NOTÍCIA
Com cerca de 20 prêmios, projeto Mulheres Inspiradoras, voltado à leitura, letramento e escrita, de professora da rede pública que conseguiu se desprender das amarras tradicionais, inspira docentes que buscam dialogar com os/as estudantes
Assim como muitos, a precária e inaceitável condição de trabalho também adoeceu, em 2003, a então professora da rede pública do Distrito Federal, Gina Vieira Ponte, que cresceu em Ceilândia e dava aula na mesma região periférica. Ainda assim, ela queria se aproximar dos/das estudantes para atualizar suas práticas pedagógicas. Tendo a força de sua mãe como base e as escritas de Paulo Freire como caminho, lança, em 2013, o projeto Mulheres Inspiradoras, que foca em leitura, letramento e escrita, além de ser também, segundo ela, um resgate de memória, por conta de os/as estudantes escreverem em um livro impresso as biografias de seus familiares, como mães, avós e bisavós.
Com isso, o projeto conseguiu atingir o falado ‘para além dos muros da escola’. De início, esses familiares carregavam a visão imposta de que, por serem da periferia — muitas negras —, não possuíam valor e, assim, não entendiam o motivo das suas histórias serem escritas. Mas, depois, passaram a também se reconhecerem como mulheres inspiradoras, relata Gina, emocionada.
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Hoje, aos 53 anos, a professora Gina Vieira Ponte está aposentada. É consultora educacional e dá palestras. Com direção de Cristiano Vieira, em 2025, um filme sobre a sua história será lançado. Já o projeto Mulheres Inspiradoras foi premiado cerca de 20 vezes, está em 50 escolas públicas do DF via política pública, além de estar presente em escolas municipais de Campo Grande, MS, e em 2021, chegou à Província de Niassa, em Moçambique.
Confira, a seguir, a entrevista com Gina, que é graduada em letras, mestra em linguística, especialista em desenvolvimento humano, educação e inclusão escolar.
Aos 42 anos, Gina acessou a primeira leitura que enaltecia a beleza negra. “Fiquei arrepiada… foi o primeiro texto que me apresentou uma mulher negra num lugar de altivez, coragem, insurgência. Lugares vetados para mim.” (Foto: Tainá Frot/arquivo pessoal)
É um filme que fala de uma professora que adoeceu psiquicamente de maneira quase irremediável e irreparável por causa das suas condições de trabalho precarizadas e sucateadas. Temos números assustadores de professores em quadros de adoecimento psíquico em função de que aquilo que a estrutura pede para eles é além do que conseguem dar.
Tive acesso apenas ao grosso da história, o que também me gera expectativa. A gente passou por três roteiros diferentes em que fui opinando e sugerindo alterações. Um dos cuidados que pedi que o roteirista tivesse é que não fosse mais um filme que reforçasse a ideia do professor mártir e herói que tem que se arrebentar para que as coisas funcionem.
A gente está vivendo sob a égide de um capitalismo, neoliberalismo, que tornam a educação e o conhecimento mercadorias descartáveis. Então, espero que seja um filme que fale do nosso país, da importância do magistério, da valorização da carreira docente e que, sobretudo, seja um filme de esperança, que os professores sintam que a profissão é um lugar interessante, fortalecido e alimentado.
O adoecimento veio no chão da escola, em 2003, quando deixo de trabalhar com crianças e passo a trabalhar com adolescentes e percebo uma dificuldade de me conectar com os alunos. Hoje, 20 anos depois, sei que havia muitas variáveis determinando aquela dificuldade de conexão, inclusive, o fato de eu ser uma professora negra. Parte do racismo estrutural é formar um imaginário que cristaliza a imagem de mulheres negras no lugar da subalternidade, da servidão.
Naquele momento não tinha repertório teórico que me ajudasse a entender que os meus alunos talvez tivessem dificuldade de olhar para mim e reconhecer uma professora e uma autoridade porque eu habito esse imaginário do corpo negro. Hoje faço essa leitura. Em 2003, o que me ocorria era: estou com dificuldade de me conectar com os meus alunos porque as minhas metodologias não estão adequadas. E era isso também. Porque nunca é só um fator.
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E percebi que reverberava esse paradigma da educação bancária sobre o qual o Paulo Freire fala lindamente no livro Pedagogia do oprimido, em que o professor é colocado como centro do processo pedagógico e narra os conteúdos que o estudante tem que aprender. Segundo Paulo Freire, esse paradigma não favorece a aprendizagem porque o aluno é reduzido a plateia e espectador do professor. Só que nós já temos estudos consistentes na área da educação, os quais apontam que aprendo na proporção em que sou acionado como sujeito, como agente no processo de aprendizagem.
O projeto Mulheres Inspiradoras nasce dessa percepção de que estou dentro de uma estrutura viciada, condicionada ao paradigma da educação bancária. Uma estrutura educacional colonial, autoritária, instrucionista. Eu era parte dela. Ela me formou e eu a reproduzia. Então, o primeiro ponto foi: preciso mudar minha prática pedagógica; eu já tinha ouvido os teóricos e precisava ouvir os meus alunos.
Isso. Comecei a usar a rede social como ferramenta de aproximação para os meus alunos (já tinha feito o mesmo com o Orkut) e fui percebendo como era um espaço em que eles podiam falar o que era vetado na escola. Ali me deparei com o vídeo de uma aluna de 13 anos dançando e que me impactou profundamente porque era uma música absurdamente depreciativa às mulheres, de apelo sexual violento. Ela não percebia o quanto havia de sexismo e machismo e até misoginia nos comentários. Não adiantaria eu tentar conversar com ela ali porque naquele canal ela se sentiria censurada. Percebi também que eu não tinha que conversar só com ela, mas com todas as meninas e meninos da turma.
Até aquele momento, não tinha tanto repertório sobre as desigualdades e violação de direitos das mulheres. O que tinha era um corpo e uma mente de uma mulher que foram forjados no chão da escola, onde vi dezenas de vezes meninas da periferia abandonarem a escola porque engravidavam. O caso da menina de 11 anos foi o que mais me marcou porque ela chegou grávida. E, ao conversar, ela só imagina a alternativa de sair da mão de um pai abusador para cair na mão de um namorado abusador — um adulto que se relaciona com uma criança de 11 anos só pode ser chamado de abusador. Então, eu tinha esse incômodo há anos e o vídeo foi a gota que transbordou.
O projeto nasce desse desejo de provocar as meninas a sonharem com outros espaços que não sejam de subalternidade, indignos da auto-objetificação sexual, e provocar os meninos a pensarem o quanto essa representação da mulher reduzida a objeto sexual é ofensiva, indigna, desrespeitosa e colabora para a violência contra mulher.
Ele é centralizado na leitura de biografias de mulheres e escritas por mulheres, letramento e escrita autoral. Escolhi mulheres de diferentes âmbitos sociais, culturais e históricos. Desde mulheres brancas como Zilda Arns, passando por mulheres negras como Rosa Parks, grandes cientistas como Nise da Silveira, passando por mulheres a quem foi negado o direito à escolarização, como Carolina Maria de Jesus. Mulheres jovens como Anne Frank e Malala a idosas como Cora Coralina. Reforço que nessa época pouco se falava sobre livros escritos por mulheres.
Eu tive que pesquisar muito. Fiz questão de escolher mulheres que tiveram que subverter o machismo. E também brasileiras do nosso território em Ceilândia, porque queria dizer para as meninas: a qualquer tempo, seja você quem for, você pode ser a dona da sua história, deixar um grande legado, ser protagonista do seu destino. Parte do projeto foi também provocar os alunos a pensar nas histórias das mulheres inspiradoras das suas vidas. Porque para mim o projeto é também um projeto de resgate de memória.
Quando o projeto aconteceu havia pouco mais de 10 anos que a minha mãe tinha falecido. Ela faleceu no mesmo ano em que tive essa depressão que quase me levou. A depressão começou em fevereiro de 2003, e ela faleceu de repente de um câncer muito agressivo que já estava em estado de metástase. Descobri a doença em outubro e em novembro foi sepultada.
Quando minha mãe foi embora, pensei: minha história foi embora. Porque as nossas mães detêm conhecimento profundo de nós. Mas eu tinha dimensão da mulher grandiosa que minha mãe era, sabia o tamanho do sacrifício que ela tinha feito para que eu pudesse estudar. Lembro das pessoas batendo na porta de casa e dizerem a ela: a senhora já tem quatro filhas que estão boas para serem empregadas domésticas. E minha mãe, corajosa, mesmo com dificuldade financeira, dizia: ‘ainda que nos custe passar fome, as minhas filhas vão estudar’.
Nisso, me perguntei: será que os meus alunos têm ideia da grandiosidade de suas mães, avós e bisavós? Porque todos devem ter a consciência de que se estamos aqui, de pé, é porque alguém que veio antes abriu o caminho. E as mulheres fazem uma revolução silenciosa, são elas que lutam pelos seus e nunca houve reconhecimento à altura do que fazem.
Com sua professora do ensino fundamental, Creusa. No livro que compõe o projeto, Gina escreveu a biografia de sua mãe, avó e também a de sua professora (Foto: Aline Dária/arquivo pessoal)
Eu já tinha uma profunda consciência da minha negritude, porque não foi dada a mim a possibilidade de dúvida sobre a minha negritude. Acho muito curioso quando as pessoas me perguntam: ‘quando se percebeu negra?’ Porque não me deram a chance de não me perceber negra, uma vez que o tratamento que me foi dispensado era para, a todo momento, lembrar de que eu era negra, inferior. Então, eu forjei a identidade negra a partir desse lugar em que o racismo nos coloca.
Cursei letras na Universidade Católica de Brasília e nenhum autor negro foi apresentado pra mim como negro, embora Machado de Assis tenha sido. O meu letramento racial, crítico, começa a ganhar consistência no projeto Mulheres Inspiradoras. Quem me apresentou a obra de Maria Carolina de Jesus, Quarto de despejo, não foi a universidade, foi a educação básica, quando trabalhava no CED 15 de Ceilândia, uma escola maravilhosa com um bom projeto de leitura.
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Um belo dia, usando as redes sociais, me deparo com Cristiane Sobral e vejo uma escrita que mexe profundamente comigo, porque fala da estética negra de um lugar que até então estava interditado para mim. Não só da estética, mas de uma subjetividade negra altiva, insurgente, afrontosa que nos é completamente vetada. Li o poema Retina negra, que diz assim: ‘Sou preta fujona, recuso diariamente o espelho, que tenta me massacrar por dentro, que tenta me iludir com mentiras brancas, que tenta me descolorir com os seus feixes de luz. Sou preta fujona, preparada para enfrentar o sistema. Empino o meu black e invado a cena. Sou...’.
Fiquei arrepiada com esse poema porque foi o primeiro texto que me apresentou uma mulher negra num lugar de altivez, coragem, insurgência. Lugares vetados para mim. Falei: gente, que mulher negra é essa? Fujo dos estereótipos racistas, do lugar da subalternidade. O primeiro efeito que teve sobre mim foi o de afirmar ainda mais a minha negritude. Ouvi a vida inteira que meu cabelo era duro, de Bombril, pixaim. Depois li outros poemas de Cristiane Sobral. Me deparei com uma metáfora que diz que o cabelo crespo de uma mulher negra é como árvores frondosas, coroa a coroa de uma rainha, que já nasce coroada.
Também quis repassar o que estava vivendo para as minhas alunas. Porque elas não podiam esperar chegar aos 42 anos para viver essa experiência incrível de sentir orgulho de quem se é e de afirmar isso. Levei o livro para a sala de aula e foi uma revolução. Algumas meninas abandonaram o cabelo alisado. Assim como eu também o abandonei. Foi um processo profundo.
O encontro com a obra de Cristiane Sobral foi o primeiro de muitos com escritoras negras como Lélia González, Sueli Carneiro, Patrícia Hill Collins e Maya Angelou, por exemplo. A obra de Cristiane Sobral tem a riqueza de falar da identidade negra e também periférica. Ao longo da leitura em sala de aula, havia um aluno branco a quem eu tinha dificuldade de acessar, sentia que ele estava no limiar para cair na criminalidade. E eu tentava resgatá-lo.
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Em uma dessas leituras em voz alta, por conta de a turma estar com burburinho, esse menino gritou do fundo: ‘silêncio. Eu quero escutar o bagulho’. Fiquei tocada. O poema mexeu com o aluno porque falava desse menino da periferia assediado pelo tráfico, que sofre violência e vive em situação de vulnerabilidade. Falava da vida dele de um lugar que o livro didático não fala, de um lugar que a literatura canônica não fala. Então, eu sou absolutamente apaixonada pela literatura e pela arte de forma geral, porque a arte comunica de um lugar que mexe no nosso mais profundo sentimento; mexe naquilo que o discurso pedagógico não dá conta de mexer sozinho. O que o discurso teórico não dá conta de mexer sozinho a arte vem e mobiliza; inclusive, vou dar só um ‘spoiler’. Cristiane Sobral vai aparecer no filme.
Estudantes de Gina no lançamento do livro com as histórias das mulheres que eles admiram (Foto: Aline Dária/arquivo pessoal)
Para entendermos por que as escolas não trabalham o tema, devemos beber em uma das fontes mais preciosas para mim do pensamento negro brasileiro, Lelia González, a qual diz que o Brasil é um país que exerce o racismo por denegação, que não se reconhece como negro. Um país que jura que é europeu, branco. Há mais de 500 anos, o Brasil era 100% território indígena, foi invadido por europeus, colonizado de forma violenta, com práticas genocidas de extermínio. É absurdo o que nós vivemos. E até hoje o país não tem consciência dessa história. Até hoje o Brasil reverbera o mito da democracia racial. A ideia de que somos todos iguais. Nunca fomos tratados de maneira igual. Neste país, o povo negro foi trazido forçosamente para produzir riqueza aos europeus às custas de exploração, estupro, tortura e morte.
A gente precisa se reconhecer como um país de base histórica negra e indígena. O segundo ponto é que racismo é sobre disputa por poder, por distribuição de poder, sobre dizer quem tem o direito de acumular riqueza, de deter poder material e simbólico e quem não tem. E nesse país, todas as nossas estruturas são regidas por uma hegemonia branca. O Senado é branco. A Câmara é branca, as Secretarias de Educação são ocupadas por pessoas brancas que não estão suficientemente sensíveis a essa temática. Elas gozam dos privilégios que o racismo concede a elas. Por que elas vão trabalhar em favor de uma educação que promova a equidade se elas ganham com a falta de equidade?
Se hoje a gente tem a Lei 10.639 e a 11.645, que tornam obrigatórios o ensino da cultura africana, afro-brasileira e indígena na escola, isso não se deve à bondade das elites econômicas brasileiras hegemonicamente brancas. Se deve à luta do movimento negro e indígena organizado, à luta das mulheres. Mas, veja, essas leis têm pouco mais de 20 anos, e o país existe há 525 anos. O que dá a medida do quanto isso não é uma prioridade para o país.
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E a gente precisa lembrar que falar de uma educação antirracista significa falar de justiça social, significa falar de mudança no nosso paradigma educacional, mudança no nosso material didático, mudança no nosso currículo, mudança na mentalidade dos nossos professores. Infelizmente, professores e professoras passam pela graduação, pela pós-graduação, às vezes mestrado e doutorado, sem ler absolutamente nada que diga respeito ao pensamento negro. Eu passei por quatro pós-graduações pela Universidade de Brasília (UnB). Fiz uma graduação pela Universidade Católica. Fiz um mestrado pela UnB e não conhecia Walter Rodney, o intelectual pan-africanista da maior importância. Nunca tinha lido o Contrato racial, de Charles Mills. Fui conhecer quando li a tese da Sueli Carneiro.
E não basta falar de equidade étnico-racial colocando pessoas negras em posição de poder ou pessoas indígenas. A gente precisa de pessoas negras e indígenas qualificadas. E genuinamente aliadas da luta antirracista. Porque a gente tem que lembrar que nascer negro, indígena e mulher não nos dá consciência de gênero e raça. Se pessoas negras, se a classe operária não acessa as estruturas de poder, a gente não consegue mudar a realidade.
Todas as vezes que falamos sobre educação para as relações étnico-raciais, as pessoas se ofendem, levam para o seguinte lugar: vocês estão querendo privilegiar uma determinada cultura. Como educadora, digo que é triste a escola ensinar uma única forma de pensar. Ao ensinar só o pensamento europeu, a lógica cartesiana ocidental, a gente empobrece a formação dessas crianças. Imagina a riqueza que é uma criança desde a educação infantil aprender sobre qual é a relação que os indígenas têm com a natureza, que é outra cosmopercepção. Imagine o que representa uma criança ter a consciência de que muito do que ela vive vem dos valores civilizatórios africanos.
Então, uma educação para as relações étnico-raciais é uma educação que amplia a nossa forma de pensar, que nos ajuda a acessar outros saberes que, inclusive, vão permitir pensar futuros diferentes.
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