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Educação especial inclusiva ainda é um desafio

O isolamento social é uma barreira ainda maior para os alunos com deficiência. Contudo, quando há adaptação do conteúdo, a aprendizagem é facilitada

Publicado em 21/09/2020

por Laura Rachid

“Visito uma casa com 12 crianças que estão sem aula porque só a mãe tem celular, mas não tem internet. E além de tudo, dessas 12, duas crianças tem deficiência, uma microcefalia e a outra autismo leve”, conta a profissional de educação especial Camila Ferreira, que iniciou na pandemia, junto a uma amiga, o Projeto Casa de Jesus, que leva voluntariamente cestas básicas, remédios, móveis e dá ainda apoio educacional a pessoas que vivem em vulnerabilidade social. A casa dessa família fica no bairro Valle Verde, em Araraquara, interior de São Paulo. “Vou lá a cada 15 dias. Levo livros para as crianças e atividades como de português e matemática, para que elas possam ter algum conteúdo nessa época e não percam o gosto pela escola”, desabafa.

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A saber, Camila revela que tem aumentado a procura por professores de reforço particular nesse período de isolamento. Ela é professora em uma escola municipal de Boa Esperança do Sul, interior de São Paulo, onde orienta uma aluna cega de oito anos, que frequenta o 3º ano do ensino fundamental e entrou como educadora de braille por conta de  um processo judicial, uma vez que a menina precisava de acompanhamento integral e a mãe ganhou esse direito na justiça.

deficientes escola

“Também acompanho um grupo de jovens com síndrome de Down. A aula remota está sendo um desafio, como desligar o microfone e respeitar a fala do outro”, conta Camila Ferreira (foto: arquivo pessoal)

“O meu trabalho funciona assim: eu tenho acesso antecipado ao conteúdo que será passado na semana e o deixo mais próximo da realidade da minha aluna. Só que agora, no meu caso, o grande problema é que, sendo uma criança cega, eu preciso de recurso tátil e nesse momento remoto as aulas estão sendo visuais. Professores enviam muita imagem, vídeo. É complicado.”

A atuação da professora de educação especial do interior de São Paulo é cheia de atenção e respeita a realidade de sua aluna, o que enfatiza a necessidade de que todas as pessoas possuem o direito de estudar. Nesse sentido, é sempre bom lembrar que o capítulo IV do Estatuto da Pessoa com Deficiência determina o “aprimoramento dos sistemas educacionais, visando a garantir condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, por meio da oferta de serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as barreiras e promovam a inclusão plena.”

Sendo assim, Camila faz a leitura de todo o conteúdo para sua aluna cega. “Por exemplo, em uma atividade de produção de texto, a professora passa uma imagem e pede para os alunos escreverem sobre o que veem. Eu descrevo a imagem e ela vai colocando em braille.” O acompanhamento ocorre por videochamada e a mãe da aluna também envia fotos das atividades.

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A realidade da maioria dos alunos dessa escola municipal regular de Boa Esperança do Sul é dura, são famílias pobres e nem todos possuem internet em casa ou, quando há, o acesso não é dos melhores. “Uma sala de 30 alunos, os que participam efetivamente da aula remota não passam de 50%”, explica Camila. Para contornar essa defasagem, a escola imprime todo o material que será trabalhado durante a semana e os alunos possuem a alternativa de buscar.

“Na minha escola também há professoras que acompanham alunas autistas e que não estão fazendo as atividades nesse período de isolamento social. A internet não funciona e elas até se ofereceram para levar os materiais à casa dessas alunas, só que os pais não estão conseguindo ajudar. No caso de alunos com deficiência tivemos uma evasão muito grande”, revela.

Barreiras na formação docente

A formação de professores carece de conteúdos e conhecimentos voltados para uma perspectiva inclusiva, alerta Mayara Erbes Ranzan, graduada em educação física na modalidade licenciatura, com mestrado em educação especial, especialização em atividade física adaptada e doutoranda em educação especial pela Universidade Federal de São Carlos (bolsista Capes). Suas pesquisas são voltadas à formação de professores que atuarão com pessoas com deficiência. “É oportunizar conhecimento. O meu foco é na educação física, mas tudo o que eu proponho, as outras disciplinas podem usufruir.”

educação especial

Mayara Ranzan: a formação de professores carece de conteúdos e conhecimentos voltados para uma perspectiva inclusiva (foto: arquivo pessoal)

Assim, Mayara enfatiza que o planejamento de ensino das faculdades e universidades é construído sem pensar no aluno com deficiência, sendo este deixado de lado. “Na formação em educação física, a gente tem apenas uma única disciplina sobre pessoas com deficiência, não acontece, de fato, uma interdisciplinaridade. Por exemplo, a gente tem vôlei, basquete, e essas disciplinas não abordam esse público.”

No caso, há apenas uma única disciplina específica voltada ao aluno com deficiência, sendo muito conteúdo para uma carga horária pequena. “Seria muito mais fácil o contrário, se as disciplinas trouxessem o processo para elas. Se vou dar voleibol, eu posso incluir deficiência também. E o que ocorre é que no chão da escola o professor tem dificuldade de trabalhar com esse público”, explica Mayara.

“A teoria é muito distante da realidade. E é muito difícil a gente culpar esse professor. É um problema da formação dele. Lógico que você também pode buscar cursos além da graduação para trabalhar com esse público, mas entendo que na graduação temos que ser trabalhados para tudo e todos.”

Em relação ao comprometimento do Brasil na inclusão educacional desses alunos, segundo ela, há avanços, e há melhoramentos também. “A gente cumpre no sentido de a pessoa fazer a matrícula, ir para a escola. Mas a gente peca muito no momento de ensinar esse aluno. E o que peca é a formação para esse público. Temos que buscar sempre a equidade e não só igualdade”, conclui.

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Mais desafios na educação especial

Enquanto essa aluna cega consegue acompanhar a aprendizagem mesmo em uma escola regular, essa não é a realidade do Guilherme, oito anos, que é múltiplo, no caso, surdo e deficiente intelectual. O menino frequenta o 2º ano do fundamental de uma EMEBs (Escola Municipal de Educação Bilíngue para Surdos), na capital paulista. Só que a mãe do Guilherme, Fabiana Trigo, desabafa que é uma instituição preparada para surdos e não para múltiplos.

“É aquela história, a gente não se encaixa nem numa coisa e nem em outra. É uma luta constante mesmo. Há instituições de reabilitação que não atendem crianças surdas. Então até dentro das próprias deficiências tem uma seletividade e a gente fica tentando achar o caminho do meio”, desabafa Fabiana.

Este ano o Guilherme foi transferido de EMEBs pois a anterior, segundo a mãe, não estava sendo inclusiva. “Senti muita falta de comprometimento, falta de engajamento, falta de material adaptado para ele e para o nível dele. A atual parece mais sólida, com um trabalho mais firme na questão de atendimento a múltiplos. Só que veio a pandemia e a gente ainda não conseguiu usufruir muito.”

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Por conta de o Guilherme ser deficiente múltiplo, há dificuldade de encontrar uma escola que o atenda por completo, explica a mãe Fabiana (foto: arquivo pessoaç)

Mesmo a distância, Fabiana está gostando do atendimento. “Você percebe, por exemplo, que é uma escola com olhar diferente para a criança com deficiência. Mas, em uma cidade como São Paulo, ter só um lugar de referência, nesse nível, é um absurdo. Em outros ambientes eles [deficientes] já são excluídos de muita coisa. Educação é um direito e a gente luta para que seja de qualidade para todos.”

A escola de educação especial atual do Guilherme busca dar suporte para o menino. A mãe foi três vezes retirar material, mas, segundo ela, o conteúdo não condiz com a realidade de aprendizagem do menino. A própria Fabiana, que é mãe também do Gustavo, quatro anos, e da Gabriela, 16, acaba adaptando alguns exercícios. “Nos últimos meses, pedi para nem mandar, porque não tinha sentido. Na verdade, a escola para ele é mais para codesenvolvimento de comunicação, interação. E isso não está acontecendo por conta da pandemia. Para nós, está fazendo muita falta a escola.” Vale destacar que o menino não está parado, suas terapias individuais semanais com fonoaudióloga e psicopedagoga continuam acontecendo.

Cristiane Souza, 46 anos, está no 3º ano do fundamental de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Ela estuda na EMEBs Anne Sullivan, zona sul da capital paulista. Sendo surda e, mesmo com obstáculos, está mantendo os estudos a distância. Em resumo, a irmã ouvinte da Cristiane, Adriana Souze, contou como está sendo essa adaptação: o primeiro semestre ficou voltado a aprender a mexer na plataforma EAD, o que foi um grande desafio.

“Os professores passaram um bom tempo ensinando a acessar o sistema. Digamos que isso durou dois meses até ter a primeira atividade. Agora ela consegue fazer as atividades. Está rendendo mais, só que ainda tem dificuldade”, explica. Segundo Adriana, comparado a uma aula presencial, o tempo de ensino é bem reduzido. “Chega a ser 70% a menos de conteúdo, justamente pela dificuldade de não terem o professor o tempo todo para ensiná-los. Digamos que não há um aproveitamento adequado de aprendizagem.”

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Pandemia

Dados de 2018 do último censo escolar divulgado pelo Inep mostram que o número de alunos com deficiência, altas habilidades e transtornos globais do desenvolvimento vem aumentando. Em 2014, o país tinha 886.815 alunos. Já em 2018, as matrículas atingiram 1,2 milhão, um aumento de 33,2% em relação a 2014. Segundo o Inep, esse salto ocorreu porque as matrículas no ensino médio dobraram nesse período. A pesquisa também aponta que, em 2018, 92,1% de estudantes nesses perfis frequentavam escolas comuns.

Para Luiza Corrêa, coordenadora de advocacy do Instituto Rodrigo Mendes, organização sem fins lucrativos com a missão de colaborar para que toda pessoa com deficiência tenha uma educação de qualidade na escola comum, esses dados do censo são significativos.

Indagada sobre dicas para o professor incluir e não deixar nenhum aluno de lado, Luiza diz:

“a gente sempre aconselha que todo mundo aprende, independentemente de como aprende e em qual velocidade. Todo mundo tem potencial e capacidade. Recomendamos trocar a percepção de dificuldade para um olhar de possibilidade. Conversar com o próprio estudante e conversar com a família do estudante para entender a realidade”.

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Luiza Corrêa é advocacy do Instituto Rodrigo Mendes e apoia pesquisas que fortaleçam o avanço da educação inclusiva no Brasil (foto: divulgação)

Indo na mesma linha da Mayara Ranzan, outra orientação da Luiza é pensar em uma atividade para toda a turma e não uma para o grupo e outra para o estudante com deficiência.

Em julho, o Instituto Rodrigo Mendes lançou o Protocolos sobre educação inclusiva durante a pandemia da covid-19 – Um sobrevoo por 23 países e organismos internacionais. Segundo o relatório, a maior parte dos protocolos internacionais e os 45 especialistas estrangeiros consultados consideram que os alunos com deficiência não podem ser deixados de lado no retorno presencial, uma vez que tal medida viola os direitos humanos, pontua Luiza.

Poucos dias após a divulgação desse relatório, o Conselho Nacional de Educação (CNE) lançou o parecer 11/2020, sobre o retorno presencial, só que excluindo os estudantes com deficiência, apontando que não voltariam com os demais. “A sociedade civil se articulou, inclusive a gente, para pontuar que o parecer estava sendo discriminatório e violando a regulamentação existente. Tudo de maneira muito dialógica e conseguimos que o MEC não aprovasse o item 8”, explica a advogada.  O ajuste no parecer aconteceu após o Ministério Público Federal (MPF) alertar o CNE.

Aliás, sobre os cuidados no retorno presencial, o relatório do Instituto Rodrigo Mendes aconselha que o uso de máscaras em estudantes com deficiência requer uma avaliação caso a caso. Para a pessoa com deficiência auditiva, por exemplo, o indicado é o uso de máscaras transparentes por toda a escola. Já alunos com transtornos do espectro do autismo devem ter flexibilidade quanto ao uso. Pessoas que tenham movimentos dos membros superiores reduzidos e não conseguem remover a máscara sozinhas quando necessário, não devem ser obrigadas a usá-las, uma vez que há risco de sufocamento.

Clique aqui para acessar o relatório gratuitamente.

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Autor

Laura Rachid


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