sobre educação sexual e menstrual. “Me sinto maior do que eu sou. Na favela Para-Pedro ensinamos mulheres adultas sobre prevenção de gravidez”, diz Julia Cruz, 18 anos, do grupo de mídias do Girl Up Elza Soares, que afirma empolgada: “consegui aprovar a distribuição de absorventes antes de poder dirigir”.
Du Cardoso conta que foi nas discussões com o grupo que percebeu que seu ciclo menstrual estava irregular, foi atrás e recebeu o diagnóstico de endometriose. “Vou ter que fazer cirurgia e se tivesse demorado para descobrir poderia ser pior”, reconhece.
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A campanha Adote um ciclo, do Instituto Ela, fundado por educadoras, convidou de junho a agosto deste ano profissionais da educação de diversos cantos do país para arrecadarem absorventes e amenizaram a pobreza menstrual. Como resultado, a ação envolveu escolas particulares, universidades e empresas que viraram centros de arrecadação e depois distribuíram para escolas públicas e associações de bairro.
“Levantamos o nome da diretora da escola pública e quantas meninas estão em idade de menstruação para doar adequadamente. O foco é evitar evasão escolar e que não tenham problemas com a autoestima por não conseguirem se proteger nesse período”, explica Sonia Colombo, presidente do Instituto Ela, fundadora e diretora da Humus Consultoria.
A saber, foram arrecadados 308 mil absorventes no Amazonas, Distrito Federal, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo. O Instituto Ela criou também vídeos informativos sobre saúde da mulher e menstruação em seu canal do YouTube. Entre as próximas ações está um vídeo ensinando como criar seu próprio absorvente de pano.
Sonia Colombo explica que estão se articulando para garantir o absorvente não apenas em um ciclo menstrual. Uma opção, por exemplo, é escolas particulares “adotarem” escolas públicas e manterem essa prática da doação. “Precisamos sensibilizar diretoras de escolas privadas para ajudarem as escolas com vulnerabilidade e também queremos sensibilizar universidades para que os banheiros possuam caixa com doação de absorvente.”
Em Manaus, capital do Amazonas, o bairro Jorge Teixeira abriga uma parcela da população financeiramente desfavorecida. Ali está instalado o Centro de Educação Integral Elisa Bessa Freire, cuja gestora Maria do Carmo Araújo Fonseca confirma que no período menstrual: “as meninas não vinham para a escola e quando vinham acabavam saindo porque o fluxo é inesperado. Realmente deixava fora da escola de três a cinco dias”.
Nesse meio tempo, o Adote um ciclo chegou uma vez na escola da Maria do Carmo e atendeu 628 alunas. Como resultado, a equipe pedagógica e administrativa passou a fazer coleta e doação mensal de absorventes, inspirados na campanha do Instituto Ela. “Observamos que diminuiu a ausência delas com a desculpa de menstruar. A nossa escola é em área periférica da cidade, chamam de ZL, zona leste de Manaus.”
Já na capital paulista, o particular Colégio São Luís inclui no currículo atividades de voluntariado e estimula os alunos a irem atrás. Emanuelle Duarte, 16 anos, e Carolina Chaves Farias, 17 anos, ambas no 2º ano do ensino médio, por meio de buscas na internet sobre pobreza menstrual descobriram a campanha do Instituto Ela, sensibilizaram as lideranças do colégio e a iniciativa entrou na instituição. “O colégio motiva o voluntariado, somos estimulados a pensar fora da caixa”, conta Carolina Chaves.
Emanuelle ressalta que uma ação dessa precisa virar política pública para se tornar estável. “Já vi absorvente em item de estética, beleza. Precisa ir para os itens básicos.”
Em 14 de setembro deste ano, o Senado aprovou um projeto de lei denominado Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, que entre as ações prevê a distribuição gratuita de absorventes a estudantes de baixa renda de escolas públicas, além de presidiárias, mulheres em vulnerabilidade extrema e moradoras em situação de rua.
Contudo, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), vetou nesta quarta, 7, a distribuição gratuita de absorventes. Ele alega que o projeto não indica a fonte de custeio ou uma medida compensatória. E que o SUS, por exemplo, ao beneficiar apenas um grupo acaba não cumprindo o seu papel de universalidade e que o absorvente não consta na lista de medicamentos essenciais.
A saber, a deputada federal Erika Kokay (PT-DF) está entre os autores desse projeto que veio da Câmara dos Deputados e explica que para atender 5,6 milhões de mulheres o impacto previsto será de R$ 84,5 milhões ao ano, com base em oito absorventes por mês/mulher. “As receitas previstas são de recursos vinculados ao programa de Atenção Primária à Saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), observados os limites de movimentação orçamentária. No caso das beneficiárias presas, os recursos são do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen). Já as cestas básicas entregues pelo Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) deverão conter o absorvente higiênico feminino como item essencial”, detalha Erika. Sobre a decisão de Bolsonaro, ela afirmou no Twitter: “vamos derrubar o veto no Congresso”.
A deputada diz ainda que o PL assegura que nas compras dos absorventes pelo poder público a preferência será por materiais sustentáveis, caso apresentem igualdade de condições, e que esses materiais terão preferência como critério de desempate em relação aos licitantes. Por fim, claro que o projeto vai além da distribuição de absorvente. “A execução do programa no âmbito das escolas da rede pública de ensino deverá incluir a realização de campanhas periódicas de conscientização de alunos e alunas sobre menstruação e sobre dignidade menstrual”. Essas campanhas foram aprovadas por Bolsonaro.
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