NOTÍCIA
Longa mantém a invejável capacidade de condensar, em uma narrativa breve e de caráter realista, alguns dos principais desafios que se impõem a profissionais de educação
Publicado em 06/10/2021
A Palma de Ouro de melhor filme no Festival de Cannes, uma indicação ao Oscar e diversos outros prêmios internacionais ajudaram a fazer de Entre os muros da escola (2008), uma das mais poderosas representações do que ocorre em uma sala de aula já produzida pelo cinema. Nos últimos 25 anos, é provável que nenhuma outra obra audiovisual – incluídas séries e minisséries de TV – o tenha superado na invejável capacidade de condensar, em uma narrativa breve (pouco mais de duas horas) e de caráter realista, alguns dos principais desafios que o nosso tempo impõe a profissionais de educação, sobretudo aos que trabalham no ensino público.
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É o caso de François (ou Sr. Marin, como os alunos o chamam), o protagonista do filme. Em uma estratégia ousada do diretor Laurent Cantet, ele é interpretado por alguém que não tinha experiência com atuação, mas que sabia muito bem como era o cotidiano de um professor da rede pública francesa: François Bégaudeau, autor do romance (publicado no Brasil pela Martins Fontes) que deu origem ao roteiro (escrito por Cantet e por um de seus habituais colaboradores, o hoje também diretor Robin Campillo). Bégaudeau havia trabalhado durante alguns anos em uma escola de Paris e usado a experiência como inspiração para o livro – ficção que transpira realidade, como se fossem anotações de um diário.
Aliás, ao colocar Bégaudeau à frente das câmeras, Cantet buscava uma autenticidade que dificilmente um ator profissional poderia imprimir ao personagem. Procedimento semelhante foi utilizado para recrutar os adolescentes que interpretam uma das turmas do Sr. Marin, moradores de uma região da capital francesa que corresponde à do filme, etnicamente diversificada. Esses filhos e netos de imigrantes interpretam… filhos e netos de imigrantes, ora. Para tornar naturais as interações, seus próprios nomes e apelidos batizam seus personagens. Diversas câmeras posicionadas apenas em uma das quatro paredes da sala de aula criam no espectador a sensação de bisbilhotar o que ocorre ali.
E o que, no fim das contas, ocorre ali? Um leigo, talvez esquecido do tempo que passou na escola, diria que são apenas cenas corriqueiras de aulas sobre língua e literatura. Um olhar mais atento, no entanto, pode enxergar naquela sala um microcosmo da sociedade francesa. Não por acaso, o título original é Entre les murs, “entre os muros”, sem o “da escola” que a distribuidora brasileira acrescentou, delimitando o alcance dessa imagem. Os muros sugeridos pela narrativa são os que se erguem na sociedade, às vezes invisíveis. Ou seja, eles estabelecem até onde vai a mobilidade de alguns e, ao circunscrever territórios, afastam uns dos outros. Criam rancor. Alimentam com a desesperança.
Tudo isso no ensino público da França, aquele fundado nos ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade”. Nesse aspecto, o filme conseguiu capturar, com incrível precisão, um certo mal-estar que já contaminava o país quando o filme foi realizado. E, assim, antecipou tensões que se multiplicariam nos anos seguintes, desde os incidentes de fundo racista que envolveram a seleção francesa de futebol na Copa de 2010 (e que provocaram uma investigação do governo quando a equipe regressou da África do Sul, onde o torneio foi realizado) até atentados terroristas de fundo religioso e a ascensão da extrema direita em eleições regionais e presidenciais.
Mas, como um típico filme “glocal” do século 21, Entre os muros da escola combina esses elementos locais – muito próximos do espectador francês, mas nem tanto do público de outros países, em especial os não europeus – com outros globais, facilmente compreensíveis em inúmeros lugares. É o que ajuda a explicar, sobretudo, o calor de muitos debates realizados no Brasil à época do lançamento do filme nos cinemas. Com participação expressiva de professores, esses encontros demonstraram que educadores se identificavam com situações do filme como se o Sr. Marin e seus alunos viessem de uma escola brasileira, pública ou privada. Na tela, a projeção de dilemas e incômodos vividos no cotidiano.
Cabe assinalar que os pontos de vista, no Brasil, eram divergentes. Havia, por exemplo, quem enxergasse uma certa dose de heroísmo no Sr. Marin e em seus colegas de escola – submetidos, nessa leitura, a difíceis condições de trabalho, que incluíam alunos despreparados e desinteressados. Mas havia também, no outro lado do ringue das argumentações, quem fosse mais duro com os educadores do filme e com seus supostos papéis de vítimas (uma sequência na sala de professores, em que um professor comenta as características dos alunos de uma turma, ilustra bem esse ponto de vista). Cantet veio ao Brasil, participou de debates e incomodou muita gente ao dizer que não tinha propostas educacionais a fazer.
De fato, a grandeza do filme está associada ao fato de que, diferentemente de tantos outros filmes sobre educação, não foi construído como plataforma para discursos proselitistas. Seu realismo possibilita que o espectador mergulhe com autonomia nessa representação da escola e extraia dela o que lhe parecer apontar para algum sentido. Identificar os tais muros, efetivos e simbólicos, é um dos caminhos.
*Sérgio Rizzo é jornalista, crítico e curador de cinema e ex-editor da revista Educação.
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