NOTÍCIA

Edição 292

Novo ensino médio: entre oportunidades e descasos

Reforma do ensino médio ainda não resolve os antigos problemas educacionais. Com isso, ganha desavenças entre educadores que precisam, mais do que nunca, de formação qualificada e apoio

Publicado em 14/03/2023

por Laura Rachid

novo-ensino-medio-escola-particular Metodologias ativas e resoluções de problemas estão no DNA do Colégio Unochapecó, o qual tem experiência positiva com o novo ensino médio Foto: divulgação

Resumo desta matéria sobre o novo ensino médio

  • Ouvimos educadoras da rede pública e particular que apresentam suas realidades com a reforma;
  • “Brincar de dar aula não é comigo”, diz professora que se decepcionou com os itinerários formativos e deixou a escola estadual para atuar como supervisora na rede municipal;
  • O novo ensino médio do Colégio Unochapecó, SC, é tido como inspirador. Entre as causas, por garantir aos alunos a aprendizagem por área do conhecimento.

A implantação gradual do novo ensino médio (NEM) se tornou obrigatória em 2022, só que até o momento faltam programas em todos os estados compromissados com uma formação inicial e continuada que dialogue com tais transformações. Desde então, o que para muitos educadores está sendo um desafio instigante, para outros, principalmente os da rede pública, o sentimento é de frustração. Claudia (nome oficial ocultado) é docente na rede estadual da Paraíba e desabafa que os professores receberam uma formação genérica e define a implantação do NEM como um caos.

“Ano passado trabalhei com o itinerário formativo de história, foi bem complicado, sobretudo porque o estado não trouxe nenhum tipo de formação específica para esse novo currículo. Ofereceram um curso geral no meio do ano letivo, mas que não ajudou muito. Já a escola em que eu trabalhava não teve ação voltada para esses itinerários, então cada professor fazia o que já sabia”, critica a professora da Paraíba.

Contudo, reconhece um esforço do estado: “a Paraíba lançou uma proposta curricular descrevendo como deveria ser [a implantação do NEM]. É um documento interessante, apesar de na prática não ter funcionado direito”.


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Há 10 anos lecionando, o abismo educacional entre a rede particular e a pública ficou ainda mais claro para a pedagoga e professora de língua portuguesa Joseane Brito com a chegada do novo ensino médio. Joseane mora em Minas Gerais e dá aula para essas duas realidades. “Acredito que a mudança funciona, sim, na particular, mas na pública a experiência que eu tive não deu certo, principalmente pela falta de recursos.”

Joseane deu aula em uma escola estadual para o ensino médio ano passado, no município mineiro de Vespasiano. Dedicada, busca sempre se atualizar sobre práticas pedagógicas com o intuito de estimular seus alunos. Porém, enquanto a visão de educação de Joseane vem se ampliando e dialogando com as necessidades atuais, a coordenação pedagógica da escola na qual lecionava está presa ao modelo antigo expositivo, do século passado, o qual defende que o aluno esteja sentado na cadeira enfileirada o tempo todo.



O que é o novo ensino médio?

A Lei 13.415 de 2017 amplia a carga horária do ensino médio de 2.400 horas para 3.000 horas ao final dos três anos e divide o currículo em duas partes: conteúdos obrigatórios, os quais não mais são divididos por disciplina, mas por áreas do conhecimento, e cria os itinerários formativos, um leque de áreas de aprofundamento o qual cada escola tem liberdade para a escolha dos temas.

A carga horária obrigatória deve ter até 1.800 horas, já o restante é destinado aos itinerários formativos, que não possuem limites de horas.



Professora sem apoio da coordenação

Os desgastes foram tantos que trouxeram a certeza de que no ano letivo seguinte não trabalharia com itinerário. Foi então que em 2023 ingressou em uma escola municipal, agora como supervisora pedagógica. “Brincar de dar aula não é comigo.”

Voltando a 2022, primeiro ano oficial do NEM, Joseane assumiu na escola estadual o itinerário práticas comunicativas e criativas. Comunicaram que ela teria que se virar para dar aula.

“Fiquei empolgada quando li o documento orientador do estado. Falei: uau, dá para trabalhar vários gêneros textuais dentro da língua portuguesa, posso abordar interpretação, produção. Mas ao chegar à escola comecei a ser cortada. ‘Não temos material; não tem como usar a sala de vídeo; não tira a turma da sala agora porque vai tumultuar; não podemos disponibilizar internet para os alunos’,” conta a professora mineira Joseane.

Com isso, seus alunos ficaram presos a um conteúdo que poderia ser explorado de diferentes maneiras, mas, pela falta de engajamento da coordenação, se resumiu a quadro e caderno.

Segundo Joseane, a coordenação deixou claro que não tinha material para apoiar os professores – ou não queria –, só que ao pesquisar ela descobriu um documento orientador dividido por bimestre elaborado pelo estado de Minas Gerais. E foi a partir desse documento que se orientou para elaborar as aulas.


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Quando buscou fazer junto aos seus alunos um jornal, por exemplo, o desafio foi convencê-los de que era instigante o que estavam criando, mesmo tendo apenas caderno e caneta. “Não tinha tinta, pincel ou qualquer recurso para fazer de verdade um jornal. E percebi que essa falta de recurso vinha do coordenador do ensino médio por achar que os alunos só aprendem quando estão sentados na cadeira, em fila e olhando pro quadro.”

Em outro momento, redistribuiu a sala em grupo, deixando de lado o modelo de carteira enfileirada. “Queria que a gente estivesse de igual para igual, ouvindo. É o que chamamos de protagonismo e troca de chapéu – quando o aluno também traz informações, e às vezes eles trazem mais do que o professor”, reconhece Joseane. Após a atividade, a professora recebeu a orientação de não tirar mais as carteiras do lugar.

A experiência da Joseane está entre as mais comuns das escolas: o ‘atrito’ entre coordenação e professor. Um é a base do outro, só que nem todos os profissionais querem compreender isso. Enquanto alguns educadores têm sede de aprender, buscam o novo, outros estão presos ao que aprenderam no início da carreira e não procuram constante atualização.

“Acho que se a escola tivesse acreditado na proposta do novo ensino médio e dissesse aos professores: ‘Olha, estamos juntos, vamos trabalhar’, teria dado muito certo, porque a proposta é boa no papel, só que a gestão da escola tem que acreditar na proposta.”

Hoje, na escola municipal, a realidade é outra: “sou supervisora pedagógica de verdade, aquela que elabora projeto, que coloca a mão na massa apoiando os professores. Não sou a que dá ordem. Abro para sugestões e adaptações. Estou tentando fazer a diferença lá dentro”, assegura.

Novo ensino médio, projeto que inspira

Localizada no interior de Santa Catarina, é na promissora cidade de Chapecó que o novo ensino médio acontece de maneira inspiradora, constata Eduardo Deschamps, presidente entre 2016 e 2020 das comissões do Ensino Médio e da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no Conselho Nacional de Educação. Em 2021, a Universidade Unochapecó lançou sua frente de educação básica particular, no momento apenas voltada ao ensino médio, o Colégio Unochapecó, instalado dentro do campus, compartilhando salas, professores, laboratórios e equipamentos de ponta que só uma universidade consegue adquirir.

Por conta do ano em que foi lançada, a proposta pedagógica do colégio nasceu alinhada com o novo ensino médio, valorizando a interdisciplinaridade, como ao cumprir com a carga horária de formação geral básica por área de conhecimento, criando como saída a regra de ter sempre dois professores por área de conhecimento na mesma sala. No caso da área de ciências humanas e sociais aplicadas, por exemplo, lecionam no mesmo momento um professor que abarca geografia e história e outro professor que abrange sociologia e filosofia. Juntos mobilizam os conhecimentos da área de forma articulada.

Para construírem os temas dos itinerários formativos, o colégio, que ‘nasceu do zero’, escutou estudantes da região. A experiência dos itinerários aconteceu com a primeira turma, em 2021. Desde então, a equipe busca escutar seus alunos para ajustarem os itinerários de acordo com o interesse deles, garante a diretora Marizete Matiello.


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Atualmente, a instituição oferece para o 1º ano do ensino médio 800 horas da formação básica e 200 horas de itinerários formativos diversificados, sem aprofundamento, distribuídos em projeto de vida; processos de criação e comunicação visual; negócios, finanças e empreendedorismo; e ambiente, saúde e bem-estar. Já o 2º ano tem 600 horas da formação básica e 400 horas de itinerários em aprofundamento em comunicação, saúde e meio ambiente. E no 3º ano há uma inversão para 400 horas de formação básica e 600 de itinerários, sendo eles os mesmos do ano anterior, só que em mais profundidade e com o acréscimo da visão empreendedora.

Em Chapecó, o colégio particular que Marizete Matiello dirige não abre mão das quatro horas semanais de planejamento coletivo e integrado para todos os docentes implantarem o novo ensino médio (Foto: divulgação)

Para mudanças como o novo ensino médio surtirem efeito com qualidade, a formação inicial e continuada dos professores é fundamental. Sabendo disso, dentro da proposta pedagógica do Colégio Unochapecó nasceu a garantia de quatro horas semanais de planejamento coletivo e integrado para todos os docentes. A proposta é um diálogo entre os professores que incentive a articulação dos saberes, o que inclui a compreensão das competências e habilidades prescritas para o ensino médio.

“Contratamos professores com perfil para trabalharem em uma proposta ousada, por metodologias ativas; a nossa sala de aula não é tradicional. Além disso, em janeiro de 2021 iniciamos um processo de formação sobre o novo ensino médio voltada às metodologias ativa e interdisciplinaridade. Então formação, pra gente, se dá em tempo de serviço. Não é fácil, é um desafio, nem todos os professores estão preparados”, reconhece a diretora. Ela enfatiza que a proposta escolar tem dado certo porque toda a equipe se dedica, tendo o hábito de estudar, uma vez que boa parte dos professores são mestres e doutores.


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Os docentes universitários que lecionam nos itinerários formativos também participam. “Eles têm que entender o processo da educação básica.”

A diretora sabe que o novo ensino médio pede ousadia, mas, como ninguém nasce sabendo de tudo, os professores necessitam de apoio.

“Precisamos ter pessoas nas coordenações, na gestão pedagógica, para fazer a orientação, o trabalho pedagógico do que é planejar interdisciplinarmente. Aqui estamos preparados, mas, e as redes públicas, elas possuem domínio pedagógico para dar a segurança de que o professor precisa?”, alerta a diretora Marizete, que também é professora universitária e atua na escola pública há 19 anos, sendo a maior parte com o ensino médio.

No Colégio Unochapecó, as salas de aula são distribuídas por áreas do conhecimento. A de ciências da natureza tem mesas circulares que se desencaixam para facilitar diferentes distribuições em sala – sendo que nenhuma sala tem carteiras alinhadas –, justamente o modelo que a professora de Minas Gerais Joseane tentou aplicar, mas cuja escola a proibiu. “Não usamos livro didático. Não temos um sistema de apostilamento porque não existe ainda algo que possa nos oferecer com qualidade as relações interdisciplinares entre saberes”, diz a diretora Marizete.

Compromisso

Os relatos de Claudia, Joseane e Marizete apontam para um desafio escolar antigo, mas que em momentos de mudanças estruturais, como é o caso do novo ensino médio, se torna ainda mais latente: a vontade política das secretarias de educação, dos diretores escolares e coordenadores pedagógicos – tanto da rede pública quanto da particular – para os projetos serem implantados com eficácia, seja o NEM ou qualquer outra iniciativa.

Amábile Pacios, presidente da Câmara de Educação Básica no Conselho Nacional de Educação (CNE), concorda. “O diretor precisa abraçar o novo ensino médio junto de seus coordenadores porque senão a gente não implantará nenhuma proposta pedagógica. A gestão precisa deixar isso claro para a sua comunidade acadêmica. Até porque os professores vão ficar dependendo de uma orientação: ‘vamos por aqui, para lá’.”

Questionada sobre avaliar a atuação das secretarias de educação do país para a efetivação do novo ensino médio, prefere falar do Mato Grosso do Sul. Ela defende que o estado tem uma experiência exitosa de apoio às escolas.

“Notamos que quando a secretaria tem um diálogo claro com o sistema, este absorve com clareza o que tem que ser feito. Agora, se a secretaria deixa na dúvida, a escola não sabe direito como atuar em sua proposta pedagógica”, analisa a presidente da Câmara de Educação Básica no CNE.

Pedras no caminho

Selma Rocha é doutora em história social, foi secretária municipal de educação em Santo André, SP (1997-2000), e ainda carrega o orgulho de ter atuado na secretaria de educação da cidade de São Paulo quando Paulo Freire era o gestor. Indagada se acredita que o NEM chega para diminuir a evasão escolar e aproximar os jovens do mercado de trabalho, Selma afirma que essa reforma não resolve nenhum problema do ensino médio e defende, assim como outros pesquisadores, a substituição da lei. Para ela é necessário repensar o conceito de competência. “Precisamos abrir um debate; a discussão é bem mais complexa”, alerta.

“Mas, antes de discutir diretamente o texto da reforma, temos que fazer perguntas que o antecedem: o que queremos com esse ensino médio no Brasil? O que queremos para a juventude?”, reflete Selma Rocha.

A historiadora Selma Rocha pede a substituição da lei do NEM (Foto: arquivo pessoal)

Uma grande preocupação da professora Joseane, de Vespasiano, e que ainda hoje é tida como polêmica dentro do novo ensino médio, é a ‘redução’ de disciplinas como história, geografia, sociologia e filosofia. “Esses alunos estão deixando de ter conteúdo, então reduziram as aulas de história, de geografia, reduziu-se o conteúdo que vai ser cobrado no vestibular. Com isso, a rede pública distancia ainda mais seus alunos de concorrerem com alunos das outras escolas”, desabafa Joseane.


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Contudo, há educadores que defendem que essas disciplinas apenas não estão visíveis, mas que permanecem. No caso do Colégio Unochapecó, a diretora Marizete explica que houve uma espécie de adiantamento da matéria, para no 3º ano os estudantes se aprofundarem em outros campos.

A historiadora Selma Rocha concorda com Joseane. “Dentro da reforma, em função do conceito de competência, houve uma redução no currículo muito profunda, de tal maneira que os estudantes não terão acesso a várias dimensões do conhecimento. É um currículo pobre tanto no que diz respeito à ciência, à tecnologia, às artes, como em relação à formação técnica. Formação profissional exige ciência e técnica. Paulo Freire dizia: ‘a prática não é redutível à teoria e a teoria não é redutível à prática’. Ou seja, nenhuma pode ser substituída pela outra e a meu juízo o conceito de competência tenta fazer isso. No mundo em que vivemos, seja lá qual for a profissão, a pessoa precisa cada vez mais entender o mundo e entender o real. Se elimino isso da formação de um jovem, ele dificilmente pensará o mundo e, certamente, outros pensarão por ele.”

Itinerário na formação profissional

O segundo problema, no entender de Selma, é que formação profissional não gera emprego. O que gera emprego são algumas políticas de desenvolvimento econômico, ambiental, e essas políticas podem e devem envolver a perspectiva de formação profissional, mas não apenas de maneira instrumental, acredita.

“Porque os ofícios que a BNCC e a reforma sugerem são de baixa qualidade. Sem qualificação, o acesso ao emprego não vai ser melhor, a não ser que seja para ser subexplorado no mercado. Mas não podemos achar que o horizonte de um país é formar gente para ser subexplorada no mercado. Não podemos ser vendedores de ilusão”, critica a historiadora.

Em relação ao itinerário, analisa que é uma palavra dentro da reforma, mas que não existe itinerário: o cidadão conclui o ensino médio sem ter a formação profissional.

“Esses itinerários não formam. Tanto é assim que não é uma formação técnica. Acho que o itinerário dentro do ensino médio não ajuda. Eu trabalharia o itinerário na relação ensino médio e formação profissional, que é outra coisa bem diferente. Trabalharia essa relação considerando uma ampliação de vagas e articulando os institutos federais, as escolas técnicas estaduais, todo o sistema de formação profissional no país com base regional [para dialogar com as necessidades locais]. Então seria interessante que o ensino médio favorecesse uma relação de construção de itinerários via formação profissional, mas não por dentro do ensino médio”, detalha Selma Rocha.

Outro ponto crítico da historiadora e também apontado por outros pesquisadores é que o projeto de vida tende a fazer com que a criança e o jovem acreditem que depende deles conseguir um emprego e se desenvolverem profissionalmente. “Isso não é verdade. A sociedade tem que permitir que tenha emprego. Por que há gente com qualificação dirigindo Uber? Não podemos partir do pressuposto de que uma parcela da sociedade será excluída e contida por meio da reforma do ensino médio.”

Ainda sobre outra proposta de novo ensino médio, Selma volta a 2015, quando os estudantes secundaristas ocuparam as escolas em São Paulo e no Paraná e construíram outro currículo, ao qual não apenas o mercado interessava, mas a criação também. “Os alunos tinham literatura, poesia, teatro, cinema. O trabalho não é só técnico. Então essa reforma do ensino médio é uma reforma de contenção. Só uma elite do país terá acesso à ciência. A grande questão no Brasil é que nós não tenhamos uma educação de segunda classe para os jovens. Os processos cognitivos não são lineares. Então um jovem precisa ter contato com o esporte, com a dança”, afirma.

Selma finaliza reforçando que os jovens precisam de financiamento para concluírem a educação básica e/ou a formação profissional. Também defende o fortalecimento das bibliotecas: “um jovem que lê literatura escreverá em qualquer área porque ele pensa os problemas, as épocas diferentes, ele cria. A literatura é libertadora”.

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Autor

Laura Rachid


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