NOTÍCIA

Edição 302

Neurociências: o perigo das receitas prontas na aprendizagem

O discurso das neurociências como uma panaceia para os problemas em sala de aula com seu caráter sedutor acaba fazendo com que a divulgação científica séria fique deixada de lado

Publicado em 19/04/2024

por Luciana Alvarez

neurociências Entre as ideias erradas sobre o funcionamento cerebral que circulam na educação, uma das mais persistentes é o mito dos diferentes ‘estilos de aprendizagem’ — visual, auditivo, sinestésico (Foto: Schutterstock)

O processo de aprendizagem é complexo, mas o excesso de cobrança por resultados e a pressa em obtê-los fazem com que muitos educadores e educadoras acabem recorrendo a receitas prontas, várias delas supostamente baseadas nas neurociências. Sem conhecimentos prévios na área e com pouco tempo para se aprofundar, profissionais da educação acabam sendo vítimas em potencial para os neuromitos, um antigo tipo de fake news sobre o cérebro.  

Entre as ideias erradas sobre o funcionamento cerebral que circulam na educação, uma das mais persistentes é o mito dos diferentes ‘estilos de aprendizagem’ — visual, auditivo, sinestésico. Na realidade, quanto mais estímulos, e mais variados, melhor para todo mundo.   

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E não faltam cursos rápidos e sem base teórica, além de influenciadores de redes sociais com pouco ou falta de conhecimento. “Vende-se uma ideia de que a aprendizagem é um processo só do cérebro, e dentro dele estará tudo resolvido. Isso é no fundo uma ingenuidade, uma falha de perceber a complexidade do que é aprender”, afirma o neurocientista Fernando Louzada, pesquisador do departamento de fisiologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). 

Esse movimento não é recente. Louzada conta que há 20 anos se preocupa com a questão. “Comprei meia dúzia de livros sobre o brain based learning (aprendizagem baseada no cérebro): é só bobagem. Resvala muito na autoajuda”, critica. 

Para Louzada, que também é pós-doutor e coordenador do Laboratório de Cronobiologia Humana da UFPR, onde estuda as relações entre sono, aprendizagem e desempenho escolar, não cabe a um estudioso do cérebro ditar como um professor deve ou não ensinar, mesmo quando o docente está usando um conceito ‘errado’.  “Conversei uma vez com um professor que disse que passou a separar os alunos segundo esses supostos estilos de aprendizagem e teve resultados ótimos. Que ele continue com a prática então, porque a experiência dele em sala é o que importa — só não dá para ele dizer que é uma prática com base nas neurociências”, alerta.  

Neuroficação 

Mais do que espalhar bobagens insignificantes, o discurso das neurociências como uma panaceia para os problemas em sala de aula com seu caráter sedutor acaba fazendo com que a divulgação científica séria fique deixada de lado. “A quem interessa essa forma exagerada de divulgar? De um lado, a gente tem uma pressa jornalística, uma vontade de produzir lides bonitos e atraentes. De outro, temos a motivação de aumentar clientes, de vender cursos, livros, cliques em sites, etc.”, pondera o pesquisador da UFPR.  

Louzada

Para Louzada, não cabe a um estudioso do cérebro ditar como um professor deve ou não ensinar, mesmo quando o docente está usando um conceito ‘errado’ (Foto: Gustavo Morita/revista Educação)

Colocar as neurociências em tudo ou exagerar o seu peso é chamado por Fernando Louzada de neuroficação. Assim, além dos riscos trazidos pelos neuromitos, há outros provocados pela neuroficação, como a negação da própria contribuição das neurociências. Uma das repercussões da ideia do papel exagerado das neurociências é muitos pedagogos acharem que tudo nessa área é um absurdo e rejeitarem as possíveis contribuições. Classificam como um modismo”, acredita ele.   

Até mesmo o prefixo ‘neuro’ deveria ser usado com mais moderação. Fernando Louzada cita que é importante os professores conhecerem um pouco sobre nutrição para ensinar aos alunos, mas nem por isso precisam estudar a ‘nutrieducação’.  

No momento atual do desenvolvimento científico, acreditar que as neurociências podem dar contribuições certeiras e prescritivas para a educação não passa de uma ilusão. Ligar de forma direta o que acontece com os neurônios de cada um com o que acontece em sala de aula, na interação entre um conjunto de pessoas, é um salto simplesmente grande demais, defende Louzada. “A psicologia cognitiva estabelece uma ponte melhor; deveríamos fazer uma ligação entre as neurociências e a psicologia cognitiva; e outra da psicologia cognitiva para a educação. Talvez seja melhor a gente olhar mais para as evidências da psicologia”, pondera. 

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Mas se entender o funcionamento do cérebro não pode mostrar o que fazer em sala de aulas, qual seria a diferença para o educador conhecer o que diz a investigação neurocientífica? “Conhecer os mecanismos do cérebro pode não fazer falta, mas se o professor quiser saber porque tem interesse, é fantástico. São conhecimentos que podem ampliar a autonomia do professor, fazê-lo repensar as ferramentas de avaliação, entender aspectos de transtornos ou dislexia e TDAH, ou mesmo do comportamento dos adolescentes”, cita o pesquisador.  

Portanto, conhecer o funcionamento cerebral serve para integrar uma nova dimensão na compreensão do processo de ensino e aprendizagem. Louzada se apoia numa metáfora literária, da experiência do escritor José Saramago na ópera de Lisboa, para mostrar o valor das neurociências. Quando Saramago se sentou atrás da coroa que enfeitava o recinto, viu que a coroa só existia pela metade; que a parte de trás era oca, cheia de pó e teias de aranha. “Para conhecer as coisas, é preciso dar volta toda”, escreveu o português. Na educação, a neurociência é mais um passo para completar a volta.  

Visão ampla 

Adriana Fóz, neuropsicóloga, educadora e diretora da NeuroConecte, concorda que o ‘segredo’ de incluir as neurociências na sala de aula é torná-las fonte de conhecimento e reflexão, mas nunca como uma indicação certa de atividade ou didática. “Se um professor vê um aluno embotado, é interessante ele saber que a emoção vai afetar a qualidade da aprendizagem. Mas o que fazer para mudar aquela situação, isso tem que vir mesmo da experiência daquele professor, da relação que ele mantém com seus alunos. Educar é um processo dialético”, explica.  

O papel do professor não se confunde com o do psicólogo ou psiquiatra, mas como o aprender envolve as emoções, ou seja, é preciso ter sensibilidade para as questões emocionais. Da mesma forma, um professor deve estar atento a problemas físicos e deve encaminhar a um oftalmologista uma criança que precisa enxergar bem para ser capaz de aprender a ler e escrever.  

Ter o cuidado de entender como os processos cerebrais interferem na aprendizagem, portanto, aproxima o professor da sua função primordial de educar.

“O professor não precisa ser médico, mas se o aluno mostra sinais de uma patologia que dificulta a aprendizagem, o professor precisa identificar e encaminhar. Vale para a saúde física e mental. O professor não é o responsável pela saúde, mas por fatores de proteção”, afirma a diretora do NeuroConecte.  

Adriana

O principal para os professores é entender que o cérebro se modifica, se reorganiza, se renova; fenômeno chamado plasticidade cerebral, pontua a neuropsicóloga Adriana Fóz (Foto: Arquivo pessoal)

Adriana Fóz reconhece que o excesso de preocupação com os caminhos do cérebro pode até atrapalhar na rotina. “A situação de aprendizagem no espaço escolar tem uma especificidade, que se dá naquele momento, e que não deve ter excesso de preocupação de como funciona os processos de aprendizagem”, diz. 

Segundo ela, o principal para os professores é entender que o cérebro se modifica, se reorganiza, se renova; fenômeno chamado plasticidade cerebral. “O cérebro é plástico quando se desenvolve na infância, na adolescência e sempre que se aprende. Essa última forma de mudar o cérebro é a vocação da educação”, explica.  

Portanto, na prática docente, não é necessário entender o papel da dopamina no sistema de recompensa, defende Adriana. “Há professores que se interessam, mas nenhum precisa saber detalhadamente dos mecanismos. O que é interessante — e o que ajuda no dia a dia — é o professor entender, por exemplo, que o adolescente vai ter menos sensação de prazer, que a emoção do adolescente suprime a capacidade de decisão. Quando briga, quando sofre alguma ameaça, quando se sente péssimo por algum motivo, não vai conseguir pensar na prova”, exemplifica. 

Para não precisar se tornar um especialista em cérebro e ainda assim ser capaz de ‘dar a volta toda’ e entender o que se passa no processo de ensino e aprendizagem sob diversos ângulos, o caminho para os professores deve incluir formações de qualidade. “Temos visto uma explosão de cursos, vários sites, páginas no Instagram, e muita porcaria. O processo de formação docente nessa área precisa ser muito cuidadoso, valorizar a experiência que os professores já têm, e ser orientado por profissionais sérios”, aconselha Adriana.  

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Luciana Alvarez


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