NOTÍCIA
Transformações na economia e no mercado educacional exigem soluções diferentes das IES; conheça ações inovadoras que geraram bons resultados
Não faz tanto tempo assim, o lugar ideal para a compra de livros novos era exclusivamente a livraria. Até surgir a Amazon. Quem precisava se deslocar com automóvel particular terceirizado tinha como principal opção o táxi. Até aparecer o Uber. A vontade de assistir a um filme na hora em que se desejasse era saciada por meio de aluguéis nas videolocadoras. Até o advento do Netflix. A hospedagem em viagens remetia quase que automaticamente aos quartos de hotéis. E eis que criaram a Airbnb. Esses exemplos mostram não só novos produtos e serviços, mas conceitos que mudaram a lógica dos negócios realizados até então.
Com essas transformações em curso em todos os segmentos da economia, o mercado educacional também se vê desafiado pelos novos tempos, em que se acentua a necessidade de buscar formatos de atuação criativos, atrativos e sustentáveis, sobretudo tendo a crise econômica brasileira como pano de fundo. Essa é a discussão base do 18º Fórum Nacional do Ensino Superior Particular Brasileiro (Fnesp), realizado em setembro .
“Há uma crítica ao ensino superior, de sermos muito iguais, muito pasteurizados. As pessoas fazem mais do mesmo, os mesmos modelos, as mesmas formas de pensar o ensino. A academia é um tanto convencional, apresenta poucas propostas de mudanças efetivas”, afirma o professor Fábio Reis, diretor de Inovação e Redes de Cooperação do Semesp. “É necessário, então, construir para desconstruir, fazer uma desconstrução criativa, que inove; repensar modelos de ensino, repensar as instituições de ensino”, diz.
O conceito “desconstrução criativa” foi criado pelo economista austríaco Joseph Schumpeter (1883-1950), conhecido por exaltar a necessidade de inovação para o desenvolvimento econômico de países e de empresas (veja o quadro abaixo). Com base nessa ideia, Reis enfatiza que a necessidade de repensar o ensino superior abrange tanto o aspecto acadêmico quanto o âmbito da gestão. “No eixo acadêmico, precisamos e podemos ser mais interdisciplinares, trabalhar mais por projetos e menos por disciplinas fragmentadas, e utilizar mais a tecnologia em nosso benefício. Ao mesmo tempo, é importante inovar para que o gestor possa ter mais liderança no sentido contemporâneo, para que a instituição seja mais flexível e menos burocrática, para que se possa pensar em um tipo de estrutura organizacional que incentive as pessoas a serem mais participativas, envolvidas com o projeto da instituição”, diz.
Para João Otávio Bastos Junqueira, reitor da Unifeob e integrante do comitê do Fnesp, a necessidade de reinvenção está atrelada à própria sobrevivência das IES. “Estamos passando por um momento de fusões e aquisições, o mercado educacional está se consolidando, gerando megacorporações. Isso vai forçar instituições de pequeno e médio portes a saírem de onde estão, porque, se for para competir de igual para igual com as grandes, elas vão quebrar”, afirma.
Segundo Junqueira, a principal forma de as IES se reinventarem frente a esse cenário é focar a área administrativa e pedagógica: gerar nelas procedimentos e iniciativas que tornem a instituição mais eficaz pensando em seu público. “A questão é como a gente se diferencia pedagogicamente, fazendo sentido para o aluno. Ou a gente muda ou não vai fazer o menor sentido para o aluno digital de hoje estar numa escola do século passado, arcaica”, analisa.
Muitas entidades de ensino já vêm buscando soluções no âmbito da gestão para encarar as mudanças no mercado nos últimos anos. “As instituições estão se profissionalizando cada vez mais, incorporando práticas de gestão de outros nichos de mercado, medidas de qualidade na prestação de seu serviço”, observa Patrícia Andrade, reitora do Centro Universitário Moura Lacerda. Ela destaca a importância da sensibilidade para acompanhar e perceber mudanças entre gerações de alunos, que, para a reitora, “ são um reflexo do que está acontecendo no nosso país e no mercado de trabalho”. “Precisamos oferecer todo e qualquer recurso para os alunos gerirem bem a vida acadêmica, dar respostas rápidas para as necessidades que eles tenham”, completa.
Uma vez que os modelos de negócios educacionais têm sido postos à prova a todo instante, seja pelo contexto externo, seja pelo público interno, vale atentar para as competências exigidas e usadas em prol de medidas eficazes e sustentáveis. A seguir, a Ensino Superior apresenta ações inovadoras – e, porque não dizer, inusitadas – que geraram bons resultados entre IES de diferentes portes. Essas instituições decidiram sair das zonas de conforto, que já não permitiam mais superações e soluções, e desconstruir antigas práticas para avançar. “Inovação não significa necessariamente grandes investimentos ou novos investimentos, mas fazer as coisas de formas diferentes, mais eficientes, mais sustentáveis, que rompam com a tradição convencional dos modelos de ensino e dos modelos de gestão”, enfatiza Reis.
Alunos que perdem emprego não precisam pagar mensalidades
Queda do poder aquisitivo, taxa de desemprego em alta e mudanças no Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Todos esses fatores impactaram as IES, propiciando aumento de evasão ou de inadimplência. Diante desse quadro, o grupo Cruzeiro do Sul Educacional decidiu lançar mão de um programa próprio de auxílio-desemprego. Se o estudante for demitido, a instituição concede uma espécie de bolsa, que o libera de pagar as mensalidades por três meses. “A gente percebeu um aumento do número de cancelamento de matrículas por causa de perda de emprego. Para não ficarem inadimplentes com a instituição, as pessoas queriam trancar a matrícula e voltar futuramente, quando tivessem restabelecido um padrão financeiro”, explica o diretor
de marketing Wilson Diniz.
Para dar um fôlego ao aluno, o programa transfere o pagamento de três mensalidades, sem juros e correção, para o final do curso. Lançado em janeiro deste ano, abrange as oito IES do grupo, e está aberto a alunos de qualquer período, calouros ou veteranos, dos cursos de graduação presencial e de educação a distância. Mesmo que o estudante se recoloque no mercado antes de se formar, pode quitar a dívida ao final do curso. Diniz explica que a quantidade de três mensalidades está sendo avaliada. “Nós lançamos com esse modelo e estamos vendo se esse prazo precisa de alguma ampliação. Estamos abertos, querendo entender o ponto de equilíbrio correto, que seja sustentável para a instituição, mas que também ofereça vantagem para o aluno, um diferencial, um apoio.”
Não bastasse o aluno estar desempregado, a saída do curso superior pode representar mais um impacto negativo na empregabilidade. Então, o objetivo é fazer com que o trancamento de matrícula seja a última opção, e não a primeira. A ideia atraiu parte dos estudantes. “No ano passado a situação era parecida e não tínhamos nada a oferecer. No começo deste ano, lançamos o programa e foram cerca de 300 adesões até junho”, conta Diniz. Ele estima que sem esse mecanismo a instituição perderia a maioria dos alunos que pediram esse auxílio. “Para a instituição é uma ferramenta de retenção importante num momento em que a captação não é expressiva, não há crescimento no mercado, então é importante manter a base de alunos”, analisa.
Aplicativo e rede on-line junto a empregadores para integrar comunidade
O Centro Universitário Moura Lacerda atua há 93 anos com ensino superior em Ribeirão Preto, SP. E tem feito uso cada vez mais intenso da tecnologia para finalidades diversas. A partir do final do ano passado, por exemplo, a instituição implantou um portal de empregabilidade que conecta alunos e empresas. Com isso, todas as vagas figuram de modo sistematizado e on-line, em vez de espalhadas pelos murais nos corredores do campus. “Muitas empresas da cidade e da região já recorriam à nossa instituição, mas precisávamos de um veículo que reunisse as oportunidades, no qual os alunos tivessem mais facilidade, uma dinâmica melhor de estar em contato com as necessidades dessas empresas”, explica a reitora Patrícia Andrade. O portal também pode ser acessado por ex-alunos.
Antes do lançamento, houve uma etapa de treinamento com os professores da instituição, que, muitas vezes, fazem a ponte com o mercado de trabalho. “O docente é muito procurado pelas empresas, muitos deles atuam no mercado como consultores. E as empresas pedem o perfil de aluno: se é mais iniciante, se está nos momentos finais do curso; e também procuram saber características pessoais e comportamentais dos alunos, que são muito importantes para assumir um posto dentro de uma organização”, conta a reitora. Segundo ela, do lançamento em fevereiro até junho, foram 257 vagas divulgadas, mais de mil currículos de alunos cadastrados e 79 postos preenchidos por meio do portal.
Concomitantemente ao lançamento da página na web, a instituição lançou o Moura Lacerda Mobile, um aplicativo para celulares e tablets em que o aluno pode verificar notas, presenças em sala de aula, plano de ensino do semestre e resgatar algum conteúdo no caso de ausência.
“Se ele faltar a uma aula, consegue ver o que perdeu, o que precisa reforçar, contata o professor para viabilizar algum material – antes, essas ações eram possíveis apenas por meio do sistema da instituição liberado para computadores”, explica Patrícia. Ela relata que a segunda etapa do aplicativo permitirá que professores façam apontamentos via mobile. “O objetivo é que, a cada semestre, ele vá ganhando mais funcionalidades”, diz.
A tecnologia também é utilizada para manter os laços de ex-alunos com a instituição. Em meados de 2015 teve início a comunidade virtual Sempre Moura Lacerda, que tem como meta colocar em contato estudantes de todas as épocas que passaram pela universidade. “Muitos dos nossos ex-alunos hoje são empresários, oferecem empregos e oportunidades para os nossos alunos ou estão em empresas em posições relevantes, então, há uma troca muito importante a ser feita. Para nós, é interessante que um ex-aluno participe de uma semana de estudos de um determinado curso, compartilhando as experiências de carreira com o aluno atual”, diz a reitora.
A comunidade também permite reencontro entre ex-colegas, resgata o contato de pessoas que foram para outras cidades, além de gerar um sentido de pertencimento à escola. Tudo isso é apresentado aos novos alunos como diferencial da instituição frente a outras IES.
Fim às provas e implantação de modelo pedagógico baseado em competências
Há cinco anos, o Centro Universitário Octávio Bastos (Unifeob) passa por um processo de restruturação do projeto pedagógico, que enfatiza a formação voltada para competências. “Eliminamos as provas conteudistas. Saímos do modelo tradicional e partimos para o modelo modular”, diz o reitor João Otávio Bastos Junqueira. Com isso, caíram algumas práticas, como pré-requisitos, avaliação por provas e mesmo algumas disciplinas foram revistas. “Por exemplo, em engenharia não existe a disciplina cálculo. O aluno aprende cálculo fazendo as coisas. Desde o primeiro ano, ele está no estágio supervisionado, então começa a trazer para a instituição as dúvidas que ele tem no trabalho”, explica o dirigente da instituição de São João da Boa Vista, em SP.
Segundo João Otávio, o modelo atual privilegia a relevância do conteúdo ensinado, uma vez que o aluno entende a aplicação na vida real. “Acreditamos que à medida que o estudante vai precisando das coisas, sendo instigado a usar o conteúdo, ele vai aprendendo como fazer. E nunca mais esquece, porque vê significado naquilo.”
A cada semestre, uma competência é escolhida para ser trabalhada nos cursos. “Neste semestre, todos os cursos, todas as disciplinas precisam ter ações de trabalho em equipe. No decorrer do semestre, os alunos são avaliados por um tutor, um professor que dá um feedback de como eles estão se portando nessa competência: se estão interagindo bem, se estão liderando, porque, afinal de contas, é isso que eles usam na vida profissional”, afirma.
A mudança, que privilegia o ensino participativo em detrimento da aula expositiva, demandou treinamento e um trabalho de conscientização do corpo docente. A avaliação dos estudantes também passou a ter outro crivo. “Qual é a diferença entre quem tira nota 6 e quem tira 6,1? Acabamos com isso aqui. No final do semestre, temos um conselho de classe e por consenso avalia-se se o aluno está apto a prosseguir para o módulo seguinte. Isso é diferente de ficar dando provinha com média aritmética para ver se ele passou por 0,1 ou 0,2. Isso não tem sentido mais”, diz o reitor.
Nesse modelo, o docente passa a ser um facilitador que indica as fontes de informação de que o aluno necessita. “O professor se torna um tradutor das coisas e deixa de ser o fiel depositário da informação. Qualquer celular hoje tem informação do mundo inteiro”, diz Bastos. O reitor afirma que esse modelo já produziu resultados. “Tem aluno no primeiro ano de contabilidade fazendo balanço patrimonial, sabendo ler relatório, balancete; aluno da veterinária podendo auxiliar numa cirurgia. O cara começa a ver aquele conhecimento com empolgação porque sabe que aquilo é útil”, afirma.
Projetos como parte da aprendizagem de todos
Localizado na zona sul da capital paulista, o Centro Universitário Ítalo-Brasileiro (UniÍtalo) tem cerca de 8 mil alunos, o que não o caracteriza como uma IES pequena, de nicho, nem de massa, comparável aos grandes grupos educacionais. A forma de estabelecer a sua marca no mercado passa pela criação de uma identidade de ensino. “A nossa estratégia tem sido a da diferenciação acadêmica”, afirma a vice-reitora Priscila Simões. Segundo ela, isso se dá em duas frentes. “Primeiro, precisamos dar a sensação para o aluno de que aqui ele é uma pessoa e não um número. Ele vai conhecer todos os coordenadores, os professores, aqui temos uma política de portas abertas.” A outra frente é a própria entrega do produto na área acadêmica. A instituição reformulou todas as grades curriculares, e também está implantando uma organização curricular por módulos, com foco no desenvolvimento de competências e voltada para a elaboração de projetos.
Para todos os cursos foi criada a disciplina “projetos”. Ao final de cada semestre, o estudante precisa realizar um projeto, como forma de alinhavar os conhecimentos adquiridos. Em administração, por exemplo, ele tem de elaborar um projeto de gestão financeira para uma empresa real. No curso de teatro, os alunos têm de montar uma peça ou construir um cenário. “O objetivo é fazer um currículo que tenha consistência teórica, mas que tenha também muita mão na massa, que o aluno realmente consiga aplicar os conhecimentos que está obtendo”, conta Priscila.
Essa pedagogia de projeto demandou treinamento dos professores e inverteu antigas lógicas. A instituição adotou metodologias ativas (“em que o aluno tem de fazer e não apenas ficar escutando”) que mudaram o modo de ensinar, como a metodologia de sala de aula invertida. “Parte do que o professor faria tradicionalmente numa aula expositiva é feita via internet. E parte daquilo que o aluno faria em casa, um trabalho em grupo ou uma pesquisa, ele faz na aula, com orientação do professor”, explica. E assim se estabelece a diferenciação buscada pela instituição. “A ideia é quando o professor venha dar aula aqui, seja ‘aquela aula da UniÍtalo’, diferente das outras universidades. Diferente porque nós vamos ensinar aos nossos professores como fazer diferente”, diz Priscila.
Saída do MIT, nos EUA, para criar IES sem salas de aula
A professora Christine Ortiz atua há 17 anos no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, sigla em inglês), nos Estados Unidos, e desde 2010 é reitora de graduação da prestigiosa instituição. Essa trajetória acadêmica terá um desdobramento pouco usual ao final deste ano letivo. A reitora se licenciará do cargo para criar uma universidade em novos moldes, com padrões radicalmente diferentes dos tradicionais – com relação aos padrões do MIT, inclusive.
A proposta é estabelecer na nova instituição um modelo de aprendizagem baseado em projetos que exijam o pensamento transdisciplinar, preferencialmente de longo prazo, nos quais os alunos trabalhem em colaboração na busca de soluções. A intenção da educadora é criar um “novo modelo [de IES], em que até o tipo de vocabulário é diferente”, declarou ao Tech, publicação do próprio MIT.
Sem fins lucrativos, a escola idealizada por Christine não terá salas de aula, disciplinas, créditos obrigatórios e anos letivos da forma como se conhece. Com os alunos cooperando em projetos, cairá por terra, por exemplo, a tradicional distinção entre calouros e veteranos. “Os alunos podem entrar e trabalhar nos projetos que queiram – seja em aperfeiçoamentos, em pesquisa básica, pesquisa aplicada ou numa start-up – cada qual com um processo de orientação diferente”, declaroua docente à publicação USA Today College.
A professora contará com uma equipe para cuidar da implantação da universidade, ainda sem nome, que deve ter as instalações físicas também em Massachusetts. A estimativa é de que leve mais de um ano para a nova escola começar a funcionar.