NOTÍCIA

Edição 262

Benefícios e dificuldades de implantar projetos de educação sexual nas escolas

Mary Neide faz ponderações sobre o tema, que é um direito previsto no ECA, na BNCC e nos Parâmetros Curriculares

Publicado em 13/11/2019

por Eduardo Marini

mary neide 11 "Mostrar que meninos e meninas podem dividir brinquedos de um e de outro já é educação sexual" (foto: arquivo pessoal)

A psicóloga e educadora Mary Neide Damico Figueiró conhece como poucos as barreiras encontradas no ambiente educacional brasileiro quando o assunto é implantar programas de educação sexual. Mestre em psicologia escolar e doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), com a tese A formação de educadores sexuais: possibilidades e limites, professora sênior da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Mary Neide é um dos profissionais mais requisitados por colégios e redes escolares do país para cursos e palestras sobre o tema. Nessa entrevista a Educação, ela qualifica de “lamentáveis” as posições “ultraconservadoras” do presidente Jair Bolsonaro e de seus auxiliares sobre o tema e afirma que a educação sexual é, antes de tudo, um “direito dos adolescentes e jovens previsto por lei”. Confira:


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O presidente Bolsonaro disse que educação sexual deve ser feita “pelo papai e pela mamãe”, e não na escola. O que acha?

Essa e outras manifestações ultraconservadoras do presidente e de seus auxiliares, sobre educação sexual e outras questões relacionadas a comportamento, são lamentáveis. Falta a eles entendimento sobre as funções da escola, do professor, dos pais e da família nesse contexto. Fazem distorções imensas sobre o tema. Os pais obviamente contribuem para a educação dos filhos, inclusive no plano da sexualidade, a vida inteira. Mas, como ocorre em outras áreas, também nesta a atuação exclusiva dos pais está longe de ser suficiente.

Por que educação sexual nas escolas é importante?

Praticamente todos os estudos e pesquisas feitos no mundo sobre o tema mostram que alunos submetidos à educação sexual nas escolas, ao contrário do que pensam os mais conservadores, iniciam mais tarde a vida sexual, são mais cuidadosos, escolhem melhores parceiros e envolvem-se com gravidez precoce e infecções sexualmente transmissíveis, as ISTs – agora usamos infecções em vez de doença nesses casos – com frequência bem menor. E, para além de tudo isso, é um direito de todos eles, definido por lei. Está no Estatuto da Criança e do Adolescente, nos Parâmetros Curriculares Nacionais e também na Base Nacional Comum Curricular.

É possível definir uma idade padrão para a iniciação sexual?

Oficialmente, não. Essa definição fica a cargo de cada um e dos consensos familiares, porque a questão varia de jovem a jovem e de família a família. A rigor, sabemos que, no mundo real, é mais do que comum nem mesmo pais e familiares terem informação ou controle sobre como, com quem, em que períodos e circunstâncias a filha ou o filho iniciaram ou irão inaugurar a vida sexual. Mesmo porque adolescentes e jovens inseguros com os pais não costumam passar a eles essas informações, ou boa parte delas, com medo de serem reprimidos em algo que desejam fazer naquele momento da vida por paixão ou outra motivação.

E, para evitar ter os passos controlados ou sofrer pressão para deixar o namorado ou a namorada, por exemplo, não dizem o que se passa com eles. Eis o cenário de risco para gravidez precoce e ISTs, entre outras coisas. Essas questões também evidenciam a necessidade de professores e escolas para trabalhar o tema. Como as relações emocionais com professores e profissionais de educação são infinitamente menores do que as mantidas com os pais, a chance de os jovens procurarem orientação independente é bem maior. Mas que fique claro: não conversar sobre sexualidade e profilaxia com os filhos não significa adiar a vida sexual desses adolescentes e jovens. O que normalmente ocorre é exatamente o contrário.

O que um professor deve fazer para transmitir um bom conteúdo de educação sexual?

Antes de tudo, funcionar como catalisador, incentivador, criando condições para o debate em sala e a leitura sobre o conteúdo fora dela. O debate traz à tona as distorções, permitindo correções. A pesquisa aumenta o conhecimento, que depois é dividido com colegas, familiares, até o namorado. Com as crianças e os mais novos, atividades lúdicas, jogos e trabalhos tendo como base letras de músicas, poemas e textos costumam funcionar bem. A professora deve estudar e passar o conteúdo sem ditar regras de comportamento sexual.

Pais devem saber de tudo o que se passa na rotina da orientação sexual de seus filhos na escola?

Eis um ponto delicado. O professor, a princípio, deve encaminhar os temas e orientar seus alunos com autonomia, no ambiente da escola. Penso que pais só devem ser convocados em casos extremos, quando a situação caminha para algo que realmente exige definição dos responsáveis. Se uma criança é vista repetidamente se masturbando na escola, no banheiro ou fora dele, por exemplo, chamar os pais poderá ser pior. Eles poderão reprimir a criança, tratar o assunto com cerimônia e preocupações exageradas. O melhor é aproveitar as oportunidades e tratar dessa e de outras questões próximas com estudo e debate em sala, obviamente sem dizer que é o caso de alguém da turma e muito menos revelar o nome. Com isso, o aluno aproveita para refletir e, de quebra, a turma trabalha o tema. Se ainda assim não resolver, o melhor é a professora ter uma conversa particular com o aluno. Em mais de 90% dos casos, essas duas medidas costumam resolver.

O que um programa de educação sexual deve abordar? Como ele deve ser distribuído no infantil, fundamental e médio?

Vários pontos podem ser trabalhados já no ensino infantil. O principal deles é a igualdade de gênero, sobretudo sem essa ideia constrangedora e repressiva de rosa para menina e azul para menino, por exemplo. Mostrar que meninos e meninas podem dividir brinquedos de um e de outro já é educação sexual. Acima de seis anos, no fundamental, é importante ampliar a questão de gênero para respeito e igualdade, sobretudo dos meninos em relação às meninas.

É recomendável abordar temas como diversidade sexual nos primeiros anos do fundamental?

Sim, claro, se o contexto permitir. E o que são permissões do contexto? São situações em que a criança pergunta alguma coisa e você simplesmente não pode responder “isso não existe”, ou “deixe isso para lá” ou ainda “você não está na idade de saber sobre isso”. Por quê? Pelo fato mero de que ela, ao perguntar, na prática já está sabendo ou tendo alguma ideia sobre o que perguntou. E, convenhamos, é infinitamente melhor passar algo com linguagem e limites definidos com responsabilidade por um educador preparado do que deixar que ela receba a informação carregada de distorções, preconceitos ou mesmo erros de fato.

A criança pergunta, por exemplo, o que é gay. Ora, quem ainda acredita que uma criança de seis a oito anos, inserida no contexto atual, com informações caindo de todos os lados por internet, celular, amigos, primos, coleguinhas, ainda não ouviu algo claro sobre o que é ser gay em algum lugar? Ele vai perguntar – e, quando perguntar, deverá receber a melhor resposta possível. Nem preciso dizer a educadores que, ao contrário do que diz e teme o ultraconservadorismo equivocado, tratar desses assuntos em nada direciona uma criança ou jovem para ser hetero, homo ou bissexual.

E do fundamental II ao médio?

É a hora de detalhar as ISTs, suas formas de transmissão e os efeitos de maneira progressiva. E, claro, trabalhar os temas relacionados às questões fisiológicas relativas à atividade sexual e à gravidez. Como essas questões interferem no corpo e na vida dos meninos e, principalmente, das meninas. Em paralelo com a questão dos corpos, é preciso chamar atenção para a importância de se evitar a gravidez precoce, em momento não planejado, por tudo o que ela pode conturbar na trajetória de um adolescente ou jovem.

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