NOTÍCIA
Mário Eduardo Viaro, coordenador do Núcleo de pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da USP, fala sobre conjunções
Publicado em 23/02/2019
Entre as classes de palavras, é costume separar-se as variáveis das invariáveis. O conjunto relativamente menor das invariáveis costuma ser associado a uma lista de palavras que acaba sendo decorada nas escolas.
Preposições e conjunções são as que apresentam, mais proeminentemente, características das classes fechadas. Já os advérbios se dividem em inúmeras subclasses, algumas com uma lista finita (como os advérbios de negação), outras, infinita (como os advérbios de modo).
Todas essas classes remotam à primeira gramática ocidental conhecida, a de Dionísio Trácio (século 2 a.C.).
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A palavra “conjunção” é um termo herdado dessa tradição. O latim conjunctio é, na verdade, decalque do termo original sýndesmos, formado pela composição do prefixo syn- (junto com) com o radical do verbo déo (ligar). Igualmente, na palavra conjunctio, o prefixo con- significa “junto com” e junct- é o radical do particípio de jungere (estar sob o jugo).
A metáfora promovida pelo termo técnico é a de que as duas orações estão ligadas uma à outra, sob o mesmo jugo, como uma parelha de bois.
Outras classes de palavras têm metáforas semelhantes, já comentadas neste espaço. Cabe-nos agora considerar especificamente um tipo de conjunção: as adversativas, que não aparecem de maneira clara na classificação do autor alexandrino.
Curiosamente, a tradição ocidental não atribuiu às conjunções adversativas o papel de operador lógico, como aconteceu com a aditiva “e”, com a condicional “se” ou com a alternativa “ou”.
No entanto, as adversativas têm um papel importante na cognição humana, pois revelam os pressupostos do falante.
Se digo que “Fulano caiu do prédio e morreu”, há algo implícito relativo à sequência temporal dos fatos: primeiro se cai, depois morre-se. Afirmo ainda que a consequência do ato está de acordo com certas previsões, pois cair do prédio é perigoso e quem o faz corre o risco de ferir-se, ficar inválido ou morrer. A oração encabeçada pelo “e” informa qual dessas consequências ocorreu.
Por outro lado, se afirmo “Fulano caiu do prédio mas não morreu”, é de se observar que a negação de uma das consequências previsíveis mostra uma quebra de expectativa: afinal, pessoas que caem de prédios têm grande chance de morrer, porém não foi o caso dessa em particular. Igualmente, a negação de uma consequência “natural”, típica das adversativas, pode estar implícita numa informação como “Fulano caiu do prédio mas saiu ileso”.
O “mas” serve para dizer que eu e você comungamos da mesma expectativa cúmplice, alicerçada sobre nossa experiência de vida, e, ao mesmo tempo, que o meu espanto quanto à quebra dessa expectativa é possivelmente também o seu. Há algo de retórico nesse tipo de formulação.
Este sentido complexo e demasiadamente humano de “mas” talvez esteja mais próximo do seu significado do que alguma função lógica. Também por isso, as adversativas acabam servindo para revelar preconceitos.
Se alguém disser que “Fulano é tonganês mas é educado” considera implicitamente os tonganeses mal-educados e, ao mesmo tempo, tem a expectativa de que os seus ouvintes comunguem do mesmo preconceito.
Em uma análise do discurso, nada é mais eficiente do que a adversativa para invadirmos a mente alheia do falante e descobrirmos o que pensa sobre o mundo.
Podemos reescrever um período composto formado com conjunção coordenativa aditiva na forma de orações subordinadas, valendo-nos de conjunções causais: “Fulano morreu porque caiu do prédio”.
Igualmente, as concessivas são reescrituras das adversativas, porém mais dramáticas, porque podem
valer-se do recurso da inversão sintática que causa ênfase e expectativa (como nos ensina Othon Moacir Garcia em Comunicação em Prosa Moderna): “Fulano saiu ileso, embora tenha caído do prédio”, “Embora fulano seja tonganês, é educado”.
Transformar uma oração coordenada adversativa numa subordinada concessiva representa um ganho estilístico e força retórica na mesma informação.
Do ponto de vista etimológico, as conjunções adversativas mostram-se bem diferentes das aditivas. Talvez seu cunho emocional lhes garanta uma renovação mais rápida.
De fato, pouquíssimas conjunções latinas sobreviveram: apenas as mais neutras e, em sua maioria, associadas à lógica, como e < et, ou < aut, se < si, nem < nec, quando < quando.
As demais, para servir à função de conectar ideias veiculadas pelas frases e impingir-lhes tons pessoais, renovam-se rapidamente.
As adversativas latinas eram sed, autem, at, atqui, tamen, attamen, vero, verum, verumtamen, ceterum, mas nenhuma delas sobreviveu. O latim vulgar parece ter preferido o advérbio magis (mais), de onde surgiu o “mas” do português, assim como o ma do italiano e o mais do francês.
Observemos também que a forma mais, comum na língua falada do português brasileiro (com exceções regionais), é um arcaísmo e não uma inovação, como revelam as cantigas medievais. Por exemplo, CSM (65:166-168): “est’ om’ en sentença jaz mui perigoosa/ mays tu que es mui misericordiosa/ solta-ll’ este laço en que está liado”.
Portanto, servindo-nos do sentido original de magis, isto é, “mais”, concluímos que a noção adversativa parece surgir do puro acréscimo de uma informação. Será verdade? Não seria essa a função da aditiva? Enquanto o conectivo não se desgasta estilisticamente pelo tempo, acrescentar orações supostamente neutras e não tendenciosas é, do ponto de vista da Retórica, um expediente para introduzir sub-repticiamente argumentos ideológicos.
Um exercício livre de pensamento parece ser o oposto do direcionamento do julgamento do ouvinte. Daí concluirmos que a adversativa é, do ponto de vista lógico, uma aditiva disfarçada, um lobo sob pele de cordeiro.
Comecemos pelo mais simples. O trânsito entre o valor concessivo e o adversativo no caso da conjunção “contudo” é bastante claro. A preposição “com” às vezes assume um valor concessivo, sobretudo após “mesmo”, como revela a sequência “mesmo com tudo isso”, com mais de 1 milhão de ocorrências no Google. Também é comum o valor concessivo de “mesmo com” em expressões coloquiais como “Ele insistia muito, mesmo comigo falando que eu não conhecia ninguém com esse nome”. Do desgaste dessas concessivas teria saído a adversativa “contudo”.
Isso, porém, não explica tudo que se passa na evolução neológica das adversativas. Há ainda um caminho mais complexo a ser trilhado. No espanhol pero (mas), o sentido original é causal e não concessivo, como esperaríamos. Seu étimo per hoc significa literalmente “por isso”.
Vemos o sentido causal, cedo ou tarde, cedendo lugar ao adversativo também no português medieval pero (ou perol) e no italiano però. Do mesmo modo, “porém” vem de uma forma medieval por ende que, inicialmente, significava “por isso”.
Ora, como vimos, a causa está mais próxima das funções semânticas das aditivas do que das adversativas. Portanto, é difícil entender a mudança das causais para as adversativas sem pensar em algo revestido de ironia. É a ideologia de uma época, com sua repetição de fórmulas feitas, sem muita consciência, a maior responsável pela cristalização dos sentidos.
Buscar os contextos à procura dessa ironia que fomentou a mudança semântica é um desafio digno de uma tese diacrônica. Em suma, as concessivas e as adversativas, como dissemos, são irmãs próximas, portanto, é mais fácil entender o seu trânsito entre essas classes do que entre as causais e as adversativas.
A conjunção “todavia”, por sua vez, mostra transição importante entre as temporais e as concessivas. Em espanhol, todavía significa “ainda”. A noção temporal do advérbio “ainda” migrou também para as concessivas, como vemos em “ainda que”.
Entre a noção temporal e a adversativa, há percursos tortuosos: o sentido original de “todavia”, “por toda a via”, “por todo o caminho”, “constantemente”, enfatiza o aspecto inacabado, donde emerge a noção do “ainda”. Mas como algo inconcluso e em curso pode representar a concessão e, por fim, o valor adversativo? Por que a ideia imperfectiva é mais adequada a essa mudança de sentido do que a perfectiva?
Como dissemos, a adversativa nasce do acréscimo de um raciocínio tendencioso que se finge neutro. A imperfectividade parece reforçar isso: acréscimos consecutivos indicariam várias verdades e, simulando modéstia, expressariam algo ainda não concluído no processo de pensar.
No entanto, a falácia está no fato de que só uma verdade é apresentada, revelando-nos, assim, um poderoso expediente retórico.
A conjunção “entretanto” em Portugal tem o valor original temporal de “nesse meio-tempo”; no Brasil, é sinônimo de “porém”.
Por exemplo, no Jornal de Letras, Artes e Ideias (nº 1101, 12-25/12/2012, p. 4), de Lisboa, lemos:
“O filme está em exibição em 42 cidades, (…) vai estrear ainda na Alemanha em 28 salas. Entretanto, Tabu integra a lista dos melhores filmes de 2012”.
Observe-se que “entretanto” e “todavia” não são só advérbios de tempo na sua origem, mas remetem ao aspecto imperfectivo. O mesmo ocorreu com “no entanto”, que inicialmente significava “enquanto isso”.
Em muitas línguas, conjunções temporais se tornam concessivas, que se tornam adversativas. Paralelamente, temporais se tornam causais, as quais, por vezes, mediante alguma ironia, também se tornam adversativas.
A conjunção adversativa mais recente, ainda não adotada pela gramática normativa, é “só que”. Na internet, o Dicionário Informal abona essa expressão com a frase “Ela quer almoçar, só que não quer pagar a conta”. Como explicar o surgimento de “só que”?
Novamente, a ironia parece ser a chave da explicação desse neologismo adversativo. “Só que” deveria remeter a algo simples (por causa do “só”), mas não tem nada de neutro. A conjunção “só que” também pode mesclar-se com algum valor explicativo implícito: “Eu gosto de uma menina, só que eu sou tímido”.
Causais e adversativas se aproximam mediante a cumplicidade irônica estabelecida entre o falante e o ouvinte. É essa mesma cumplicidade que nos permite encontrar a negação faltante numa oração implícita, como “e, por isso, não consigo falar com ela”.
Desse modo, por serem contrárias às intuições, as conjunções adversativas são, na realidade, antiaditivas, pois revelam muitas vezes uma contraposição, uma contradição, um absurdo, em suma, uma negação ainda que atenuada (por vezes só etimologicamente detectável).
Por causa dessa expressividade, conjunções adversativas e concessivas desgastam-se facilmente com o uso. Novas formações são requeridas pelos falantes, tão expressivas quanto as antigas o eram.
Por exemplo, não deixou hoje traço algum nas línguas modernas a usual conjunção concessiva macar, empréstimo do galo-românico em diversas línguas medievais, a qual remontava à koiné grega: “e macar era mui pesado, tomou tam/leve come se de pallas fosse” (CSM 341: 42-43).
A dinâmica histórica dessas conjunções mostra quão pobre e contraditória é a divisão dicotômica entre “classes fechadas” e “classes abertas”, pressupostos de tantas correntes teóricas da linguística moderna.
*Mário Eduardo Viaro é coordenador do Núcleo de pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa (NEHiLP), da USP; autor de Por trás das palavras (Globo: 2004) e de Etimologia (Contexto: 2011)