NOTÍCIA

Edição 302

Autor

Sérgio Rizzo

Publicado em 29/04/2024

Filmes retratam a escola como incapaz de lidar com as singularidades

Conheça ficções recentes que se ocupam de eventos e figuras escolares para tocar em assuntos políticos, sociais, culturais, econômicos, religiosos

Ao menos desde que o diretor francês Jean Vigo (1905-1934) despertou o ódio das autoridades religiosas e governamentais de seu país com o iconoclasta Zero de conduta (1933), sobre crianças que organizam uma revolta no internato onde estudam, sabemos que convém prestar atenção redobrada a filmes ambientados em escolas. Muitos deles têm um olho no que acontece ali, entre os muros dos prédios em que funcionam organizações públicas e privadas voltadas à formação de crianças e jovens, e outro olho nas sociedades em que suas histórias são ambientadas. 

Nesses casos mais ricos de representação do sistema educacional, as conexões estabelecidas pelas histórias narradas e pelo comportamento dos personagens são muito claras: se nenhuma escola pode ser uma ilha completamente isolada de seu entorno sociopolítico, é inevitável que ela seja obrigada a lidar com as pressões vindas dele e as incorpore ao seu cotidiano, às vezes por caminhos tortuosos e traumáticos. Narrativas dedicadas a essas ressonâncias aprenderam também, ao longo do tempo, a explorar a força simbólica que as relações de poder na educação nos oferecem. 

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Não causa surpresa, portanto, que alguns dos filmes mais importantes da recente temporada tenham se ocupado de eventos e figuras escolares para tocar em fatores extraescolares — políticos, sociais, culturais, econômicos, religiosos. Ao fazer esse exercício de observar o sistema educacional como a parte do todo que ajuda a entender o mundo em que vivemos, eles dão a entender que trabalhar com educação, se nunca foi das atividades mais fáceis de desempenhar, reveste-se hoje de uma pesada carga de responsabilidades, talvez inédita, o que contribui para explicar a baixa atratividade da profissão. 

E também não surpreende que esses filmes sejam realizados em diferentes países, a sugerir que, descontadas as particularidades culturais de cada sociedade, há algo de universal em certo mal-estar que sobrevoa a escola na terceira década do século 21. Não é preciso, aliás, recorrer ao cinema de ficção para que esse mal-estar seja examinado. Basta frequentar escolas, como o fazem diariamente os educadores, para apalpar os tentáculos visíveis do fenômeno. No caso de quem está distante, não há desculpa: o noticiário fornece informações suficientes para que se tenha ideia das atuais tensões do universo escolar.  

Monster

Em Monster, os protagonistas adultos são um professor e a mãe de um aluno que passa a se comportar de maneira estranha. Dirigido pelo japonês Kore-eda, teve destaque no Festival de Cannes do ano passado, incluindo o Palma Queer (Foto: Divulgação)

Filmes e escola: obras de valor 

Três longas-metragens que começaram a circular em 2023 e que já foram lançados no Brasil se apresentam, pela repercussão que provocaram, como representantes poderosos desse recorte: o japonês Monster, de Hirokazu Kore-eda, que obteve o prêmio de melhor roteiro e foi também o vencedor da Palma Queer (dedicada a obras que representam aspectos do universo LGBTQI+) no Festival de Cannes do ano passado; o turco Ervas secas, de Nuri Bilge Ceylan, que recebeu o prêmio de melhor atriz no mesmo festival; e o alemão A sala dos professores, de Ilker Çatak, indicado ao Oscar 2024 de filme internacional. 

ervas secas

Um dos corroteiristas do turco Ervas Secas, Akin Aksu, foi professor de artes em uma escola pública da Anatólia, período em que escreveu um diário. O material foi a base para a história do filme, que ganhou o Cannes de 2023 como melhor atriz
(Foto: Divulgação)

Monster foi realizado por um diretor e roteirista habituado, em seus filmes, a tratar de temas relacionados à infância e à família, como Ninguém pode saber (2004), O que eu mais desejo (2011) e Assunto de família (2018), Palma de Ouro de melhor filme no Festival de Cannes. Autor de crônicas intimistas sobre extratos da sociedade japonesa em que o contraste entre a tradição e a modernidade provoca ruídos, Kore-eda pode ser visto também como um mestre no trato das relações intergeracionais. Seus filmes lembram que a convivência entre pessoas de diferentes idades (e portanto experiências) são o motor da humanidade. 

Mosaicos, portanto, em que a percepção de mundo de pessoas mais velhas entra em choque com a de pessoas mais novas — adultos e crianças aprendendo a dividir o mundo. Em Monster, os principais protagonistas adultos são um professor (interpretado por Eita Nagayama) e a mãe de um aluno (papel de Sakura Andô). O menino passa a se comportar de maneira estranha, e supõe-se que a explicação esteja na escola. Nuvens de suspeita envolvem o professor, que se vê preso a uma espiral de incompreensão e desespero diante das acusações (totalmente descabidas, na sua visão) formuladas contra ele. 

Culpado-inocente 

Em Portugal, o filme recebeu um título mais sugestivo: Culpado-inocente-monstro. De um relato para outro, ou de uma versão dos fatos para outra, a mesma pessoa pode ser considerada inocente, ou culpada, ou até mesmo monstruosa — digna de cancelamento na lei da selva das redes sociais. À medida que a narrativa avança, compreende-se melhor a complexidade do que está em jogo naquela situação, e também a dificuldade em explicar e entender essa complexidade num mundo que busca respostas rápidas e simplificadas para tudo. O roteirista do filme, Yûji Sakamoto, disse ter se baseado em experiências pessoais para escrever a história. 

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De acordo com Kore-eda, todos os personagens estão “aprisionados por muros invisíveis”. “A mãe é restringida pelas normas sociais, e o professor é restringido pela sua masculinidade, assim como pelo sistema escolar”, disse à época do lançamento. “E as crianças vivem nesse mundo que os adultos criaram e são afetadas por ele, em termos da violência que lhes é perpetrada. No entanto, elas são capazes de escapar disso. É como se os adultos tivessem sido deixados para trás e as crianças tivessem ido em frente e alcançado a sua própria autorrealização. Eu queria que fosse uma realização positiva.” 

O tal “mundo que os adultos criaram”, na frase de Kore-eda, é também o que afeta duramente os estudantes de Ervas secas. Seu diretor e corroteirista, Nuri Bilge Ceylan, notabilizou-se por narrativas longas, ambientadas em regiões interioranas e ermas da Turquia, em que as personagens lentamente se apresentam ao espectador e, também lentamente, interagem entre elas, como a lembrar que se aproximar de outro ser humano para melhor entendê-lo é uma tarefa trabalhosa, que muitas vezes conduz a uma percepção enganosa e frustrante. Era uma nez na Anatólia (2011) e Sono de inverno (2014) são exemplos desse cinema esteticamente rigoroso. 

Estranhos acontecimentos 

Um dos corroteiristas de Ervas Secas, Akin Aksu, trabalhou como professor de artes em uma escola pública da Anatólia, para onde foi deslocado compulsoriamente, e manteve durante três anos um diário sobre o cotidiano. Esse material foi a base para a história do filme, narrada por um professor de Istambul (Deniz Celiloglu) que se recorda de estranhos acontecimentos ocorridos quando lhe atribuíram aulas em uma pequena cidade remota, onde todos os habitantes parecem se conhecer e as informações circulam à ‘boca pequena’, de acordo com a expressão brasileira, criando percepções sobre todos. 

Mais uma vez, uma acusação faz caminhar a trama. O delegado regional de ensino recebe uma denúncia que envolve dois professores. Diz que não acredita nela, que fará o possível para que ela não tenha prosseguimento, mas recomenda que os acusados se entendam com o diretor da escola e com as alunas que expuseram o problema. A partir daí, o que passa a ocorrer guarda alguma semelhança com a trama de Monster. Indignado com a acusação, mas temeroso de que talvez tenha agido de maneira inadvertida para que houvesse incômodo, o professor-narrador procura investigar a situação — e, ao fazê-lo, desrespeita outros sinais vermelhos. 

Paralelamente, ele se envolve em outro terreno movediço, de caráter pessoal. Se a escola passa a lhe parecer um ambiente hostil, perigoso mesmo, seus outros movimentos fora dali revelam a sua fragilidade e também a sua dificuldade em se relacionar com outras pessoas. Aspectos exclusivos dele, apenas? Ervas secas sugere que não. Logo, os demais envolvidos no episódio escolar, sendo pessoas como ele, e ainda por cima mais jovens, são passíveis também de incompreensão e de julgamentos equivocados. Onde está, no fim das contas, a verdade? Talvez em algum ponto intangível que foge ao alcance de meros mortais. 

filmes e escola

Em A sala de professores — indicado ao Oscar 2024 —, a atriz Leonie Benesch é uma professora que decide investigar o caso de furtos na escola após acusação segundo ela de cunho xenofóbico
(Foto: Sony/divulgação )

sala dos professores 2

A sala de professores (Foto: Sony/divulgação)

Não basta acreditar, deve provar 

Uma das primeiras cenas de A sala dos professores, dirigido pelo alemão de origem turca Ilker Çatak, retoma esse desafio filosófico em uma aula de matemática. A jovem protagonista (Leonie Benesch) lança uma pergunta a seus alunos pré-adolescentes: existe algum número entre 1 e 0,999? Uma aluna diz que sim, e vai ao quadro para apresentar uma equação que valide a sua tese. Outro aluno, para quem a resposta é “não”, faz o mesmo. Por fim, a professora diz qual era o seu objetivo: assinalar que não basta acreditar em uma tese para que ela se torne verdadeira — é preciso comprová-la. Não se trata, evidentemente, de um momento qualquer na rotina daquela turma. 

O princípio da narrativa encontra-se justamente na necessidade de comprovação, outra forma de se referir à busca pela ‘verdade’. Naquela escola, têm ocorrido furtos. A direção e alguns professores estão empenhados em descobrir o responsável, e uma investigação canhestra leva a um dos alunos da classe da protagonista. É um filho de imigrantes, cujos pais são severos e garantem que o filho jamais cometeria um ato como aquele. Incomodada com a acusação, que lhe parece ter fundo xenofóbico, a professora decide investigar por conta própria o caso dos furtos. Detetive amadora, ela afunda-se num pântano que custará caro a diversas pessoas, inclusive a ela. 

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A esses três filmes perturbadores, podemos acrescentar uma dupla de produções recentes dos EUA, indicadas ao Oscar 2024, que também abordam aspectos do mal-estar no universo educacional: American fiction e Os rejeitados. No primeiro, dirigido por Cord Jefferson, um escritor que trabalha como professor de literatura (Jeffrey Wright) desagrada uma aluna — que, por sua vez, o denuncia à direção da universidade — por causa do uso de uma palavra que, segundo ela, deveria ser banida (ainda que esteja no título da obra em análise). O identitarismo entra em cena ali e acompanha o protagonista no desenvolvimento da história. 

De todos os filmes aqui mencionados, o único a ser ambientado em outra época é Os rejeitados, dirigido por Alexander Payne (que já representou a escola com ironia profunda em Eleição). Mas, embora a trama do filme ocorra no início dos anos 1970, seu alcance estende-se obviamente à atualidade, sobretudo à dificuldade de respeitar as diferenças — algo fácil de resolver em discursos, e não tão fácil assim na ação. A convivência forçada entre um professor (Paul Giamatti) e um de seus jovens alunos (Dominic Sessa) demonstra que tanto um como o outro não ‘cabem’ na escola, mais uma vez representada como um ambiente hostil incapaz de lidar com as singularidades. 

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