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Entrevistas

Pela via da Justiça

Articuladora da criação de cátedra voltada a estudar o direito à educação, professora da USP ressalta que o Supremo Tribunal Federal tem sido, na prática, um indutor de políticas públicas

Publicado em 10/09/2011

por Redação revista Educação

Desde o início de 2008, o programa de pós-graduação em Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo abriga a primeira cátedra Unesco de Direito à Educação no mundo. Resultado da interlocução de estudiosos de vários países especializados na análise das relações entre legislação e práticas educacionais, a nova cátedra é coordenada pela professora Nina Ranieri, do Departamento de Direito de Estado da USP e secretária adjunta de Ensino Superior do Estado de São Paulo.

Na entrevista a seguir, concedida ao editor


Rubem Barros


, ela fala sobre o que a análise das decisões da Justiça revela acerca das tendências da educação brasileira posteriores à Constituição Federal de 1988 e sobre como o Supremo Tribunal Federal e o Ministério Público têm se tornado promotores de políticas públicas.


Quais serão os principais eixos do curso de Direito à Educação?

O principal eixo é o estudo da jurisprudência e da legislação, tendo em vista entender em que medida o direito é um instrumento de promoção e garantia do direito à educação. A pesquisa da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) é importante porque é através dele que a legislação começa a ser aplicada de forma mais incisiva. A despeito de toda melhoria, da universalização do acesso, o Supremo vem desenvolvendo um papel muito recente de determinar políticas públicas na área da educação. Os municípios são obrigados a utilizar os seus orçamentos em benefício da educação, deixando de realizar outras coisas. Houve uma decisão do STF determinando que os municípios revejam seus orçamentos. Aí o direito começa a cumprir o seu papel. Ele tem, por meio do Supremo, se mostrado efetivo. Agora, as emendas do Fundeb e do Fundef são muito efetivas. Os resultados são animadores, embora ainda haja muito o que fazer.


Qual é o interesse da Unesco?


A Unesco considera que a legislação brasileira pode ser copiada por muitos dos países em desenvolvimento. E por razões muito objetivas: o modelo federativo de organização dos sistemas, que reparte competências, obrigações, incumbências; a vinculação dos recursos na Constituição. São normas a serem copiadas pelos países em desenvolvimento africanos, asiáticos. O diretor da Educação Básica da Unesco é advogado e atua na elaboração de projetos de lei de educação para países em desenvolvimento. E a legislação brasileira é paradigma. Isso justifica a criação da cátedra. Quer dizer, ter um grupo de pesquisadores dedicados a avaliar a eficiência dessa legislação na promoção do direito à educação é um tema diretamente relacionado à missão da Unesco.


Qual o perfil dos alunos que se inscreveram nesta cátedra em sua primeira turma?


A cátedra iniciou suas atividades no 1º semestre de 2008. Tivemos cerca de 20 alunos inscritos no programa, a maioria oriunda da educação. Alunos com graduação em pedagogia, ou que trabalham no setor privado da educação são cerca de 70% do total. Os alunos do direito estão começando a descobrir essa vertente.


Temos uma tradição de legislar em excesso, de editar leis como se sua simples criação resolvesse os problemas existentes. A legislação relativa à educação corrobora essa cultura?


Inteiramente. A LDB 9394/96, por exemplo, é uma lei inovadora, modernizadora, que rompe com uma série de vezos da legislação educacional brasileira. Por exemplo, no âmbito do ensino superior, acaba com a obrigatoriedade de as universidades se organizarem a partir de departamentos, acaba com o currículo mínimo, avança no sentido de que o diploma não confere certificação profissional, que a profissionalização será verificada por outros órgãos. Enfim, começa a haver uma mudança. O que acontece: o Ministério da Educação, o Conselho Nacional da Educação, os conselhos estaduais e o próprio presidente da República por meio de decretos promovem uma  abundância normativa que tira o eixo da legislação. São iniciativas reativas, não planificadoras. Aconteceu logo que a LDB foi editada com relação ao ensino privado, quando o MEC perdeu o eixo e editava decreto atrás de decreto, vários deles inconstitucionais, pretendendo ir além da lei. Aí se cria uma situação perversa, em que, por via do próprio direito, se anula aquilo que a legislação procurava fazer. Outro problema é o número de vezes que a LDB foi alterada para incluir matérias no currículo mínimo. A última alteração foi a inclusão da sociologia e da filosofia. Não sou contra, faz muito bem haver essas disciplinas na formação dos jovens, mas…


É contra o espírito da lei?


A LDB estabelece um padrão de diretrizes, um currículo mais adaptado às condições regionais, e aí começa a haver alterações para colocar disciplinas. O que sobra para o regional, para a própria escola decidir? O espírito da LDB, nesse ponto, foi negado.


Quais são os grandes desafios para tornar a legislação educacional brasileira mais justa e efetiva?


Em primeiro lugar, racionalizá-la, pois é um verdadeiro cipoal, especialmente no sistema federal. O sistema estadual de São Paulo, que é o que conheço, é um pouco mais organizado. Mas o sistema federal, especialmente na área do ensino superior, é muito complexo do ponto de vista legislativo, por causa dessa multiplicidade das fontes, de possibilidades de interpretações em função de diversos pareceres, portarias, decretos etc.


A senhora está de acordo com a reivindicação de que se institua um sistema nacional de educação?

Esse é um outro problema. O que a constituição e a LDB prevêem é que os sistemas devem funcionar todos em harmonia. Por que temos muitos sistemas? Porque o país é federativo e a organização do ensino acompanha a organização política – ou seja, municípios, estados, Distrito Federal e União são entes federados, cada um com suas competências, encargos e rendas. Os sistemas de ensino acompanham essa lógica. Cada um deles, embaixo do guarda-chuva da LDB, vai regulamentar suas especificidades, atender as peculiaridades locais, regionais. Quando a Constituição fala que esses sistemas devem funcionar de forma harmônica e complementar, é uma visão de educação brasileira, nacional, que se supõe nos leve a avançar. A idéia do sistema nacional, até onde sei, se volta mais à questão da formação dos professores. O que se está procurando é criar uma formação mais uniforme. Não seria um sistema nacional único que anularia os outros. Vamos ver o que resulta disso. Toda a iniciativa voltada a melhorar a formação de professores, com capacidade de lidar com os problemas locais, regionais, nacionais, que tenha uma visão de Brasil e de mundo adequada ao início do século 21 etc., tudo isso é bem-vindo.


Como o Supremo Tribunal Federal tem acompanhado a educação ao longo do tempo?


É curioso notar isso. Como a natureza das ações que chegam lá vai mudando, e como o Supremo cada vez mais vai tomando decisões para interferir na política pública. O que é um outro tema: até que ponto o Judiciário pode determinar a execução de políticas públicas.


E isso acontece a partir de quando?


Dos anos 2000. Acentuadamente, de 2005 para cá. Criamos na cátedra bancos de jurisprudência e classificamos por tema. Nos anos 90 o grande tema foi mensalidade escolar. Houve a questão da fixação das mensalidades, uma lei federal, e uma enxurrada de ações tentando obter a declaração de inconstitucionalidade da lei – e ninguém obteve. Depois, com o Fundef, as ações que chegam ao Supremo já não dizem mais respeito ao ensino fundamental, que está contemplado dentro daquela lógica de distribuição de recursos em função da matrícula. Quando o Fundef começa a fazer efeito, percebe-se que começam a entrar ações pedindo a universalização da educação infantil, da pré-escola, que hoje é o grande tema no Supremo. E [as ações] sempre [chegam] pelo Ministério Público. Em Santo André, por exemplo, há inúmeras ações no Supremo, propostas pelo MP, exigindo a universalização da educação infantil. Imagino que, com o Fundeb, veremos um outro ciclo de ações chegando ao Supremo.


Quais as grandes diferenças em termos de espírito da lei, quando se comparam as leis de Diretrizes e Bases de 1961 e de 1996?

A lei de 1961 foi feita sob os influxos da Constituição de 1946 e antes de 1964. Isso já traz uma grande diferença. Um exemplo foi o veto para a explicitação do que significa a autonomia universitária. No projeto original da lei de 1961, havia uma descrição para autonomia didática, uma para autonomia administrativa, e isso foi vetado, pois se entendia que isso não deveria estar descrito na lei, porque poderia ser uma limitação da própria autonomia. O espírito era inovador, modernizador frente a uma situação que vinha de 1930, com o estatuto das universidades brasileiras, com a Reforma Francisco Campos [ministro da Educação entre 1930 e 1932], que era muito controlador e centralizador. Ocorre que essa legislação de 1961 sofre inúmeras modificações depois de 1964. Com relação ao ensino superior [houve] a Lei 5.540 de 1968; no secundário, houve legislações que modificaram muita coisa, houve uma enorme restrição às liberdades de expressão, de associação e manifestação. Esta LDB [a atual] é a antítese de tudo isso que significava a restrição da liberdade acadêmica, de manifestação. Esse é um lado. O outro grande eixo é o da auto-organização das escolas, que se observa na Educação Básica e no Ensino Superior: a possibilidade de as escolas se organizarem da forma que melhor atenda a necessidade de seus alunos. A outra grande mudança é a participação da sociedade civil nas associações, nos conselhos. No que diz respeito aos conteúdos, a mesma coisa: a eliminação do currículo mínimo, a idéia de diretrizes.


Se todo mundo hoje fosse requerer os direitos previstos pela Constituição Federal e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, o Estado brasileiro daria conta de atendê-los?


Acho que sim. Há uma magnitude de recursos expressiva para a educação. É uma questão de racionalização. Não dá para pensarmos o aumento populacional e a demanda por educação com a legislação dos anos 1950 e 1960, nem dos 1980. É preciso que haja uma modernização das estruturas, da legislação. E aí o direito tem um papel importante, que é o de acompanhar a evolução, e não de tentar estabelecer camisas-de-força e padrões. Acredito que o Estado brasileiro tenha condições de atender, e se não tiver vai ter de arrumar. Não dá para imaginar que possamos voltar à situação do início do século 20, quando países como Argentina e Uruguai já tinham praticamente toda população na escola, e nós não. Vamos ter de correr atrás. E o que se observa na jurisprudência do Supremo é que isso está sendo buscado. Esse é o grande ponto. Não discuto se esse é o papel do Judiciário ou não, vejo o Judiciário como um grande indutor de políticas públicas, tanto quanto o Ministério Público. Se voltarmos à Constituição, quais são os objetivos da República? Construir uma sociedade justa, livre e solidária, reduzir as desigualdades regionais, promover o bem etc. Como se faz isso sem educação? Como pode haver um "Estado democrático de direito" se as pessoas não puderem pensar a respeito da sociedade em que vivem?

Autor

Redação revista Educação


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