NOTÍCIA
Função terapêutica e ferramenta de autoinvestigação, escrever requer cuidados. Ambiente escolar pode construir êxito ou trauma
A linguagem traduz o que somos e como pensamos. No texto de uma pessoa há várias chaves para descobrir quais são as questões que a incomodam e como as processa. Atos falhos aparecem o tempo todo. Da história podem ser puxados fios que tocam em questões íntimas que ainda não foram percebidas, mas que aparecem na escrita, uma ferramenta de autoinvestigação e de revelações. Em seu retiro de escrita, num chalé em meio à natureza, Índigo Ayer, escritora brasileira de literatura infantojuvenil, jornalista e roteirista, recebe escritores ou quem queira desenvolver sob sua mentoria ou em solitude um texto ou finalizar um livro. O que observa durante os retiros é que a escrita tem uma função terapêutica, seja na ficção, num trabalho autobiográfico ou acadêmico, e que ali a pessoa se coloca por inteira.
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Índigo, vencedora do prêmio Literatura para Todos, do Ministério da Educação e finalista do prêmio Jabuti, também realiza oficinas de escrita em escolas, com o suporte dos professores. A escritora explica que a escola precisa oferecer às crianças um ambiente de escrita em que se sintam seguras e protegidas e que é no espaço escolar que tudo começa: a memória afetiva de colocar palavras no papel, de escrever uma redação, de elaborar o próprio pensamento, de dar uma ordem para um caos interno por meio de um texto. “É violento quando um professor corrige a redação de uma criança com caneta vermelha e dá nota. Essa atitude pode causar um trauma na criança, que coloca todo seu sentimento no papel”, adverte Índigo. O ideal é que na escola a escrita não seja de avaliação, de correção gramatical, mas um espaço de intimidade e privacidade.
“Acho que as crianças e jovens não têm mais privacidade. Fazer coisas que não sejam para serem expostas, exibidas ou postadas. Por isso que cada vez mais acredito na escrita dos diários, um lugar para desabafar e organizar os pensamentos, que desperta fascínio nas crianças”, revela a escritora, que escreve em seu diário desde os 11 anos até os dias atuais. Segundo ela, a escrita na escola tem duas funções: a técnica, por meio da gramática para a construção de um texto, e a segunda função é a de desenvolver pensamento crítico.
“No momento em que a criança começa a expressar-se, é preciso sensibilidade por parte dos professores, um entendimento de que acontecerão erros de ortografia e gramática, pois é uma fase da criança escritora. Se o texto é bom, os erros gramaticais não devem diminuir a nota, pois o valor de escrever bem é você conseguir se expressar de uma maneira original e sedutora”, pontua Índigo.
Monisa Maciel, educadora há 22 anos, ministra aulas de literatura na educação infantil e ensino fundamental no Anglo Sorocaba, escola particular no interior de SP. Ela, que também é escritora de livros para a infância, mediadora de leitura e contadora de histórias, acompanha os estudantes com um currículo literário. Em seu trabalho, apresenta diversidade de autores, ilustradores, materialidade, formato dos livros e gêneros textuais. O livro é apresentado às crianças por meio da mediação de leitura, da contação de histórias e da leitura deleite. Muitas vezes, a partir das experiências que os estudantes têm com a obra, são criadas oficinas brincantes.
“Criei o projeto Pequenos Autores, em que trabalho durante um semestre inteiro todo o processo do livro: a capa, as páginas, a importância de ter uma editora e a escrita está presente em todos os momentos”, conta Monisa. A educadora explica que o projeto não é obrigatório, os alunos são convidados a participar e a adesão é grande. “É gratificante vê-los engajados e escrevendo de forma criativa”, expõe. Monisa enfatiza que na escola o livro é visto como fonte de conhecimento e aprendizado, mas que, em suas aulas, ele é explorado e visto como arte, e que a relação com a escrita se torna leve, prazerosa e significativa, essencial para mudar o percurso da criança no processo da escrita durante toda a sua vida.
“No dia do lançamento do livro, os alunos usam uma roupa especial, sobem no palco, recebem certificado e, com empoderamento e propriedade, falam sobre a produção da sua obra, sobre a ideia e a criação. Tudo registrado com o processo da escrita que está ligada à arte.”
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Como Diz o Outro é um projeto de escrita tido como ponto alto do semestre, segundo os próprios estudantes do 5º ano do ensino fundamental 1 da Escola Municipal de Ensino Fundamental Pedro Nolasco, na cidade João Neiva, Espírito Santo. Criado por Helder Guastti, pedagogo especializado em alfabetização e letramento e finalista do Prêmio Educador Nota 10, o projeto recebeu esse nome por ser uma frase feita do município de João Neiva.
O ponto de partida do projeto surgiu de um bate-papo dos estudantes com a escritora Gabriela Romeu sobre a vida do interior numa cidade pequena e isolada, cujas crianças resgataram contos e causos vividos com os avós, mães e pais, das andanças pela roça nos finais de semana.
Foram realizados movimentos de pesquisa com as famílias, dos ditados, provérbios e quadrinhas populares, para os alunos fazerem uma produção de registro escrito. Foram até à rua fazer pesquisa de campo com a população da cidade. O produto do projeto Como Diz o Outro é um livro com os contos produzidos pelos estudantes e os elementos que foram registrados e produzidos: quadrinhas, trava-línguas, adivinhas, ditados e provérbios populares. Cada criança fica com um exemplar. A Secretaria de Educação também recebe o livro, bem como a sala de leitura da escola.
Para trazer uma outra dimensão ao trabalho, Helder propôs a utilização da inteligência artificial no projeto por meio do ChatGPT, que trouxe um novo desdobramento para a história que deveria ser continuada e escrita pelos estudantes. Helder discorre como essa inovação causou euforia e motivação aos alunos, que sugeriram fazer as ilustrações do livro utilizando a inteligência artificial. O professor conta que o empenho das crianças foi grande e o resultado belíssimo, e que em todo o processo houve a participação dos alunos. “Enquanto ambiente escolar não devemos vilanizar as vivências das crianças, desconsiderando o que elas fazem fora da escola. Ouvi-las é o que dá significado ao trabalho, seja de escrita ou leitura”, afirma.
Clique aqui para ter acesso ao formato digital do projeto Como Diz o Outro.
Exercício para o cérebro ser capaz de enxergar situações por outras perspectivas, a criatividade é a base para grandes ideias, projetos e práticas bem-sucedidas. Izabela Alves, licenciada em letras pela Universidade da Amazônia (UNAMA) e mestra em estudos literários pela Universidade Federal do Pará (UFPA), ministra aulas de criação em escolas para o desenvolvimento da capacidade criativa dos estudantes.
“A partir de uma música clássica que era tocada na sala de aula, pedi que os alunos imaginassem uma viagem por um grande tobogã e que percebessem cada instrumento tocado na música. Apesar de serem jovens e inquietos, ficaram em absoluto silêncio durante a prática, e ao final propus que escrevessem um texto sobre as sensações que tiveram. Os resultados foram incríveis”, descreve Izabela.
A educadora explica que não adianta estimular a criatividade somente até o final do ensino fundamental e, devido ao programa extenso das séries seguintes, deixá-la esquecida. “Quando chega o último ano da escola, o aluno precisa ter criatividade para escrever um texto para o Enem, pra trazer um repertório interessante, e isso é injusto. O ideal é que a criatividade seja fomentada na escola do início ao fim, pois é uma ferramenta fundamental”, conclui Izabela.