NOTÍCIA
Com a missão de despertar a musicalidade nos não ouvintes, cerca de 1.200 jovens e adultos foram atingidos pelo projeto financiado pelo Rumos Itaú Cultural
Surdo pode ser o que quiser, inclusive músico. É o que defende e estimula, há dez anos, o pernambucano Irton Mario Canalli Silva, 47 anos, mais conhecido como Mestre Batman, por meio de seus projetos de inclusão, entre eles a Caravana MusiLibras, que no final de 2019 passou por São Luís, Teresina, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife, Maceió, Aracaju e Salvador ensinando gratuitamente jovens e adultos com surdez total ou parcial a tocar instrumentos de percussão como alfaia e agogô. Foram cerca de 1.200 atingidos em dois meses e meio, sendo para a maioria, sua primeira experiência musical.
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“Enquanto a sociedade insiste em limitar o outro, eu sempre procurei enxergar os superpoderes das pessoas, principalmente nos grupos mais subestimados”, desabafa Batman, que é formado em Música e Pedagogia e também possui experiências com cegos, autistas e crianças com síndrome de Down.
Em Salvador, o Centro de Surdos da Bahia (Cesba) foi um dos locais pelos quais a Caravana passou e contou com a participação de ouvintes, como a da pedagoga Kelly Santos, 45 anos, que foi adquirir conhecimento para enriquecer suas futuras aulas de Língua Brasileira de Sinais (Libras) para ouvintes. Um dos fundadores do Cesba, Milton Bezerra, 63 anos, também marcou presença. Ao tocar alfaia o seu sorriso foi de orelha a orelha. “Eu senti a vibração. Foi emocionante e fiquei muito feliz”, revela em Libras para a intérprete Cíntia Santos, que é também coordenadora de projetos sociais do Centro.
Quando pequeno, em Recife, o idealizador da Caravana tinha um vizinho surdo cuja mãe não o deixava tocar justamente por conta da surdez. Tamanha injustiça o fez crescer com a curiosidade de investigar a relação dos surdos com a música. Já adulto, o curta-metragem O Resto É Silêncio (2008), de Paulo Halm, deu a certeza de que muitos têm curiosidade sobre a música e do que ela provoca nas pessoas. “O filme também me mostrou que era possível ensinar música para essas pessoas com o apoio de luzes”, acrescenta.
A partir das necessidades que Batman sentia em suas aulas, ele criou duas ferramentas pedagógicas: um alfabeto musical em forma de sinais visuais e o guia reconhecido como tecnologia assistiva pela Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM), o Metrônomo Visual, que nada mais é do que quatro lâmpadas de cores e tamanhos diferentes. Com a cor ele trabalha a intensidade do som e com o tamanho as figuras de tempo musical. Isso tudo sem ele ainda saber Libras. “Muitos educadores ficam esperando chegar uma tecnologia para resolver o problema. Eu faço questão de mostrar que, às vezes, a solução está mais perto de nós do que imaginamos”, afirma.
As aulas do Mestre têm grande foco na percussão corporal e também na compreensão de que a vibração sonora tem ligação com o corpo humano e com a natureza, uma vez que o universo do surdo é no campo visual e sensorial. Para explicar o ritmo da ciranda, por exemplo, o músico chegou a levar alunos à praia a fim de compreenderem que o batuque da ciranda obedece ao movimento das ondas. Pediu para tirarem os sapatos e ficarem próximos ao estouro das ondas. “Eu explicava: quando a onda encostar nos seus corpos é o tempo forte da ciranda. Quando ela recuar são os três tempos fracos. E eles diziam: como assim? A natureza ajuda a música e a música ajuda o ser humano?”
A sociedade precisa de mais iniciativas como essa, de abraçar a diferença e, como bem coloca Batman, mostrar que “o limite existe dentro da cabeça de pessoas limitadas”.
Durante as primeiras etapas da Caravana, o pernambucano notou que as aulas ficavam ainda mais ricas quando havia um educador com ausência de audição orientando os alunos, uma vez que esse tinha o jeito surdo de ver e explicar as coisas. Foi aí que convidou antigos alunos não ouvintes para embarcarem na Caravana, como é o caso da Karina Maria Batista, 31 anos, e de Anderson Andrade, 25 anos. “Qualquer pessoa pode tocar. A percussão corporal é um jeito de aprender. Já o Metrômeno Visual facilita entender a música e depois tem que experimentar e se concentrar. Gosto de tocar caixa, alfaia e outros instrumentos percussivos”, conta Anderson em Libras a Batman.
Karina e Anderson são também alguns dos membros do grupo musical Batuqueiros do Silêncio, composto por surdos e encabeçado por Batman — os Batuqueiros, inclusive, tocaram na Paraolimpíadas Rio 2016. O encerramento da Caravana MusiLibras foi em Salvador, onde o grupo se apresentou e, com certeza, quebrou paradigmas de quem presenciou, como é o caso de Milton Bezerra, um dos fundadores do Cesba. “Foi incrível. Bem melhor que ir a um show e apenas ver a pessoa. Não tem intérprete, não tem legenda. Ou seja, para a gente não tem significado nenhum, mas hoje teve relevância”, conta emocionado em Libras para a intérprete Cíntia Santos.
Engenheiro aposentado, Eduardo Pinto, 62 anos, é ouvinte e entrou há quatro anos no curso de licenciatura em Música pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e, no final de 2019, entregou seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) sobre a relação dos surdos com a música. “O surdo não ouve e na defesa do meu TCC fiz uma comparação: o que é o som. Como exemplo, quando bato em alguma coisa eu provoco ondas que se espalham por todos os lados e chegam até o outro, que recebe essas ondas causadas pela vibração. Eu vou perceber pela audição, pele ou visão. Apenas a diferença nossa é que o primeiro ponto é o ouvido, mas o surdo vai sentir [a batida]”, explica Eduardo, que esteve no encerramento da Caravana, na capital baiana.
Estrutura
A Caravana MusiLibras só aconteceu porque foi aprovada no Rumos Itaú Cultural 2017-2018, um dos principais programas de fomento à cultura do país. Para se ter uma ideia da importância, nesta edição, o Rumos recebeu 12.617 projetos de todo o Brasil das mais variadas linguagens e apenas 109 foram aprovados. Ou seja, há uma demanda por cultura muito grande de que o Estado não dá ou não quer dar conta e o Rumos acaba se tornando o sonho de muita gente.
E não é só dinheiro que o edital do Itaú oferece. Há uma equipe que orienta cada projeto aprovado, da fase inicial de orçamento e produção à final de divulgação do trabalho. “A arte é uma potência. Ela transforma. Nós que trabalhamos diretamente com as pessoas que foram aprovadas as vemos se transformarem. Elas ficam mais críticas e têm a possibilidade de se expressarem. Nossa missão enquanto instituição cultural é fazer com que isso continue acontecendo, pois sem arte e sem cultura você tem uma sociedade sem alma”, afirma Mayra Koketsu, produtora executiva do Rumos.
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