NOTÍCIA
Atentas aos benefícios de desenvolver habilidades cognitivas a partir de experimentações e atividades práticas em grupos, escolas adotam a prática das ‘mãos à obra’
Publicado em 18/02/2019
FabLab (laboratórios de fábrica ou de fabricação), do-it-yourself (DIY, ou faça você mesmo), hands on (no popular, mão na massa), maker movement (movimento maker). Termos como esses começaram a se tornar familiares no ambiente de uma boa quantidade de escolas privadas e públicas brasileiras, nos últimos anos, com a introdução da Cultura Maker no ambiente dos ensinos infantil, fundamental e médio.
O principal pilar dessa cultura é a ideia de que eu, você, seus alunos e qualquer outro ser humano podemos fabricar, construir, reparar e alterar objetos dos mais variados tipos e funções com as próprias mãos e uma boa dose de colaboração e transmissão de informações entre grupos e pessoas.
“Precisamos aprimorar várias questões no relacionamento da Cultura Maker com a rotina escolar”, avalia a arquiteta Heloísa Domingues Neves, uma das mais respeitadas consultoras sobre o tema do país, criadora do We Fab (wefab.cc), ponto de encontro entre makers, empresários e empresas. “Para dar um exemplo insólito: os períodos médios de aula costumam durar 50 minutos, e uma impressora 3D às vezes leva uma hora e meia para produzir um objeto pequeno. Outra questão importante – e difícil – é a do preparo dos professores. De qualquer forma, os ganhos são claros porque os jovens se sentem muito bem nesses ambientes. Por isso todo mundo está buscando essas estruturas.”
Educação procurou escolas, especialistas, empresas e instituições do setor para entender como a Cultura Maker nasceu e se fortaleceu no mundo, chegou ao Brasil e rumou da sociedade para os laboratórios, estúdios, espaços de criação e salas de aula.
A mais respeitada autoridade acadêmica do mundo na atualidade em assuntos ligados à Cultura Maker nas escolas, para aprimorar o aprendizado e preparar jovens diante dos desafios do futuro, é um brasileiro. Engenheiro formado na Universidade de São Paulo, Paulo Blikstein é professor-doutor das escolas de Educação e de Engenharia da universidade americana de Stanford, com mestrado pelo Massachusetts Institute of Technology, o MIT, e doutorado pela Northwestern University, de Chicago. Dirige o Transformative Learning Technologies Lab e presta consultoria em projetos educacionais nos Estados Unidos e em outros países, incluindo o Brasil.
Blikstein criou em 2009 o FabLab@school, primeiro programa mundial para levar laboratórios-fábrica e espaços de produção maker a escolas públicas e privadas dos ensinos fundamental e médio. O projeto animou o professor e sua equipe de mestres e doutores, em Stanford, a realizar estudos para verificar se as criações nos labs com computadores, circuitos, processadores, impressoras e cortadoras a laser trazem efetivamente ganho de aprendizado e desempenho para os alunos.
Os resultados confirmaram as teses do engenheiro. Em um deles, um problema foi apresentado a dois grupos de alunos de maneira diferente. Um conheceu a tarefa, em primeiro lugar, na bancada do laboratório, e procurou soluções na prática a partir do que achava conveniente no momento. Em seguida, este mesmo grupo acompanhou o desenvolvimento da tarefa em um vídeo. Para o segundo, a mesma tarefa foi apresentada antes em vídeo e, depois, desenvolvida no laboratório. “Os alunos que exploraram o problema antes no laboratório tiveram performance 30% superior à dos que iniciaram o processo pelas imagens”, comentou Blikstein numa palestra no Brasil.
Em outra experiência, dois grupos de alunos receberam o vídeo tutorial de um mesmo trabalho. Em um dos filmes, um professor, no canto da tela, dava alguma instrução à medida que surgiam as etapas. No outro não havia orientação. “A turma sem ajuda do professor também teve desempenho 30% superior, uma evidência de que, em muitos casos, sobretudo os ligados à ciência, engenharia, tecnologia e matemática, é mais produtivo deixar o aluno testar caminhos antes de receber o conteúdo teórico passado pelo professor”, comparou.
O terceiro estudo teve como objetivo descobrir a melhor maneira de organizar grupos de aprendizado de acordo com a capacidade de absorção de conhecimento. Os pesquisadores selecionaram quatro alunos, dois com notas altas e dois com baixas, e os revezaram em duplas de trabalho nos labs.
A constatação de que os dois melhores alunos juntos produziram os resultados mais altos, e os piores os mais baixos, não foi surpresa. Importante foi constatar que, ao colocar um menino com notas altas no comando do computador, das impressoras 3D ou dos aparelhos, deixando o restante para o outro, o nível de aprendizado foi quase tão baixo quanto o da dupla com notas inferiores. E, com os alunos de notas baixas no comando, a performance subiu quase aos índices da dupla com melhores avaliações.
Blikstein e sua equipe tiraram boas lições dos experimentos. “No caso das duplas, a autoconfiança dos bons alunos pode gerar dispersão, falta de concentração e de produtividade no geral”, analisou. “O conjunto de resultados mostra que cultura dos fablabs e o Movimento Maker não servem, nas escolas, apenas como instrumento lúdico para os alunos se divertirem. Na prática, eles estão desenvolvendo habilidades de raciocínio úteis para todas as matérias, atividades e áreas do conhecimento. A prática e o despertar da curiosidade trazem embasamento em teorias cognitivas capaz de gerar aprendizado mais sólido, e com maior rapidez, do que nos casos em que a teoria é passada unicamente no vácuo, sem experimentação.”
Nos últimos anos, instituições de ensino importantes começaram a apostar nas ideias de Blikstein no Brasil. O pesquisador inspirou o centenário Colégio Dante Alighieri a inaugurar, no início do ano passado, o FabDante, um laboratório de criatividade, inovação e fabricação digital e artesanal com tecnologia de ponta para criação de protótipos, realidade aumentada, produção digital, softwares e hardwares para alunos do ensino médio.
O projeto reúne conceitos desenvolvidos pela equipe do brasileiro em Stanford e também propostas do MIT baseadas nas ideias da Cultura Maker de aprendizagem criativa, colaboração, comunicação e, sobretudo, posicionamento do aluno no centro do processo de aprendizagem.
O FabDante abriga computadores, impressoras 3D, fresadora CNC, cortadora a laser, serras manuais e elétricas, serrote, furadeira, chave de fenda, alicate, maçarico, máquinas e equipamentos de costura, bordado, máquina de costura, bordado, chromakey para gravação de vídeos, lousa digital, equipamentos e kits para prototipação eletrônica, automação e robótica, microcontroladores, motores, componentes eletrônicos e ferramentas de mecânica.
A ideia de montar um lab poderoso amadureceu no Dante em 2017, após a inauguração de um espaço de criatividade voltado à educação infantil. “Queremos desenvolver as habilidades que farão parte dos desafios do século 21”, afirma a coordenadora de tecnologia do colégio, Valdenice Minatel, ex-aluna de Blikstein em um curso de formação de educadores para a Cultura Maker, o FabLearn. “Essas experimentações ampliam o repertório cognitivo e mobilizam a criatividade e o pensamento crítico para resolução de problemas”, acrescenta.
Em Santana de Parnaíba, na região metropolitana de São Paulo, a Cultura Maker é um dos pilares do processo educacional da Escola Castanheiras desde a fundação, há 14 anos. Eles criaram a Oficina de Invenções, resultado do trabalho de um de seus professores, Tomás Vega, doutor pela Unicamp em Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte. As pesquisas de Vega foram inspiradas nos conceitos do filósofo tcheco naturalizado brasileiro Vilém Flusser sobre uso de arte, design e tecnologia no processo educacional.
“A Oficina nasceu em 2012 como atividade complementar, mas logo foi integrada às atividades oficiais do currículo do médio. Iniciamos agora a adaptação ao Fundamental. Ela oferece, majoritariamente, ferramentas tradicionais: serras circular e de fita, madeira e dezenas de outros materiais e maquinários não necessariamente ligados à computação e ao mundo digital, que também são trabalhados na escola”, explica o educador. “Nosso objetivo é buscar uma pedagogia da criação com liberdade individual. Costumo brincar com os alunos dizendo: “se vocês quiserem construir um foguete para ir a Marte, talvez ainda não dê, mas o importante é ver todo esse aparato e pensar que um dia, na escola ou em outro lugar, isso poderá ser possível”.
Os líderes do Colégio Elvira Brandão, em São Paulo, são conhecidos no setor pela postura early adopter na tomada de decisões. Isso significa estar entre os que avaliam e adotam mais rapidamente as novidades consideradas produtivas. No caso da onda maker, eles não demoraram a substituir o laboratório tradicional de informática por um espaço criativo de desenvolvimento e produção de protótipos das ideias dos estudantes.
“Houve um aprimoramento no desenvolvimento das competências e habilidades”, constata a gestora de tecnologia da escola, Adriana Cruz.
O Elvira Brandão foi um dos primeiros parceiros do Nave a Vela, grupo especializado na área que atende outros ícones da educação paulistana, entre eles Vera Cruz, Santa Cruz e Escola Viva. O programa de inovação e Cultura Maker da empresa envolve assessoria para a montagem dos labs e espaços maker, material didático, formação de educadores e acompanhamento de resultados. A ação atual envolve mais de 15 mil alunos em 60 escolas de dez estados.
“O Movimento Maker na educação não existe, majoritariamente, para funcionar como aparato lúdico para os alunos ou pela existência e o acesso mais simples à tecnologia”, ressalva o CEO da empresa, Lucas Torres. “Ele se expandiu em escolas do mundo inteiro pela necessidade, eu diria obrigação, dos educadores de se assegurarem de que estão formando seus alunos com a amplitude e a densidade suficientes para o desafio do futuro”, conclui.
No Guilherme Dumont Villares, também em São Paulo, os espaços e o movimento surgiram do desdobramento de uma prática antiga: o uso da sucata como material de criação e produção. A escola adota há muitos anos a cultura do faça-você-mesmo como forma de integrar as matérias em atividades para a construção de um conhecimento mais abrangente. “Não desenvolvemos a cultura maker em um único espaço, mas em todo o colégio. Escolhemos o melhor cenário de acordo com cada projeto”, explica a responsável pela tecnologia educacional, Jucilene Marsura.
Exemplos recentes dessa produção são o robô feito por crianças de quatro anos com caixas de papelão, com QR codes que remetem a filmes em que os próprios alunos fazem comentários sobre partes do corpo humano, e uma exposição sobre doenças tecnológicas feita com tablets acomodados em caixas de papelão e instalados nos corredores da escola. “Nossa metodologia é ativa nesses casos. Fazemos o aluno chegar ao conhecimento com situações práticas mediadas pelos professores com a apresentação dos conteúdos formais”, afirma Jucilene.
A chegada da Cultura Maker ao ambiente da educação abriu um caminho de mercado também para empresas voltadas para cursos, mobiliário inteligente e parceiros de escolas privadas em projetos educacionais. A Zoom Education oferece projetos com conteúdo maker a seus parceiros de acordo com o modelo STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática, na sigla em inglês; leia entrevista sobre o assunto nesta reportagem).
“Nossas parcerias incluem, no mínimo, 16 jornadas maker por ano letivo em cada sala, com treinamento e acompanhamento dos professores e dos nossos especialistas”, detalha o CEO da empresa, Marcos Wesley. No mercado há 22 anos, a Zoom tem parceria com 1,2 mil escolas, que reúnem 320 alunos.
A Positivo Tecnologia Educacional, braço do Grupo Positivo, outro player importante do setor, é uma empresa B2B que oferece soluções em aprendizagem com alta tecnologia para escolas privadas e gestores públicos de educação. Segundo o CEO Álvaro Cruz, “o objetivo é transformar a sala de aula em um ambiente estimulante e desafiador para os alunos”. Entre seus principais produtos estão o Pense Matemática, as Mesas Educacionais, o Laboratório Móvel Positivo, os Ecossistemas Adaptativos Aprimora, os Aplicativos Educacionais, a Central de Projetos, os gerenciadores de sala de aula, além de dispositivos e equipamentos para escolas, alunos e professores. A empresa é, também, distribuidora oficial dos materiais da Lego Education no país. Atualmente, o grupo atende mais de duas mil escolas, que reúnem cerca de 450 mil alunos.
O arquiteto e designer Álvaro Luis Cruz, vice-presidente de Inovação Educacional da empresa, destaca a importância da Cultura Maker para a formação do profissional do futuro. “Nossos produtos e pacotes de parceria são elaborados para a busca de criatividade, empreendedorismo e letramento digital. Os alunos precisam construir algo que dê significado ao aprendizado desenvolvido. Para nós, Cultura Maker é um capítulo dentro da Educação 4.0, o processo de busca de soluções educacionais para o futuro diante do movimento internacional das rápidas mudanças nos empregos e funções” detalha.
O executivo justifica a preocupação. “Um estudo recente, apresentado no Fórum Mundial, atesta que existe a chance, nas sociedades modernas, de até 65% das funções e profissões atuais desaparecerem ou serem trocadas por outras no período de formação dos alunos que ingressam hoje no ensino infantil”, diz. “Se não houvesse outra motivação, apenas esse dado seria suficiente para levar educadores a buscar métodos mais abrangentes para formar os cidadãos diante de mudanças em velocidades cada vez mais avassaladoras”, completa.
A Mind Makers, outra empresa parceira de escolas e grupos educacionais, parte da busca do pensamento computacional para ajudar os alunos a enxergar melhor os problemas na busca de soluções. O processo é dividido em quatro partes: eletrônica digital, robótica, programação e análise. Os métodos e produtos estão baseados em recursos didáticos dos movimentos maker e code.
O movimento code prega que “crianças não somente são capazes de aprender a programar, como também de desenvolver, a partir deste domínio, diversas outras habilidades altamente relevantes” para o futuro. “Entregamos kits de estudo e formação às escolas parceiras. Temos um aplicativo e uma plataforma em tempo real para acompanhamento dos trabalhos. Passamos o projeto da sala de atividades para cada unidade, de acordo com sua realidade. A escola monta a sala e entramos com todo o treinamento para que o conteúdo faça parte da grade curricular. Não trabalhamos fora dela, mesmo porque acreditamos que não existe possibilidade de mensuração de resultados de outra forma”, explica Paulo Alvim, um dos fundadores da empresa, formado em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A Mind Makers terá 42 escolas parceiras, com 20 mil alunos, em 2019.
No caso do Cel.Lep, um dos mais importantes players do mercado de idiomas em parcerias e unidades próprias, a entrada no mundo maker estudantil foi feita por meio da MadCode, principal rede de programação de computadores para crianças e adolescentes do país, adquirida pelo grupo no ano passado.
Além de integrar os dois ensinos em espaços especialmente desenvolvidos para o processo, a empresa lançou projetos de responsabilidade social baseados no do-it-yourself em comunidades carentes do Estado de São Paulo, como a de Heliópolis. “Sempre fomos reconhecidos pela seriedade com que unimos tecnologia e conteúdo em nossos cursos, pacotes e parcerias. Sabemos desenvolver essa fusão. Por isso, a absorção da cultura e do Movimento Maker em nossa estrutura foi mais um passo natural rumo à evolução”, avalia o CEO do grupo, Alexandre Garcia.
A onda de montagem de laboratórios e espaços makers nas escolas abriu espaço também para os fabricantes de móveis funcionais específicos para a atividade. “Nossos designers recebem preparação especial, em ambientes escolares, para pensarem na multifuncionalidade de cada peça que direcionamos às escolas. Uma arquiteta com esse preparo supervisiona a produção. Nada aqui é feito para os alunos sem que tenha, no mínimo, três funções”, garante Daniele Andrada, diretora da Ediunfo, uma das empresas líderes no nicho, com fábrica própria em Itaquaquecetuba, na região metropolitana de São Paulo.
Paulo Blikstein, o brasileiro da universidade de Stanford, costuma desenvolver a seguinte ideia em entrevistas e palestras: “Ouço com frequência as pessoas dizerem que educação maker deve ser reservada, no Brasil, às escolas privadas com recursos, pois as públicas são carentes e têm muitos problemas a resolver. É exatamente o contrário: o país precisa se esforçar mais para dar o aparato completo justamente a essas crianças e jovens mais pobres, que dificilmente terão como buscar essa formação abrangente longe de suas escolas e se equiparar aos concorrentes ricos que, ao contrário, sempre terão como complementar a educação fora da primeira unidade escolar”. Tese aceita, professor – e sem necessidade de experimento prático para aprovação.
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