NOTÍCIA
A afirmação é da professora de psicologia do IFRJ e da Fiocruz, que completa com reflexões sobre os impactos do epistemicídio na saúde mental de pretos, indígenas e comunidade LGBT
Publicado em 27/09/2022
Diversidade e saúde mental são alguns dos temas abordados por Jaqueline Gomes de Jesus nesta entrevista. Ela é pesquisadora e professora de psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Atualmente, compõe a Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia e preside a Associação Brasileira de Estudos da Trans-Homocultura (ABETH). Tem 15 livros publicados.
É ativista desde os tempos de estudante na Universidade de Brasília (UnB), primeira universidade federal brasileira a instituir cotas para pessoas negras, em 2003. Um momento histórico, do qual Jaqueline participou de maneira decisiva. Logo em seguida, foi a primeira gestora da diversidade para apoio de alunos cotistas, criando a estrutura para o que hoje é o Centro de Convivência Negra, na própria UnB.
Jaqueline traz, ainda, aspectos da pesquisa Sexual and gender minority mental health in low and middle income countries (SMILE), título em inglês para Saúde mental de minorias sexuais e de gênero em países de baixa e média renda. Esse levantamento é uma parceria entre IFRJ, Fiocruz e a Duke University, na Carolina do Norte. Jaqueline é coordenadora da pesquisa no Brasil.
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Terminamos o projeto piloto, que durou cinco anos, do qual participaram Brasil, El Salvador, Vietnã, Índia, Quênia e Camboja. Agora, focamos Brasil, Quênia e Vietnã, para coletar e analisar os dados com mais profundidade. Trabalhamos com grupos focais e amostragem. São milhares de pessoas de diferentes cidades desses países. A sintomatologia de saúde mental reúne quatro transtornos: depressão, ansiedade, estresse pós-traumático e suicidalidade. O objetivo é avaliar como aquela amostragem se diferencia de acordo com a orientação sexual e identidade de gênero.
Nos países com altas taxas de depressão, como Quênia e a Índia, quando comparamos com a população em geral ou com grupos específicos, também analisamos fatores sociais. Na Índia, boa parte das hijas – mulheres trans e travestis – tem pouco suporte social. Por exemplo, acessos a aluguel de uma residência ou serviço de saúde são mais negados. No Brasil, há mais apoio social, mais organização das entidades, da comunidade. Mesmo com falhas, o apoio é maior do que na Índia, para comparar esses dois países. Ou mesmo em relação ao Quênia, onde depressão e ansiedade têm alta incidência, principalmente entre mulheres lésbicas. Esse apoio social auxilia o controle dos níveis de depressão e ansiedade.
No caso da Índia, há uma questão histórica importante. Eles não são binários como no Brasil e entendem que há três gêneros: homens, mulheres e hijas. É uma experiência milenar, de cerca de quatro mil anos, em que as hijas constituem uma categoria de gênero. Com o processo do imperialismo britânico e da colonização, elas ficaram isoladas, num contexto intenso de perseguição, lgbtfobia e transfobia.
É impressionante a força da colonização: são milhares de anos de uma cultura com simbologias, divindades próprias, e há pouco apoio social para elas agora. No Brasil, há pessoas LGBT que, ao longo do processo de colonização, tiveram os nomes apagados. As pessoas não sabem porque isso não é ensinado no estudo da história, mas, desde antes da colonização, temos a diversidade sexual e de gênero, com diferentes nomes.
No caso das hijas, o que chama a atenção é que elas são uma comunidade consistente, uma cultura consolidada há milhares de anos e, mesmo assim, o processo de colonização afetou a maneira como elas são apoiadas.
Sim. A concepção binária, ou seja, homens e mulheres entendidos dentro de um determinado padrão de comportamento, foi uma imposição colonial europeia. Na própria Europa, até o século 16, havia apenas um gênero, o homem, aquela pessoa que tinha pênis e testículo, ou seja, eram os genitais que definiam o sexo, e por isso definiam como aquela pessoa se comportaria. Havia esse reducionismo da identidade da pessoa ao gênero dela, ao genital. O homem era o ser humano completo. As mulheres eram entendidas como um defeito de gênero. Há essa herança até hoje na língua portuguesa. Por exemplo, “homem” como sinônimo de ser humano. Houve uma transição dessa concepção, nos séculos 16, 17. Começaram a entender gênero de maneira binária e propagaram essa visão nas colônias, para culturas que não tinham necessariamente a mesma visão. Mesmo com essa transição ainda permanece esse padrão de reduzir as pessoas aos genitais.
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É importante lembrar que o Brasil passou por um processo de colonização muito particular, o de exploração. Os diferentes povos tiveram formas de resistência e sobrevivência ao processo de colonização e instalação do capitalismo. Somos frutos desse processo de mais de 500 anos, cuja base é o extermínio e a ocupação de territórios. Antes do extermínio, para justificá-lo, há o epistemicídio, que é a lógica do apagamento dos saberes, da forma de ser, é o não reconhecimento desses diferentes povos. Então, antes de ter a violência e a ocupação do território, houve o apagamento da identidade e da cultura.
No Brasil, essa experiência terá um impacto mais explícito por causa da escravização em massa, um sistema nunca antes visto. A partir daí houve a construção dessas identidades sob uma perspectiva europeia do que significa ser branco, negro, indígena. Os diferentes povos indígenas e africanos não se reconheciam como indígenas nem como negros. Foi uma forma de atribuição dos europeus para efetuar o epistemicídio.
O que tem ocorrido é que, ao longo dos séculos, temos ressignificado não exatamente os termos, mas seus conteúdos. Por exemplo, os norte-americanos não usam o termo “negro”, eles usam “afro-americano” ou “afrodescendente”. No Brasil, continuamos adotando o termo, mas ressignificado.
Hoje em dia, muito do que entendemos por ser negro, negra, não é igual ao que era no processo de colonização. Há também esse embate atual de não utilização do termo “índio”, como foi colocado pelo europeu. Essa experiência afetou nossa identidade, trouxe grande prejuízo, inclusive para a identidade nacional.
O racismo tem impacto geracional. Nossos ancestrais já tiveram que lidar com violências geracionais. Quando analisamos a saúde da população negra, vemos que muitos agravos têm a ver mais com o racismo que afetou as gerações do que com características biológicas, como na ocorrência das doenças cardiovasculares, alergias, situações de abuso de álcool e outras drogas, para além das questões de herança genética propriamente, como na ocorrência da anemia falciforme.
A análise de saúde mental tem aspectos históricos e precisam ser analisados no contexto em que vivemos. O jovem negro enfrenta o racismo estrutural. É estrutural porque a própria sociedade reverbera e reproduz. Além disso, a geração atual vive um contexto de neoliberalização da vida, em que cada vez mais as relações são individualizadas.
Hoje temos mais acesso a profissionais de saúde mental. Mesmo com o SUS precarizado, não dá nem para comparar, por exemplo, ao século 19, em que o acesso à saúde e a ideia de cidadania estavam vinculados ao ofício. Apesar disso e de haver mais acesso à tecnologia, os cuidados não são coletivizados. Nossos ancestrais tinham núcleos de cuidados: o terreiro, a comunidade cristã, o quilombo, a comunidade urbana, a família.
É fundamental termos profissionais de saúde que trabalham com base em evidências, em método científico, mas o SUS, grande conquista do século 20, está precarizado, o que provoca impactos negativos na área de saúde mental. Têm aumentado os dados de ansiedade e depressão, as pessoas se sentem perdidas. A resposta é muito individualizada. Por exemplo, a pessoa está sofrendo “porque não sabe empreender, não está se esforçando”. O grande fator da diferenciação da juventude de hoje para a de outras épocas é que os cuidados não são coletivizados, e isso é extremamente grave, porque os jovens dependerão mais de um sistema público de cuidado.
Temos a vantagem do acesso a tratamentos e cuidados em saúde. Houve um desenvolvimento científico no sentido de construir estratégias e métodos de cuidado. O grande desafio é que ela foi pautada muito tempo por uma perspectiva brancocêntrica, heteronormativa, cisgênera. Por séculos foram utilizados como instrumento o pensamento social racista, lgbtfóbico. O método científico, em si, não é um problema, mas é como tem sido usado pelos colegas.
Como eu falei, o processo de colonização foi antecedido pelo epistemicídio. Ainda hoje persiste o estereótipo de que apenas os europeus têm ciência, como se não houvesse produção de conhecimento sistematizado, seja de forma popular, seja como teoria científica, por outros povos. Então, há esse contexto de cuidados em saúde, mas os pesquisadores precisam se abrir para uma perspectiva menos eurocêntrica.
É difícil, porque as próprias estruturas das instituições – Fiocruz, por exemplo, e todo o sistema de pensar saúde e cuidados – são construídas nessa lógica: quem produz o conhecimento é o homem branco, cisgênero, supostamente heterossexual. Como se a própria população – as mulheres negras, LGBTs, indígenas – não produzissem conhecimento científico.
O ensino superior foi pautado no modelo europeu, inclusive desconsiderando a produção de saberes na África, Oriente Médio e Ásia. Então, é difícil para os colegas se desapegarem desse modelo e da ideia de que não estão falando por todos. É preciso tomar cuidado com essa posição, porque há histórico vinculado ao racismo científico, à psicopatologização de mulheres, de populações LGBT.
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Sim, há uma intersecção muito forte. No caso do Brasil, a maioria da população LGBT é negra, então há intersecções do racismo e da lgbtfobia, e que ainda não foram bem analisadas. Em geral, quando se analisa a saúde da população LGBT, se desconsidera sua diversidade étnico-racial. E isso tem impacto, muito mais numa sociedade judaico-cristã, com tantas questões relacionadas a gênero e sexualidade. As primeiras que foram alvo de epistemicídio, para chegar ao extermínio, foram as mulheres, na figura da bruxa, que é a demonização da sexualidade da mulher. Foi daí que surgiram os crimes sexuais como a sodomia, a obrigação de relações sexuais reprodutivas dentro de um contexto heteronormativo, que é presente ainda. Essa experiência ainda é forte e a intersecção com o aspecto racial a intensifica, pois o processo colonial e a tradição europeia se sobrepõem.
Vemos muitos problemas de saúde mental na academia que se relacionam com a desvalorização da diversidade. Há muitas dificuldades na relação entre docentes e discentes. As pessoas denunciando machismo, sexismo; as mulheres que engravidam e que perdem pontuação, porque não estão publicando ou orientando. Há colegas que acreditam e afirmam que mulheres pesquisadoras são mais fracas, são piores que os homens.
Em 2020, a Nature publicou um artigo de pesquisadores que coletaram o seguinte dado: mulheres que orientam são menos lidas e seus orientandos, mulher ou homem, também. As pesquisas de homens e seus orientandos têm mais divulgação. A análise responsabilizou as mulheres, afirmando que elas têm que investir mais em divulgação. Ficou evidente que faltou um debate de gênero para entender que a própria organização social da academia valoriza os orientadores homens, até porque, em geral, homens orientam homens. Uma das saídas que debatemos é que os homens orientem mais mulheres. Também não conheço nenhuma pessoa trans que tenha bolsa de produtividade no CNPq.
As ações afirmativas são voltadas para qualquer população que tenha sofrido algum tipo de desvantagem histórica. Para a população negra, mulheres, LGBTs, pessoas com deficiência. Há diferentes métodos para as ações afirmativas. Mas é preciso pensar como fazer para garantir o acesso dessa população excluída historicamente. No Brasil, se pensa em cotas, em reservas de vagas. Há outras estratégias que os países têm usado. Nos EUA, fazem benefícios fiscais; a instituição comprova que garantiu acesso a populações que estavam excluídas e ganha benefícios fiscais. A Harvard e outras universidades se beneficiam disso. É fundamental; sem o acesso dessas pessoas não se faz gestão da diversidade. Não tem sentido.
Acompanhamos as conferências preparatórias, no Brasil, para a Conferência de Durban, na África do Sul, de enfrentamento ao racismo, xenofobia e intolerâncias correlatas, ocorrida em 2001. Essas conferências movimentaram muito a sociedade brasileira, tanto que as discussões sobre a necessidade de ações afirmativas no Brasil levaram a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) a criar uma lei que obrigasse as universidades estaduais do Rio a terem cotas para a população negra.
Em 2003, a UERJ foi a primeira universidade estadual a implantar as cotas. À época, a saudosa reitora Nilcea Freire levou essa luta adiante. Na UnB estávamos discutindo. Também em 2003, foi apresentado um plano de metas para inclusão étnico-social ao Conselho de ensino, pesquisa e extensão, que o analisou e aprovou. Considerando a dívida histórica, a UnB tinha que adotar ações afirmativas de três formas: vestibular próprio para a população indígena, o programa para estudantes da escola pública, portanto, com recorte social, e a ação que ficou mais famosa: o sistema de cotas para negros e negras. Foram reservados 20 por cento das vagas para o sistema de cotas dentro do sistema universal do vestibular.