NOTÍCIA
A escrita da língua portuguesa não é totalmente fonológica, como se dá com línguas europeias que usam o alfabeto latino há menos tempo (como turco, romeno, húngaro e finlandês). Nenhuma língua, contudo, tem escrita fonética: no limite, seria absurdo.
Um som, estudado pela fonética, tem milhares de características, variáveis não só de pessoa a pessoa, mas na fala da mesma pessoa, impossíveis de registrar graficamente de forma simples e consistente.
Fonemas, contudo, têm número limitado e prescindem das variações regionais, sociais e estilísticas. Por isso, a escrita pode ser fonológica (representando fonemas), mas nunca fonética (representando sons na sua materialidade física).
As variações históricas também são importantes quando focamos as ortografias. Em português, parece arbitrário que “paço” (castelo) seja diferente de “passo” (deslocamento do pé). Há quem pense que não escrevemos as duas palavras do mesmo jeito para diferenciá-las, como no início do século 20 “mêdo” (temor) tinha acento diferencial para não se confundir com “medo” (povo persa, pronuncia-se “médo”).
Como palavras assim raramente se confundem (por serem usadas em contextos distintos, terem frequências de uso diferentes ou pertencerem a classes gramaticais diferentes), o acento diferencial caiu. Hoje escrevemos “medo”, independentemente da pronúncia da vogal tônica e do significado, embora existam casos como “pôde” e “pode” (ou a diferença de “fôrma” e “forma”).
Todavia, a diferença gráfica de “paço” e “passo” não foi artificial. Trata-se de acidente histórico.
O {s-} inicial e os {-ss-} do português, no início, pronunciavam-se como o {s} de galego e espanhol castelhano. No Norte da Espanha e na Galiza, para pronunciar um [s̪], a ponta da língua toca os alvéolos dos dentes superiores. O {s} do português padrão, de Brasil e Portugal, é diferente, pois a ponta da língua toca as gengivas dos dentes inferiores (exceto no caso de “língua presa”, que pode ser só hábito articulatório ou problema de anquiloglossia) e é o corpo da língua que se levanta e não a ponta. O [s̪] “galego” ou “castelhano” se chama tecnicamente de “apicoalveolar”. O [s] “português” é “dorsoalveolar”.
O interessante é que o [s] do espanhol andaluz (e do espanhol da América Latina) é dorsoalveolar, como no português. Inversamente, o [s̪] do Norte de Portugal é, muitas vezes, idêntico ao de galego e castelhano (o “s beirão”). Deduz-se que a Península Ibérica tem uma espécie de linha invisível (tecnicamente, uma isoglossa), que separa os falantes do Norte e do Sul, sem que os dois países e suas línguas sejam levados em conta.
A letra {ç} não existe no espanhol e corresponde, quase sempre, a um {z} nas cognatas: em português, escreve-se “açúcar” e em espanhol, azúcar. Tanto o galego quanto o espanhol, ao Norte, pronunciam {z} como som interdental, ou seja, a ponta da língua é projetada entre os dentes, num som parecido com o {th} do inglês think (em transcrição fonética, [θ]), portanto, bem diferente do {z} português, cujo som [z] não existe mais nem no galego nem no espanhol.
Ao Norte da isoglossa, não se confundem {s} apicoalveolar e {z} ou [θ] interdental, mas falantes do espanhol andaluz, ao Sul, tendem a confundi-los (assim como o espanhol americano). No português, a confusão se dá entre {ss} e {ç}, que hoje soam iguais, e nem sempre foi assim.
O {ç} não existe no início de palavras portuguesas, mas já existiu. “Sapato” se escrevia çapato. A razão é que a pronúncia de {s-} e {-ss-} era apicoalveolar (herdado do latim) e a de {ç} era dorsoalveolar. Esses sons se misturaram em todo Portugal: mais ao Norte domina o som apicoalveolar para {-ss-} e {-ç-}; mais ao Sul (área de Lisboa), predomina o som dorsoalveolar. Na época medieval, no entanto, toda a Península Ibérica tinha som [ts], de onde provêm tanto o [s] dorsoalveolar do português que se grafa {ç} quanto o [θ] interdental de galego e castelhano, que se grafa {z}. Portanto, é raro em textos medievais (exceto nos lavrados na zona lisboeta e meridional) que haja confusão entre {ss} e {ç}.
Na gramática de Fernão de Oliveira (1536), pontos articulatórios são descritos com precisão. Sobre a letra {s} diz: “quando a pronunciamos alevantamos a ponta da lingua para o ceo da boca e o espirito assovia pellas ilhargas da lingua” e para o {ç} diz: “tem a mesma pronunciação que z, senão que aperta mais a lingua nos dentes”. Não há dúvida de que a pronúncia do {ç} é distinta do {s}, pois ele diz do [z]: “zine antr”os dentes cerrados, com a lingua chegada a elles e os beiços apartados hum do outro”. Talvez haja falantes que não confundam os dois sons. No início do século 20, José Leite de Vasconcelos, nos Opúsculos, nos dois volumes sobre Dialetologia cita a oposição de “s côncavo” (apicoalveolar) e “ç convexo” (dorsoalveolar) em muitas localidades. Em Parada do Monte, “o s distingue-se do ç, como em toda a raia do Norte e na Beira, por exemplo: çinco, seis, o que, como é sabido, está de acôrdo com a ortografia antiga”. Afirmações parecidas existem para a fala de Aguiar da Beira, Alfândega da Fé, Algodres, entre outras.
Também o {s} intervocálico e o {z} têm, em palavras como “casa” e “doze”, dois sons distintos na maioria desses lugares, ou seja, o português padrão tem só duas fricativas e, nessas localidades, havia quatro. Só a falta de prestígio delas impede afirmar que o português tenha quatro fricativas em vez de duas. A região com menos fricativas é extensa demais: toda a lusofonia, até o Brasil, quase todo Portugal e suas maiores cidades, Lisboa e Porto.
A distância entre fala e escrita dá margem a analogias curiosas na escrita, como percebeu Sá Nogueira em 1937. São errôneas grafias como “irriquieto” (irrequieto). O erro, porém, se funda num fato real: a incapacidade de distinguir /i/ de /e/ em muitas átonas antes da tônica (as chamadas pretônicas). Fala-se “minino”, escreve-se “menino”; fala-se “pidiu”, escreve-se “pediu”. No português europeu padrão, o [e] nessa posição tem um som centralizado [ə], o schwa. Mas em Portugal há quem realize essas palavras como no Brasil, pois as pronúncias brasileiras são, de fato, formas portuguesas antigas que vieram ao Brasil. Vemo-las em cantigas medievais.
Em suma, minino e pidiu são as formas originais: as atuais são modificadas, pois sofreram o fenômeno da dissimilação, que continua a ocorrer no português europeu. O fenômeno foi atestado em Lisboa por Gonçalves Viana em 1883: palavras grafadas com {i} são pronunciadas como tendo {e}: “mənistro”, “məlitar”, “dəvədiria” etc. Já o {e} passa a um som mais fechado que o schwa, o [ɨ], que se parece com o som yeri do russo, por exemplo: “fɨchar” (ou seja, “fechar”), “vəcɨjar” (isto é, “vicejar”), “tɨlhado”, “prəvəlɨgiado” etc.
Escrevemos “menino” e “pediu” com {e} não porque devemos pronunciá-los como [e] mas porque adotamos a ortografia mais assente em Portugal depois que esses fenômenos se tornaram frequentes e, diferentemente do que pensa o meio científico, não houve “alçamento” de vogais, a menos que pensemos que esse alçamento ocorreu há séculos.
Não se sustenta regra normativa que contradiga o bom-senso e a etimologia. Não há estudo sincrônico que faça sentido se a causa não é posta no passado.
Os sinais destas páginas | |
O uso de colchetes em [s], por exemplo, indica o som da letra; o aspeamento por meio dos sinais de chaves, como em {s}, indica a grafia, o grafema, a escrita, as representações visuais e não auditivas. |