NOTÍCIA

Edição 303

Autor

Alex Bessas

Publicado em 10/05/2024

Quanto mais é reprovado, menos o estudante aprende

Especialistas listam evidências mostrando que, na contramão do que sugere o senso comum, o Brasil ainda reprova demais

“Eu nunca desisti da escola. A escola que tinha me abandonado, não tinha mais espaço para mim. Por isso, deixei de estudar”, lamenta Cristian dos Santos, 22, que lidou com quatro repetências no ensino fundamental. “Quando tentei fazer o supletivo, também repeti”, recorda, sem imaginar que sua trajetória particular reflete um problema nacional: os altos índices de reprovação no sistema educacional brasileiro. 

reprovação escolar

Maria Helena Guimarães de Castro, uma das criadoras do Enem, destaca que existem diversos estudos e pesquisas evidenciando que a repetência é ineficaz (Foto: Shutterstock)

É o que denunciam especialistas como Maria Helena Guimarães de Castro, titular da Cátedra Instituto Ayrton Senna de Inovação em Avaliação Educacional no Instituto de Estudos Avançados da USP, polo Ribeirão Preto. Para ela, há, no país, uma cultura da repetência arraigada: “Professores e sociedade ainda acreditam que quanto mais o aluno for reprovado, mais ele vai aprender, o que não é verdade”. Reflexo desse pensamento, diz, é percebido ao se analisar dados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), de 2018. Segundo o relatório, 34% dos estudantes de 15 anos avaliados haviam repetido o ano ao menos uma vez. “Em comparação com outras 80 nações, o Brasil ficou em quarto lugar no ranking dos que mais reprovam, atrás de Marrocos, Líbano e Colômbia”, critica. 

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Maria Helena é uma das criadoras do Enem e destaca existirem diversos estudos e pesquisas evidenciando que a repetência é ineficaz, gerando graves custos individuais e sociais. “É bom lembrar que o próprio Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica) mostra que quanto mais o estudante é reprovado, menos ele aprende”, aponta, citando, ainda, dados de um estudo longitudinal, de 2012, realizado no Brasil por pesquisadores da Fundação João Pinheiro (FJP), que identificou que alunos reprovados continuavam com desempenho inferior no ano seguinte em relação àqueles que avançaram. 

reprovação escolar

“É bom lembrar que o próprio Saeb mostra que quanto mais o estudante é reprovado, menos ele aprende”, destaca a especialista em avaliações, Maria Helena Guimarães de Castro (Foto: Arquivo pessoal)

A titular da cátedra da USP complementa que a repetência ainda gera desperdício de recursos. “Um estudo da consultoria E-Dados mostrou que o custo da extensão do tempo do aluno na escola devido à reprovação foi de R$ 16,8 bilhões em 2017, recursos que seriam suficientes para custear o Programa Nacional de Alimentação Escolar, financiar o Programa Nacional do Livro Didático e realizar transferência de recursos para ampliação de creches, de atendimento de educação infantil, de atendimento de tempo integral e assim por diante”, cita. 

Polêmica 

Foi com a intenção de enfrentar o problema da repetência que o governo da Bahia publicou, em 27 de janeiro, o ato 190/2024, que dá orientações sobre a avaliação nas instituições de ensino e trata da aprovação dos estudantes. A medida, porém, gerou mal-estar, atraindo críticas, tanto pela oposição quanto por aliados do governador Jerônimo Rodrigues (PT) ao estabelecer que, para um aluno ser aprovado, será preciso superar dois critérios: a presença em 75% do ano letivo e o alcance de uma média escolar de 50%. A portaria prevê que, no caso de reprovação, um Conselho de Classe terá autonomia para “analisar os fatores de ordem objetiva e subjetiva e os efeitos negativos que a reprovação traz para a trajetória escolar do estudante”. 

À revista Educação, a Secretaria de Educação do Estado da Bahia (SEC) se defende, dizendo que, diferente do que sugerem os críticos, o Regime de Progressão Parcial (RPP), atualizado na normativa, não deve ser confundido com aprovação automática. 

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“O que propusemos com a implementação da portaria nº 190 e as outras medidas em conjunto, como a portaria nº 195, é uma iniciativa que oportuniza a qualificação do percurso formativo de estudantes, com a garantia de novas oportunidades de aprendizagem e avaliação. Com o RPP, o estudante é reavaliado com foco nas carências apresentadas no ano letivo anterior, após ter acesso a conteúdo de descritores educacionais específicos, que contribuirão com a superação dessas lacunas”, sustenta a pasta, que diz aplicar ações estratégicas que garantem a recuperação da aprendizagem, estabelecendo diferentes projetos voltados ao sucesso escolar, buscando a melhoria do ensino, a permanência e a redução da distorção idade-série. 

Enfrentamento da reprovação

Autor do livro publicado em 2022 O ponto a que chegamos: duzentos anos de atraso educacional e seu impacto nas políticas do presente (ed. FGV), o jornalista Antônio Gois adverte que, de fato, reagir à repetência proibindo-a não é a solução. “É preciso adotar uma série de outras medidas”, defende, citando que uma das iniciativas mais relevantes nesse sentido é antecipar a entrada da criança na escola. “Ela já passa a conviver com um ambiente estimulante e vai se habituando à rotina escolar”, destaca. A formação de professores também é crucial. “Essa capacitação avançou muito. Houve uma diminuição significativa na quantidade de educadores sem formação de nível superior dando aula para crianças”, menciona. O foco na alfabetização é outro fator relevante — “caso do Ceará, um dos mais exitosos nessa questão, que aposta na identificação rápida de estudantes com problema de aprendizagem, promovendo rápida intervenção”. 

Antônio

O jornalista Antônio Gois resgata o estatístico Teixeira de Freitas, o qual alertou em 1946 que o problema da educação brasileira não estava só na falta de vagas, mas no excesso de reprovação e abandono escolar (Foto: Alice Vergueiro/Jeduca)

Gois pondera que o problema do excesso de repetência no Brasil é histórico. Ele lembra que um dos primeiros autores a sistematizar números relacionados à questão foi o estatístico Teixeira de Freitas, que atuou no IBGE. Em um trabalho publicado em 1946, por exemplo, o autor chama a atenção para o fato de a reprovação ser muito alta na 1ª série do antigo primário (atual ensino fundamental). “Ele dizia, já naquela época, que o problema da educação brasileira não estava só na falta de vagas, mas no excesso de reprovação e abandono escolar”, assinala, indicando que, apesar dos alertas, esses índices se mantiveram praticamente inalterados por ao menos meio século: em 1932, chegavam a 66% na 1ª série; já em 1982, eram de 59,4%. 

Por trás desses números está, segundo o jornalista, o “caráter puramente seletivo do sistema de educação no Brasil, em que, desde os primeiros anos, busca-se selecionar aqueles alunos que ‘merecem’ continuar no sistema de educação, separando-os do que não ‘merecem’”. Ele comenta que tal lógica já era denunciada por Teixeira de Freitas. “Até hoje, embora as taxas de repetência tenham caído muito desde a redemocratização, essa concepção continua arraigada em nossa cultura”, alerta. 

Distorção 

Também tratando a repetência como um problema histórico, Maria Helena Guimarães de Castro ressalta que as elevadas taxas de reprovação estão associadas a outros problemas. Caso da distorção idade-série, que, segundo o Censo Escolar 2023, afeta 16% dos brasileiros do 6º ano, que apresentam pelo menos dois anos de atraso escolar, enquanto, entre alunos do 1º ano do ensino médio, 24% iniciam sua trajetória com idade superior à esperada. “O problema já foi pior. Já tivemos cerca de 48% de estudantes atrasados, em 2006”, contextualiza, situando que, apesar do avanço, os patamares atuais continuam inaceitáveis e têm sérias consequências sociais e econômicas. “Muitos desses alunos repetem, abandonam a escola e não voltam a estudar. Não por acaso, temos um número imenso de jovens, entre 18 e 29 anos, da chamada geração ‘nem-nem’, que não estudam e nem trabalham”, adverte.  

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Por fim, ela lembra que a repetência afeta competências socioemocionais das crianças e adolescentes, impactando sua autoestima — apontamentos que encontram eco na história de Cristian. “Não saber ler nem escrever era uma humilhação. Eu pensava que, se para quem tem estudo já estava ruim, imagina para mim… Eu já estava me dando por vencido”, recorda, destacando que a situação afetava inclusive seus relacionamentos: “Imagine um jovem de 16 anos ficar só mandando áudio no WhatsApp, não saber nem conversar direito com as garotas… Era a maior vergonha”. 

Acolhimento 

A trajetória de Cristian dos Santos no sistema educacional só começou a mudar mais recentemente, quando ele ingressou em uma escola da Fundação Roberto Marinho, no Rio de Janeiro, que atende estudantes da modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA). “Quando cheguei lá, pensei que não ia dar em nada, que eu ia ficar de enfeite, até dar os dois anos [duração da EJA] e eu repetir de novo, voltar à estaca zero. Mas foi completamente diferente”, relata. 

Cristian

Cristian dos Santos passou por algumas reprovações que só o desestimularam. Quando ingressou em uma escola da Fundação Roberto Marinho para EJA, o acolhimento foi determinante para a sua permanência
(Foto: Amanda Nunes/divulgação)

Na instituição, são adotadas diversas ações citadas por especialistas como boas práticas para se evitar a repetência, como a aplicação de uma avaliação diagnóstica, que pode ser feita pela escola ou rede de ensino no início do ano letivo, propiciando que o educador compreenda qual o seu ponto de partida. “Sabemos que o estudante da EJA normalmente tem histórico de repetência e evasão escolar. Então, primeiro, buscamos estabelecer um diagnóstico no momento da matrícula, chamando-os para uma conversa com a equipe pedagógica”, expõe Renan Carlos, diretor da unidade escolar. 

Renan

Renan Carlos, diretor na escola da Fundação Roberto Marinho, reforça que muitos alunos atendidos se sentiam invisíveis no sistema de ensino regular (Foto: Amanda Nunes/divulgação)

Outro ponto defendido por estudiosos e levado a cabo no lugar é a compreensão de que as avaliações internas, mais que atribuir notas aos alunos, são um instrumento para orientar o trabalho em sala de aula. “A partir de seus resultados, podemos pensar, inclusive, em estratégias de recomposição de aprendizagem para que o estudante chegue ao final do ano dominando habilidades, competências e expectativas de aprendizagem, sem ser reprovado”, resume. Além disso, o diretor comenta que, na escola, os recursos didáticos são diferentes daqueles utilizados no início da trajetória escolar dos alunos. “Pode não ter tido nada de errado com o material usado anteriormente, mas, para essas pessoas, não funcionou”, assinala, indicando que, a exemplo de Cristian, muitos dos alunos atendidos se sentiam invisíveis quando no sistema de ensino regular. 

“Pela primeira vez, senti que me enxergavam. A professora Daiana [Jardim] notou que eu saía da sala nos momentos de leitura, coisa que, em outras escolas, ninguém percebia. Ela me chamou para conversar, eu contei que não sabia ler e escrever, e ela disse para seguirmos juntos nessa jornada”, recorda. “Confesso que pensei que não daria em nada. Mas, eu aprendi. Aprendi brincando. Do nada, eu conseguia ler e escrever. Hoje, tenho até habilitação, coisa que sempre quis e pensava que não conseguiria”, anima-se, satisfeito ao se descobrir capaz de aprender: “Agora, o céu é o limite”. 

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