NOTÍCIA
Relatórios do estágio nas escolas avaliam minuciosamente a ação do futuro professor a cada aula
Publicado em 31/05/2023
Por Luciana Alvarez, de Londres*: No curso de formação docente do Reino Unido, todo futuro professor aprende uma lição importante ao receber feedback de seu trabalho. Ter suas aulas observadas por professores experientes que, depois, avaliam detalhadamente a adequação das ações e sugerem ajustes é um dos mais importantes processos da formação inicial de professores britânicos. Esses relatórios vão lapidando o que é feito em sala de aula e preparam os professores para continuar recebendo avaliações de seus trabalhos como forma de aperfeiçoamento mesmo depois de formados.
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Diferente do Brasil, a formação docente se dá em um curso de pós-graduação. Pessoas formadas em qualquer área podem se inscrever para essa pós, que tem duração de um ano. O processo seletivo costuma ser bastante exigente, com análise de currículo, de cartas de indicação e uma carta de apresentação explicando qual a principal motivação para ingressar na carreira.
“Eles chegam pra gente depois de ter terminado um curso na universidade. Muitos já tiveram outras experiências profissionais, passaram um tempo no mercado trabalhando”, conta o brasileiro Arthur Galamba, que desde 2014 trabalha com formação docente na Inglaterra e atualmente é diretor do curso de formação de professores de ciências do King’s College.
Ao longo desse ano de estudos, o futuro docente passa cerca de 65% do tempo na sala de aula de uma escola básica e apenas 35% na universidade. Mas esse estágio prático é supervisionado o tempo todo, seja por um professor universitário, seja por um tutor da escola básica. Esses dois responsáveis se dividem para avaliar cada plano de aula e cada aula dada, com relatórios escritos praticamente minuto a minuto. As observações dos mais experientes são focadas na gestão da sala de aula, com recomendações bastante práticas. Dominar o conteúdo da disciplina que vão lecionar é um pressuposto ao se entrar no curso de formação.
Os feedbacks têm como base os documentos oficiais do governo britânico, que determinam as diretrizes do que deve fazer um docente. Dessa forma, o aluno sabe por quais critérios será avaliado. Ainda assim, não é fácil ser analisado tão minuciosamente. “A observação em sala de aula faz uma diferença positiva enorme, mas foi a experiência de aprendizagem mais intensa e difícil que eu já passei — e olha que eu cursei física e tinha experiência como professor no Brasil”, garante Arthur Galamba, que antes de cursar a pós-graduação que o habilita a lecionar no Reino Unido, se licenciou em física na Universidade Federal de Pernambuco e deu aulas em escolas brasileiras.
Quem está do outro lado tem outros tipos de desafios. Dar os feedbacks exige, além de conhecimento real do dia a dia da sala de aula, uma delicadeza na abordagem. “Sempre que há alguma oportunidade para apontar o lado positivo, incluo um comentário positivo”, conta Arthur, agora como observador de aulas de outros professores.
Quando é preciso fazer uma crítica, o cuidado com a linguagem precisa ser redobrado. “Tento construir a frase da forma mais respeitosa possível, até porque minha missão é incentivar esse professor, dar apoio a ele; não é para desistir da profissão”, afirma o professor do King’s College. Segundo ele, nem sempre os alunos recebem bem suas avaliações logo de cara, mas vão se acostumando ao longo do percurso formativo.
Num exemplo de como costuma proceder, ao apontar num relatório de um professor em treinamento que a atividade inicial proposta numa aula foi complexa demais, Arthur Galamba inicialmente pergunta ao orientando se considera plausível o que pediu para seus alunos e, depois, pede para que ele ‘considere’ propor algo mais simples numa próxima aula.
“Nunca dou uma ordem. A decisão final de como vai ser a aula é dele, não é obrigado a aceitar minha sugestão”, diz.
Contudo, ao estabelecer uma relação de respeito e confiança, o que costuma acontecer é que o futuro professor acate as sugestões de seus formadores. “Apontar como sugestão é um discurso até meio retórico, porque ao fim e ao cabo eu estou sim avaliando. Sou respeitoso nas minhas palavras, mas o aluno sabe que eu conheço do que estou falando, que tenho mais experiência”, explica.
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O chamado Teachers’ Standard é um documento do Ministério da Educação inglês que estabelece as atribuições e responsabilidades dos professores. Trata do que se espera como um comportamento ético dos docentes — diz que eles devem tratar todos os alunos com dignidade e respeito, observar valores britânicos como a democracia, as liberdades individuais, a tolerância religiosa — e dos requisitos para se promover aprendizagens em sala de aula. A parte da atuação docente propriamente dita tem oito itens. Cada item tem detalhamentos, mas em resumo são os seguintes:
1. Estabeleça expectativas altas que inspirem e motivem;
2. Promova o progresso dos estudantes;
3. Demonstre conhecimento do assunto e do currículo;
4. Planeje e conduza aulas bem estruturadas;
5. Adapte para atender aos avanços e necessidades;
6. Faça uso produtivo das avaliações;
7. Gerencie os comportamentos para assegurar um ambiente seguro para aprendizagens;
8. Cumpra outras obrigações profissionais (comunicação com as famílias, trabalho com a equipe escolar, etc.).
Aproveitando uma formação com feedbacks tão intensos, algumas escolas conseguem dar continuidade a essas práticas para que os professores sigam se aperfeiçoando. Na Ashcroft Academy, uma das escolas públicas mais concorridas de Londres, a direção incentiva a manutenção de uma mentalidade aberta a feedbacks de superiores e colegas.
Phill Hall, vice-diretor da escola, compara os professores com esportistas de alto desempenho. “O Rafael Nadal tem um treinador. Provavelmente, se for jogar contra o treinador, ele que vai ganhar. Mas ainda assim escuta o treinador. A gente recebe feedback não por ser ruim, mas porque sempre pode melhorar”, diz. A Ashcroft oferece etapas que seriam semelhantes ao fundamental 2 e ensino médio do Brasil.
Como nem sempre há tempo para que um professor assista às aulas de seus colegas, a escola tem usado a tecnologia para promover esses feedbacks de maneira assíncrona. Com um tablet e um programa de edição chamado Iris Coaching, cada professor pode gravar suas aulas. Em geral, eles escolhem trechos de até cinco minutos em que usam alguma técnica que querem aperfeiçoar para mostrar aos colegas. O breve clipe da aula entra no sistema e os demais deixam suas impressões registradas por escrito.
O exemplo vindo de cima ajuda a quebrar as resistências dos professores a tal exposição. “Mesmo quando a gente erra, não é algo para esconder. Como todo mundo compartilha seus vídeos, até eu, que sou a chefe do departamento, os professores mais novos acabam se sentindo à vontade para compartilhar também”, afirma Lisa Armstrong, coordenadora do departamento de ciências. Atualmente em seu departamento, todos os 15 professores gravam aulas e comentam as aulas dos colegas.
Claro que cada professor tem a liberdade de só compartilhar com os colegas o trecho em que se sentir confortável, quando estiver pronto. Em geral, estão tentando melhorar algumas ações pontuais, como por exemplo, quanto tempo esperar respostas dos alunos quando fazem uma pergunta em sala. “E o professor continua trabalhando até ficar bom nisso”, explica Lisa.
Segundo ela, as gravações podem ajudar também a melhorar a autoestima dos docentes, porque há um perfil de professores que são muito autocríticos. Estes, ao exporem suas aulas, ficam surpresos com os feedbacks elogiosos que recebem. “Alguns dos meus melhores professores não veem como são bons. Então também faz parte do trabalho dar reforços positivos”, afirma.
*A reportagem visitou a Ashcroft Academy e o King’s College a convite da Bett Brasil