NOTÍCIA

Edição 219

Para virar a página

Depois de mais de cinco décadas de um conflito que simbolizou a divisão binária do mundo no século 20, Estados Unidos e Cuba ensaiam reaproximação histórica

Publicado em 08/07/2015

por Luciano Velleda

© PRENSA LATINA/Xinhua Press/Corbis
O líder cubano Raúl Castro se encontra com o presidente americano Barack Obama no Panamá: histórico aperto de mãos

Todos os dias, a cada minuto, nos mais distintos lugares do planeta, homens apertam as mãos uns dos outros. Um gesto corriqueiro e formal, expressão de civilidade e educação. Um gesto simples e até mesmo banal nas atribulações do cotidiano. Mas quando as mãos que se entrelaçam são as do presidente dos Estados Unidos e do presidente de Cuba, como ocorreu no último dia 10 de abril, o gesto adquire status de registro histórico. Um ato que muitos cidadãos – não só cubanos ou americanos – jamais pensaram estar vivos para presenciar.
A iniciativa dos presidentes Barack Obama e Raúl Castro aconteceu na Cidade do Panamá, durante abertura da Cúpula das Américas, evento da Organização dos Estados Americanos (OEA). O aperto de mãos foi o complemento visual do anúncio que surpreendeu o mundo quatro meses antes, no dia 17 de dezembro, quando ambos proclamaram, cada um no seu país, a intenção de retomar as relações diplomáticas e dar fim a mais de 50 anos de animosidade, discursos inflamados, sabotagens, acusações, golpes e contragolpes – movimentos constitutivos da Guerra Fria, símbolo de um tempo em que o mundo se dividia entre o Ocidente capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e o Oriente comunista guiado pela extinta União Soviética.
Só que no meio desse amplo território capitalista e a poucos quilômetros de distância da costa americana da Flórida, uma diminuta ilha caribenha decidiu tomar outro rumo e não seguir as diretrizes da potência vizinha. O tempo passou e a Guerra Fria chegou ao fim com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o desmanche da União Soviética nos anos seguintes. Mas isso não bastou para que Cuba e Estados Unidos retomassem relações diplomáticas. Para muitos analistas e historiadores, a atual retomada do diálogo entre os dois países é que poderá, definitivamente, encerrar o último capítulo da Guerra Fria e, quem sabe, virar a página do século 20.
O rompimento
A origem da ruptura entre Estados Unidos e Cuba remonta ao ano de 1959, quando o então jovem Fidel Castro e seus combatentes retiraram do poder o presidente e ditador cubano Fulgencio Batista. Até aquele ano, a pequena ilha quase “grudada” na costa leste americana era um aprazível destino caribenho para os cidadãos americanos e porto seguro para empresas dos Estados Unidos que ali investiam e obtinham lucros. Fidel e seus aliados fizeram a Revolução Cubana (como o feito entraria para a História) e não tardou para surgirem os primeiros problemas com seu vizinho todo-poderoso.
Antes mesmo da tomada do poder por Fidel Castro, o governo americano do presidente Dwight Eisenhower esforçou-se para impedir o sucesso da Revolução Cubana, mas sem êxito. Num contexto interno de luta por direitos civis nos Estados Unidos e enfrentamento ao modelo colonial por outras nações latino-americanas, Eisenhower não via com bons olhos a deposição de seu aliado Batista e as incertezas do novo cenário logo ali tão perto da Flórida.
Os fatos então se sucederam numa velocidade vertiginosa. Se por um lado o governo americano dava asilo ao grupo de Fulgencio Batista e aos contrarrevolucionários cubanos, por outro o governo de Fidel adotava decisões de caráter socialista como a redistribuição da propriedade privada, indo na contramão do modelo capitalista. Ao final do primeiro ano da revolução, ainda em 1959, a CIA (Agência Central de Inteligência) já organizava os primeiros planos para assassinar Fidel Castro, todos sem sucesso. No começo de 1960, os planos americanos evoluíram para o embrião de um forte ataque à ilha, ideia que se concretizaria em abril de 1961, com a invasão da Baía dos Porcos, um dos mais tensos episódios da conturbada relação entre os dois países.
Em março de 1960, último ano do mandato de Eisenhower, o presidente americano reduziu para um terço a cota de importação de açúcar por parte dos Estados Unidos, produto-chave na economia cubana. Dois meses depois, foi cortado todo o petróleo vendido à ilha por Inglaterra, Venezuela e pelos Estados Unidos. A tensão aumentava. Em agosto de 1960, Fidel Castro confiscou a maior parte das propriedades americanas em Cuba, inclusive nacionalizando as empresas.
Nos primeiros dias de 1961, Fidel jogou duro novamente e determinou que os Estados Unidos deveriam manter na embaixada americana em Cuba o mesmo número de funcionários que havia na embaixada cubana em Washington, ou seja, somente 11, ante os mais de 300 americanos em Havana. O troco veio no dia seguinte: Eisenhower anunciou o rompimento das relações diplomáticas com Cuba e o fim total da importação de açúcar. Estavam dadas as bases para o que viria a ser o embargo econômico a Cuba e os 54 anos de tensão ininterrupta.
A caminho da guerra
Foi nesse cenário que John Kennedy assumiu a presidência dos Estados Unidos em 20 de janeiro de 1961. E seguiu firme no confronto, aprofundando-o nos dois anos seguintes. Reiterou a proibição de exportação a Cuba e criou listas de produtos que precisavam de licença específica para serem vendidos à ilha, consolidando o bloqueio econômico iniciado por seu antecessor na importação de açúcar. Em abril de 1961, ocorreu a malograda invasão da Baía dos Porcos, com forças navais e aéreas de cubanos contrarrevolucionários, apoiados pelos Estados Unidos, derrotadas em 72 horas.
 

© REUTERS/Enrique De La Osa
Com a permanência do embargo, o futuro de Cuba ainda é incerto

 
No ano seguinte, em 1962, o torniquete imposto pelos Estados Unidos aperta ainda mais. Por meio da Lei de Comércio com o Inimigo, Kennedy proíbe a importação de todo produto fabricado total ou parcialmente com matéria-prima cubana, mesmo se fabricado num terceiro país; navios que comercializam com Cuba entram numa espécie de lista negra do governo americano; e por meio de outra lei, a de Assistência Mútua, os Estados Unidos proíbem qualquer tipo de ajuda a um país que dê assistência a Cuba.
Em outubro de 1962 ocorre o outro grande episódio entre ambos os países após a invasão da Baía dos Porcos. Diante da iminência da instalação de mísseis nucleares soviéticos em Cuba, John Kennedy ameaça com uma sólida intervenção militar. A tensão atinge níveis jamais vistos. Durante uma semana, o mundo inteiro fica de prontidão, na expectativa de um conflito que poderia resultar numa guerra mundial, envolvendo armas nucleares. O governo soviético estica a corda, até que ambos cedem: a União Soviética desiste de instalar seus mísseis, enquanto os Estados Unidos também retiram seus mísseis depositados tempos antes na Turquia.
Décadas de animosidade
Enquanto durou a administração Kennedy e ao longo dos anos de 1960 e 1970, os Estados Unidos seguiram infligindo restrições econômicas e financeiras à ilha e seus habitantes, sempre tentando sufocar o governo de Fidel Castro. Por outro lado, para sobreviver e se viabilizar comercialmente, Cuba atravessou este período amparada econômica e tecnologicamente pelos soviéticos.
Então vieram os anos de 1980 e gradualmente o sistema soviético foi entrando em decadência, perdendo força social, política e econômica. Em 1989, a igualmente histórica queda do Muro de Berlim foi o início do célere desmoronamento do que era a Cortina de Ferro, a reunião dos países comunistas capitaneados pela União Soviética. O então presidente soviético Mikhail Gorbachev, que em meados dos anos 80 havia dado início à abertura política (Glasnost) e econômica (Perestroika) da União Soviética, acabou atingido pelo aluvião em 1991. Chegava-se ao fim de uma era. Pior ainda para Cuba, que da noite para o dia perdeu seu grande aliado e, diante do embargo econômico imposto já há quase três décadas pelos Estados Unidos, viu-se à beira da falência absoluta.
Em outubro de 1992, o presidente dos Estados Unidos, George Bush, não perdeu a oportunidade e apertou ainda mais o torniquete que sufocava Cuba, aprovando a Lei Torricelli, que proibia o comércio da ilha de Fidel com subsidiárias de empresas americanas em outros países, além de determinar que barcos que partem do porto de Cuba precisam esperar no mínimo seis meses antes de atracar num porto americano. Em 1996, já sob a administração de Bill Clinton, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a Lei Helms-Burton, tornando lei todas as restrições econômicas impostas até então contra Cuba pelo bloqueio. A lei também determina que, a partir de então, somente o Congresso tem poderes para revogar o bloqueio econômico.
Chance à paz
É justamente o bloqueio econômico ainda em vigor e a impossibilidade do presidente Barack Obama de revogá-lo que deixa em suspenso os próximos passos da aproximação entre os dois países. Desde dezembro, quando a retomada do diálogo foi anunciada, o presidente americano tem determinado medidas importantes e que estão em seu espectro decisório. Apesar disto, Raúl Castro é taxativo ao afirmar que só haverá paz e relações estabilizadas quando o bloqueio for extinto.
Ambos os lados não escondem suas diferenças e distintas visões de mundo, ainda que pela primeira vez em mais de 50 anos estejam falando abertamente em respeito mútuo e pregando discursos conciliadores. De modo semelhante, também nas sociedades de ambos os países há pessoas entusiasmadas e outras céticas. Porém, acima de tudo e apesar de todas as dificuldades envolvidas numa questão tão complexa e que para muitos parecia impossível após tantas décadas de conflito, fica no ar a convicção de que foi dada uma chance à paz.
Uma chance que pode ser única, definitiva e memorável. Tal qual a força de um firme aperto de mãos.

Medidas já anunciadas
■ Negociação para a reabertura da embaixada norte-americana em Havana e da embaixada cubana em Washington;
■ Retirada de Cuba da lista de países que promovem e/ou apoiam o terrorismo, situação em que a ilha foi incluída em 1982;
■ Flexibilização das restrições a viagens entre os países: mais vistos serão oferecidos a famílias, funcionários de governos, jornalistas, pesquisadores, grupos religiosos, ativistas humanitários, entre outros;
■ Permissão para o envio trimestral de remessas financeiras de indivíduos nos Estados Unidos para Cuba, ampliadas de US$ 500 para US$ 2 mil;
■ Ampliação dos produtos americanos que receberão autorização para serem exportados para Cuba, como material de construção civil e equipamentos de agricultura;
■ Americanos poderão obter licença para importar bens no valor de até US$ 400, mas não mais do que US$ 100 em bebidas alcoólicas e tabaco;
■ Empresas americanas terão permissão para abrir contas em instituições financeiras de Cuba;
■ Cartões de crédito e débito de bandeiras americanas poderão ser usados por estrangeiros em Cuba;
■ Empresas de telecomunicações e internet dos Estados Unidos terão mais liberdade para operar na ilha e poderão construir estruturas para troca de informações entre os dois países.

Autor

Luciano Velleda


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