NOTÍCIA

Edição 287

Abandono também na educação de jovens e adultos

O Brasil tem cerca de 11 milhões de pessoas que não sabem ler nem escrever, segundo dados do IBGE de 2019. Apesar disso, o número de matrículas tem caído a cada ano. E a evasão completa quadro aterrador

Publicado em 23/08/2022

por Sandra Seabra Moreira

Foto 7x Alunas do CIEJA Campo Limpo, em SP (Foto: Nado Capucci)

Eliel Rodrigues é advogado. Mineiro, 38 anos, retornou ao seu estado natal há pouco mais de um mês. Em Abaeté, pretende advogar e ter uma vida tranquila com a esposa e seus quatro filhos. Seis anos atrás, a história era diferente. Pastor da Assembleia de Deus, de Araxá foi transferido para a zona sul de São Paulo. À época, ele tinha apenas a 8ª série inconclusa e considerou que era o momento de voltar a estudar. “Eu queria concluir até o ensino médio, não pensava em faculdade; era um pensamento pequeno.” Ele pesquisou várias escolas e encontrou o CIEJA Campo Limpo. Lá, os educadores, observando as capacidades de Eliel, o incentivaram a prestar o Enem.

“A professora de português disse que ia me ajudar, que eu faria uma redação por dia. Os professores me disseram que se conseguisse aprovação do Enem, eliminaria o ensino médio e conseguiria uma bolsa para a faculdade. Era tudo o que eu queria, foi o cavalo que passou arreado na minha frente e a galope.”

Eliel teve nota 680 na redação e média global de 573. Pôde escolher entre teologia, psicologia e direito. Cursar a faculdade não foi tão fácil, mas seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) atingiu nota 8,0. Em abril de 2022, enfrentou o exame da OAB e passou. “Fui vencedor, graças a um plano de ensino para jovens e adultos que deu certo.” Quando recebeu o resultado da aprovação na OAB, Eliel fez questão de voltar ao CIEJA. “Quis prestar os meus agradecimentos a todos os professores, incentivando-os a continuar a fazer o mesmo com outros alunos. Foi uma bênção na minha vida.”

educação de jovens

Eliel Rodrigues, hoje advogado: “fui vencedor, graças a um plano de ensino para jovens e adultos que deu certo”

Os Centros Integrados de Educação de Jovens e Adultos – CIEJAs – surgiram a partir de 1994 e passaram por transformações ao longo dos anos. A proposta pedagógica atual é referência nacional. Há 16 deles na capital paulista, que oferecem seis diferentes horários para estudar e onde há vagas o ano todo. O histórico dessas unidades de ensino pode ser conhecido por meio do livro e e-book CIEJAS na Cidade de São Paulo – Identidades, culturas, histórias, escrito por profissionais que atuam nelas.


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Direito violado

Os CIEJAs são um alento para este momento em que turbulências políticas, descaso governamental e crise sanitária prejudicam o já difícil acesso e permanência na educação básica de jovens e adultos. De 2018 a 2019, cerca de 300 mil alunos dos anos finais do ensino fundamental e 200 mil do ensino médio migraram para a EJA, conforme o Censo Escolar do Inep. O Brasil tem cerca de 11 milhões de pessoas que não sabem ler nem escrever, de acordo com a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada pelo IBGE na área da educação, em 2019. Esse número representa 6,6% da população.

Apesar da evidente necessidade dela, a EJA não consta na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e, nos últimos anos, sequer foi contemplada pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático, o PNLD. Outro dado do Censo Escolar é revelador: o número de matriculados na EJA vem diminuindo nos últimos anos. Em 2020, antes do início da pandemia, 3 milhões de estudantes se matricularam, um número que foi 8,3% menor do que o registrado em 2019. Em 2021, foram 2,9 milhões de matrículas. Ou seja, o Brasil não tem cumprido o artigo 208 da Constituição Federal que prevê a educação básica gratuita – inclusive aos que perderam a chance de estudar na idade correta.  

Entre os que se matriculam, muitos não chegam ao final do curso. A evasão, historicamente, é o maior problema enfrentado pelas escolas que oferecem a modalidade. Nos CIEJAs, elas também ocorrem, mas tudo é pensado para evitá-la. Dianna Melo é professora de português que atuou na EJA de 2009 a 2016, tanto em escola municipal quanto em CIEJA e, atualmente, trabalha na Divisão de Educação de Jovens e Adultos da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. Ela conta as estratégias dos CIEJAs para reduzir a evasão.

“Tenho um estudante matriculado pela manhã e, de repente, ele precisa cobrir férias de outro funcionário nesse período. Para que não perca a vaga, temos o passaporte: ele trabalha de manhã e assiste às aulas no período noturno, naqueles 30 dias. No final do bimestre, o professor do noturno passa a frequência, o desempenho, os trabalhos desenvolvidos desse estudante. Ele não vai se afastar dos estudos por causa do trabalho.”

Dianna conta que isso é possível porque há integração entre os professores e reuniões semanais em que todos se encontram. Compensar períodos de ausência com entrega de trabalhos e atividades, no caso de necessidade de viagens, por exemplo, é outra facilidade. Essa flexibilização é direito do aluno e garantida pela portaria municipal que rege os CIEJAs. 

educação

Para a professora Dianna Melo, flexibilização é direito do aluno

De um modo geral, a falta de material didático é compensada pela produção de material próprio, alinhado às diretrizes oferecidas pelo currículo da cidade. “Os CIEJAs têm perspectiva de trabalho na educação freiriana, iniciamos o ano fazendo um círculo de cultura e dele retiramos um tema gerador, com o qual desenvolvemos o projeto interdisciplinar. Os professores elaboram e organizam o material, fazem o planejamento das aulas em diálogo com esse currículo e a prefeitura oferece apoios pedagógicos. O professor não é obrigado a usar, mas está à disposição”, detalha Dianna.

Ela lamenta a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) nos primeiros meses do governo atual e que pertencia ao Ministério da Educação, pois talvez pudesse oferecer alternativas a situações dramáticas. “Os CIEJAs atendem pessoas com deficiência. Quando elas terminam os estudos aqui, não conseguem continuar no ensino médio. Há a perspectiva atual, no contexto da EJA, de uma ‘educação ao longo da vida’. Como fica a continuação para essas pessoas?” E reitera: “As políticas públicas que temos asseguradas no município poderiam ser mais fortalecidas se houvesse direcionamento federal”. 


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Tem que ser prioridade de todos

Diego Elias Duarte é coordenador-geral do CIEJA Campo Limpo, criado em 1998 na capital paulista. Atual­mente, recebe 966 alunos. Antes da pandemia, esse número era de 1.547, uma evasão de quase um terço dos alunos. Falta de dinheiro para pagar a taxa de 35 reaispara obter o bilhete único de estudante e necessidade de atuar em subempregos para garantir o nível de vida de antes da pandemia estão entre as causas, afirma o coordenador. Entretanto, a evasão já era motivo para reflexões antes da crise sanitária. Ele acredita que a maneira como a sociedade enxerga a EJA não é interessante.

“Até a Lei de Diretrizes e Bases, revolucionária que foi em 1996, coloca o ensino fundamental como prioritário, mas não a educação de jovens e adultos. A luta contra o analfabetismo, bandeira de Paulo Freire, não é uma luta de todos os governos. Não sendo objeto de esforço, a EJA reflete nossa sociedade. É preciso que o empresário seja obrigado a olhar para isso, o terceiro setor, a sociedade como um todo”.

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Alunos do CIEJA Campo Limpo, em SP
Foto: Nado Capucci

Para ele, questões como fracasso escolar, deficiências, criminalidade, discriminação, racismo, todas elas vão respingar na EJA. “Como é possível que a taxa de analfabetismo não caia proporcionalmente ao número de vagas?” A chave para entender, opina, é a questão socioeconômica. “Primeiro está a sobrevivência das famílias.” 

A cidade de São Paulo tem estrutura mais adequada, ainda assim, ocorre o fechamento em massa de salas. Diego Duarte detalha as dificuldades das escolas para ofertar a modalidade. “Numa Emef, é comum ter 800 alunos, um diretor, dois assistentes, dois coordenadores e o grupo de professores. Essa escola funciona das 7h às 19h. Ao pensar num horário noturno para a EJA, a pessoa vai considerar: não há materiais disponíveis, não há uma política pública que garanta a permanência dessas pessoas na sala de aula, vai ter de dividir os funcionários, esticar o atendimento, talvez prejudicando o atendimento aos demais alunos.” Nesse contexto, para Duarte, a decisão de não ofertar uma EJA precarizada é óbvia. De um modo geral, o oferecimento dessa modalidade está atrelado a muito empenho da comunidade escolar e esforços da municipalidade. “Mas a EJA não pode ser uma causa pes­soal, nem trabalho voluntário.”

Educação de jovens

“Não sendo objeto de esforço, a EJA reflete nossa sociedade”, ressalta Diego Elias Duarte, coordenador-geral do CIEJA Campo Limpo, SP

Numa pequena cidade turística no sudoeste do Mato Grosso do Sul, a diretora de uma escola municipal que oferece a modalidade EJA e que preferiu manter sua identidade oculta, também menciona a dificuldade de formação de turmas dos primeiros anos do ensino fundamental. “Legalmente, não consigo formar uma turma se não tiver de 25 a 30 alunos.” Assim, sem turma formada, conforme aparecem os interessados, não há vagas a oferecer. A evasão também é um problema, com muitos jovens que trocam a escola por trabalhos no campo. 

Na Bahia, o Colégio Estadual Polivalente de Feira de Santana oferece a EJA do ensino fundamental à tarde e o ensino médio à noite. Os motivos da evasão se sucedem:  gravidez, tornar-se arrimo de família, trabalho na feira livre, no salão de beleza… “Na quinta-feira, os alunos já começam a faltar, por cansaço”, diz a diretora Daniela Cordeiro. “De 40 alunos que se matriculam, apenas 20 terminam o curso.” Uma evasão de 50%. “Fazemos de tudo para não fechar turmas, é também uma vaga de trabalho que se fecha ao professor.” Ela conta que a última vez que a escola recebeu material didático para a EJA foi em 2014. Em relação às obras literárias, que também são confeccionadas por meio dos editais do PNLD, diz que, ao longo de 16 anos atuando como professora de EJA, nunca recebeu títulos para escolher obras literárias específicas para esse público. 


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PNLD deixado de lado

Em 2014, último ano em que a escola em Feira de Santana recebeu material didático para alunos da EJA, o Programa Nacional do Livro Didático para Educação de Jovens e Adultos (PNLD EJA) entregou 13 milhões de exemplares; em 2018, foram apenas 2,1 milhões, de acordo com dados do Anuário Abrelivros 2022, que também registra o seguinte: “nos anos recentes, a iniciativa foi suspensa, por conta da revisão dos marcos legais da educação e da necessidade de atualização dos livros, de acordo com informes do FNDE [Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação]. Assim, não há dados do PNLD EJA em 2019, 2020 e 2021”. Ou seja, não houve mais editais para a confecção de materiais didáticos. 

Os autores e as editoras trabalham para elaborar o mais adequado para as faixas etárias, nos diversos segmentos da EJA, desde a alfabetização até o ensino médio, explica Ângelo Xavier, presidente da Associação Brasileira de Livros e Conteúdos Educacionais (Abrelivros). O conteúdo é produzido a partir de um edital elaborado pelo MEC. Ele afirma: “O maior abandono de alunos é no ensino médio, porque o adolescente chega a um momento, por volta dos 16 ou 17 anos, em que precisa trabalhar, não consegue fazer as duas coisas e abandona a escola”. Os cursos da EJA são semestrais, e não anuais, como acontece na educação regular.

“Esse aluno precisa de uma atratividade, de um material didático mais condensado, que faça com que ele termine o ensino médio, eventualmente para ir para a faculdade ou para se qualificar melhor para o mercado de trabalho”, pontua Ângelo.

Também para jovens e adultos em processo de alfabetização, a adequação é necessária: “o livro didático do ensino fundamental 1 tem menos textos, as ilustrações dos livros regulares são voltadas para crianças pequenas, com um material desse já não se poderia trabalhar com pessoas mais velhas. Fazemos a adequação iconográfica e também de conteú­do na dose correta para atender esses alunos”. 

A inequívoca necessidade dos materiais didáticos específicos encontra um obstáculo: “o que está por existir é a construção de uma proposta do MEC. Na verdade, esse governo não fez nenhum movimento na direção de atender os alunos da EJA. Mesmo no governo de transição [governo Temer], a EJA foi relegada”, afirma Ângelo Xavier. Segundo ele, produzir o material didático para a EJA é importante para o mercado editorial, mas não tão relevante quanto o impacto social da EJA para a sociedade: “o Estado tem uma dívida com essa parcela da população e precisa fazer um esforço para atendê-la”. 

Quase a totalidade do atendimento da EJA no ensino fundamental é atribuição dos municípios. O ensino médio fica a cargo das Secretarias Estaduais de Educação. Para Natanael José da Silva, presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) de Pernambuco, a EJA é mais uma modalidade que foi desprestigiada durante a pandemia, período em que os municípios sofreram uma desassistência total do governo federal. Natanael afirma que a descontinuidade de políticas públicas é extremamente grave.

“O aceno nacional não foi dado no Plano Nacional de Educação (PNE 2014/2020). Estão aí as 20 metas, além das metas subsequentes, que dependem umas das outras e nós não tivemos avanço. Em 2015, quando da aprovação do PNE, a expectativa era que boa parte dos recursos do pré-sal se destinaria à educação e os municípios teriam condições de aumentar em até 60% a oferta na pré-escola, como chegar à universalização do ensino integral na educação básica. E a EJA também estava nesse contexto. Mas o que houve foi o engavetamento do PNE, só agora está sendo analisado, faltando três anos para concluir o decênio.”

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Natanael José Silva, da Undime PE: “Sempre houve disposição para construir uma plataforma para a EJA em nível nacional”
Foto: Manoel Júnior

Ele também evidencia o esforço de gestores e da comunidade escolar, nos municípios, para atendimento do público da EJA. Municípios com boa receita arrecadatória conseguem dar conta da especificidade da EJA, entretanto, cerca de 80% deles não estão nessa condição. “Faltou ao governo federal um olhar para as práticas exitosas. Sempre houve disposição para construir uma plataforma para a EJA em nível nacional. Nós já temos o diagnóstico, os números, as informações, o que não tivemos foi efetivação de uma política que pudesse jogar luz sobre os municípios e estados.”


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O que dizem o MEC e o CNE

Por e-mail à repórter, o Ministério da Educação informou que a Secretaria de Ensino Básico (SEB) está construindo o cronograma para publicação do novo edital PNLD/EJA ainda em 2022. Suely Menezes, presidente da Câmara da Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE), menciona as novas diretrizes operacionais da Resolução nº 01/2021, de 25 de maio de 2021, que alinham a EJA à Política Nacional de Alfabetização (PNA) e à BNCC. Carga horária, temporalidade, local são aspectos que foram observados para facilitar o acesso e permanência dos alunos na EJA. A principal alteração, explica Suely, foi a ênfase na educação e aprendizagem ao longo da vida.

“Historicamente, as três formas da EJA são presencial, por EAD e com ênfase na formação profissional. Agora, alinhamos uma nova tendência de valorização de aprendizagens formais e não formais. Ampliando as possibilidades desse aluno da EJA, que pode não desaguar num processo propedêutico, mas num projeto de vida em que ele possa ser útil para a sociedade, manter a autoestima, porque aprendeu coisas que ele pode oferecer para a sua comunidade.” A Resolução nº01/2021 teve suas diretrizes esmiuçadas em documento referencial para implementação da EJA nos estados e municípios.

Escute nosso episódio de podcast:

Autor

Sandra Seabra Moreira


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