NOTÍCIA
Êxito e transparência do Programa Nacional do Livro e do Material Didático são determinantes para que esse esforço de gerações enfrente as turbulências do país e continue uma das bases da educação brasileira
Por Carlos Dias: DO OIAPOQUE AO CHUÍ
— Silêêêêênciooooo!
A professora não grita – brada – e esfola as cordas vocais para ser ouvida. A voz ecoa pela sala e se dispersa no meio do burburinho muito mais potente das crianças, cheias de energia e disposição logo cedo pela manhã. A professora repete o apelo, até que por fim todos os alunos se acomodam em seus lugares e vão aos poucos diminuindo o volume.
— Abram o livro na página 48 — pede a educadora, enquanto o farfalhar causado por dezenas de dedinhos apressados, folheando as páginas em busca do número indicado, preenche o ambiente e dá início à sinfonia da educação.
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Cenas muito parecidas com essa repetem-se ao mesmo tempo, dia após dia, literalmente do Oiapoque – na Escola Indígena Estadual Moisés Iaparra – ao Chuí – na Escola Estadual Marechal Soares de Andrea. A uma distância em linha reta de 4.180 quilômetros, ambas são atendidas igualmente pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático, o PNLD. Elas recebem gratuitamente obras educativas de alta qualidade pedagógica e também física, pois os livros são analisados pelo insuspeito IPT, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas da USP.
Entre o estabelecimento de ensino do Amapá e o do Rio Grande do Sul, outras quase 150 mil escolas públicas recebem mais de 150 milhões de exemplares. Para fazer chegar tantas obras a tantos estudantes, o governo federal desembolsou 1,8 bilhão de reais em 2019, números que fazem do PNLD o segundo maior programa do gênero, perdendo em tamanho apenas para a China. Mas apenas em tamanho.
Enquanto o governo chinês centraliza todo o processo, inclusive a escolha dos livros, o programa brasileiro opera em um nível de democracia e de transparência que dá margem a poucas críticas, tanto de alunos e educadores quanto de autores e editoras. “Ao longo dos anos, o programa foi aperfeiçoado, cresceu e modificou-se e a escolha das obras passou a ser feita pelos professores”, afirma Silvana Júlio, diretora adjunta de didáticos e PNLD da FTD Educação. “Foram organizados os critérios para a avaliação dos livros e houve a ampliação da oferta de livros didáticos para todas as áreas do conhecimento”, acrescenta. “Além disso, veio a inclusão de dicionários, atlas, obras literárias e outros materiais de apoio, inclusive digitais. Mais recentemente, surgiram programas específicos para o ensino médio, para a educação no campo, para a educação de jovens e adultos e a inserção de manuais para professores da educação infantil, universalizando a oferta de materiais para toda a educação básica.”
Nem sempre foi assim. O país nem sempre foi assim também. Durante muito tempo, o ensino obrigatório no Brasil era até a quarta série do primário, hoje chamado ensino fundamental. Até 1971, a criança de 10 anos tinha de fazer uma espécie de vestibular, o exame de admissão, para continuar o ensino fundamental – e poucos passavam. Não é de se estranhar, portanto, que se a universalização do ensino não era prioridade, muito menos os livros educativos. “A avaliação dos livros didáticos pelo MEC teve início só nos anos 90”, relembra Silvana. De lá para cá, muita coisa mudou para melhor até o ponto em que todas as crianças e jovens brasileiros, do Oiapoque ao Chuí, tivessem acesso a uma carteira e um bom motivo para obedecer a professora quando ela pede silêncio.
Quando o livro se abre na página 48, conforme a professora pediu, três a quatro anos se passaram até ser possível que aquela obra chegasse às mãos do estudante. Não são somente folhas de papel ramalhando entre seus dedos, como a cochichar conhecimento. São o resultado de um trabalho árduo que começa no autor. “A elaboração de um livro didático é um processo extremamente complexo e, não raro, resume um projeto didático-pedagógico de um autor construído ao longo de toda uma vida”, afirma Cândido Grangeiro, presidente da Abrale (Associação Brasileira dos Autores de Livros Educativos). “Apenas a produção editorial desses livros, sem considerar o planejamento e a escrita, se estende por cerca de dois anos, envolvendo dezenas de profissionais, cujo principal objetivo é evitar erros e ter a obra mais correta possível”, disse ao jornal El País.
O PNLD tem regras muito rígidas, mas também muito claras. Qualquer deslize nas normas de qualidade pode colocar a perder um trabalho de anos não só do autor, como também das editoras, que investem pesado para aprovar suas obras – o que nem sempre acontece. Faz parte de um jogo com muitas casas a percorrer . “Não há como uma editora ou um autor se queixar quando uma obra não é aprovada”, afirma Mário Ghio, presidente da Somos Educação. Segundo ele, apesar de anos de trabalho e milhões investidos, quando um livro é reprovado pelo MEC os argumentos são lógicos. É duro para o autor e para a editora, mas é bom para o sistema educacional.
Mais do que no futebol, a regra é clara. “A formalização dos editais foi se sofisticando cada vez mais, ano após ano, de modo que foram ficando cada vez mais objetivos e técnicos”, explica Ghio. Isso fez com que o PNLD como um todo melhorasse. “Ao melhorar, levou as editoras a um patamar de qualidade superior, e hoje o mercado editorial de livros educativos brasileiros é um dos cinco mais importantes do mundo”, pontua. “Como consequência, temos autores relevantes para o aluno, com obras sólidas e muito bem cuidadas em todos os aspectos.”
Silvana, da FTD, concorda. “O PNLD é um programa de alta complexidade, que exige do MEC, dos Correios, das escolas, dos professores, das editoras, dos autores e das associações grande envolvimento e dedicação profunda para que os alunos possam receber uma educação de qualidade”, diz ela. “E os critérios de avaliação contribuíram para o desenvolvimento do programa, dando maior transparência às avaliações bem como ao aprimoramento dos livros didáticos.”
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Após um dia cansativo de trabalho, a mãe tenta dividir em dois copos o restante de uma garrafa de suco para acompanhar o jantar dos filhos pequenos. Ela faz o melhor possível para que cada um receba exatamente metade, pois sabe que um dos dois pode reclamar – se não os dois.
— O dele tem mais — protesta a menina.
— Não! Ela é que ficou com mais — rebela-se o menino.
A mãe perde a paciência ao não ver reconhecido seu esforço de ser justa e decretou:
— Chega! João divide o suco, e Maria e escolhe o copo.
As crianças, pensativas, silenciam. Não há como acusar o irmão de trapacear. Quem divide faz o melhor possível para ser justo porque é o outro quem vai fazer a escolha da parte que vai caber a ambos.
É uma lógica parecida com essa que norteia o PNLD e ajuda a fazer com que ele funcione bem. “Parte do sucesso do programa é o fato de que quem escolhe o livro não é quem paga por ele”, afirma Ghio, da Somos. “Existe uma real capacidade da escola de fazer suas escolhas.”
Mas se o sistema funciona bem, o preço é a sua complexa operacionalização. O programa funciona em ciclos de três anos alternados. Trocando em miúdos, o FNDE compra e distribui anualmente livros para todos os alunos de uma determinada etapa de ensino, como os anos iniciais do ensino fundamental (além de repor e complementar as obras reutilizáveis das outras etapas, como os anos finais do ensino fundamental e ensino médio). No ano seguinte, outra etapa é contemplada, e assim sucessivamente, ano após ano.
“Nós temos livros didáticos consumíveis, reutilizáveis e literários”, descreve a coordenadora geral do PNLD, Nadja Cézar, oficializada no posto em abril. “O consumível, no geral, é apenas para uso durante um ano letivo, já que o aluno escreve nele. O reutilizável pode ser usado por até quatro anos”, explica. “Depois desse período, os livros são repostos, pois muitos já estão danificados ou desatualizados. Os literários, por sua vez, são bens permanentes, que não se desatualizam nunca e vão integrar o acervo da escola.”
O PNLD 2019 destinou livros para os alunos do chamado ensino fundamental 1. Em outras palavras, todos os alunos do primeiro ao quinto ano receberam exemplares novos dos livros didáticos de cada matéria. “Isso quer dizer que essas obras vão ser usadas durante quatro anos”, exemplifica Nadja. “O livro recebido agora em 2019 pelo aluno do primeiro ano vai ser utilizado por mais três alunos que cursarem essa série nos anos subsequentes. E quando esse estudante chegar ao quinto ano, em 2023, vai receber um livro novo, uma vez que o ciclo de quatro anos se reinicia.” Por isso, os volumes devem ser conservados, bem cuidados e devolvidos para o uso de outros alunos ao longo do período de três anos. Sem a devolução, os custos se multiplicariam.
Ao que se saiba ninguém conseguiu propor ainda um sistema mais simples e ao menos com a mesma eficiência. Mas há sugestões para um aperfeiçoamento desse fluxo. “Como todo programa dessa magnitude e relevância, sempre há espaço para melhorias”, pondera Felipe Polletti, diretor editorial da Editora do Brasil. “Nesse aspecto, destacaria a implementação de um cronograma fixo que se repetiria todos os anos, partindo da publicação do edital até a entrega do livro na sala de aula”, sugere. “Além do cronograma fixo e contínuo, acredito que a avaliação dos materiais inscritos poderia ser feita por etapas, em vez da análise do livro pronto”, acrescenta. Para ele, seria mais eficiente se as obras fossem avaliadas por fases. “Faríamos um módulo, capítulo ou algo perto de um quarto do livro. Entregaríamos, esperaríamos as orientações, conversaríamos com os avaliadores”, acrescenta. No modelo de hoje, a aprovação pelo MEC pode ser um jogo de tudo ou nada – e a página 48 de muitos autores pode jamais ser aberta.
Pessoas, empresas e instituições envolvidas com a educação, com o livro didático e, por extensão, com o PNLD entraram em 2019 com a aflição de quem acorda de um pesadelo, com o medo primal da escuridão, do bicho-papão. Pela primeira vez desde o início do processo de redemocratização do país, um governo afirmou que mudaria “tudo que está aí” no reino da Educação. Logo no primeiro dia útil, veio a notícia de mudanças no edital do PNLD 2020, retirando a proibição de publicidade, removendo a necessidade de referências bibliográficas e aceitando a frouxidão com erros ortográficos e de impressão. O governo também anunciou a intenção de reescrever parte da história, eliminando dos livros a ditadura militar.
Mas foi só um sonho ruim.
“O PNLD é um programa de Estado, não de governo”, sintetiza Ghio. “Nem sempre foi assim, mas hoje ele é referência mundial”, complementa. O presidente da Somos conta que está há três décadas nesse mercado, passou por vários presidentes de diversos partidos, e o PNLD avançou ao longo desse tempo sem a ingerência transitória de pessoas com mandatos temporários. “Nunca vi nenhuma interferência”, afirma, em relação ao período em que o programa começou a se consolidar.
O PNLD 2020 é uma prova de que os cães ladram, mas a caravana passa. Divulgados no final de junho, os resultados do programa confirmam isso. Nenhum autor ou editora teve sua obra reprovada por conta de questões como a ditadura, o que resultaria em injustos prejuízos milionários para quem tinha feito tudo conforme o figurino. O figurino, no caso, é a Base Nacional Comum Curricular, a BNCC: um documento destinado a nortear o conteúdo do que é ensinado nas escolas brasileiras, com diretrizes gerais, assim como a Constituição – que, não por acaso, é um dos pilares desse texto, construído com uma maciça participação da sociedade.
Em tese, o arcabouço que sustenta os elementos fundamentais da educação brasileira está tão bem fundamentado que dá segurança a todos os participantes do programa sobre o conteúdo didático das obras. Mesmo assim, há medo – palavra que não rima com educação. “O autor sente um risco bastante ampliado de ver seu trabalho excluído por leituras ideológicas ou atos de censura, despertados por uma ou outra palavra, um ponto específico de seu livro”, diz Grangeiro, da Abrale. “A instabilidade política e social que nos cerca ajuda bastante a compreender a escolha de autocensura por alguns autores.”
As editoras são reticentes, misturando receio com confiança. “Todos os governos em todos os países sofrem críticas e elogios, independentemente de seu posicionamento”, minimiza Polletti. “Em momentos como este, de novo governo, é importante reforçar que o processo educacional requer continuidade em muitas ações, e a importância do PNLD está sendo percebida nesse contexto”, afirma. “O livro didático precisa ser abrangente, disponibilizando a professores e alunos conteúdos que permitam reflexões sobre diferentes assuntos e diferentes pontos de vista sobre esses mesmos assuntos”, acrescenta. “A BNCC hoje é a maior referência para isso.”
“A história brasileira sempre foi polarizada e se exemplifica culturalmente até em partidas de futebol”, também minimiza Silvana, da FTD. “O Brasil vive um momento econômico, político e social no qual o contexto polarizado ganha diversos significados em variados campos de atuação”, acrescenta, frisando que a educação também é alvo diário de questionamentos ideológicos. Ela, no entanto, demonstra confiança nos editais, baseados em vários documentos que lhe dão sustentação. Mesmo assim, um temor subjaz. “O agravamento desse contexto — contrapõe Silvana — parece acirrado, pois as pessoas estão definindo uma posição e se fechando a qualquer opinião diferente da que acreditam ser a mais adequada.” Do Oiapoque ao Chuí.
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