NOTÍCIA
O literartista é mais do que um escritor, é aquele que escreve porque não pode renunciar a escrever
Para o literartista, no entanto, escrever não é de todo suficiente. Outros materiais fazem seu chamado e conquistam-lhe a criatividade. Além de escrever, o literartista dedica-se a pelo menos uma outra atividade artística.
Há escritores que são pintores, como o carioca Oscar Araripe, que desenhou, com palavras, sua autoimagem de literartista:
Amo a linha, a sabedoria da mão, a exatidão do traço, o discernimento, a definição. Eu amo as coisas claras, e separo as cores das tintas – e quero a paisagem sem o homem, a paisagem do outro homem, o momento em que a arte e a natureza sejam um só – a caligrafia igual à pintura; a pintura igual à natura: a cura, a pintura, a natura. Eu quero a solidão da pintura; o seu silêncio (ainda maior que o da paisagem), o meu silêncio – e acho pintar como calar – um momento de ouro; e só.
Há escritores que são cineastas, como Jean Cocteau (que era também ator de teatro e escultor). O filósofo Gabriel Marcel escrevia peças teatrais e compunha músicas. O pintor Pablo Picasso, que foi escultor, ceramista, cenógrafo, ousou igualmente na poesia. O escritor Jorge Mautner canta e toca violino. Chico Buarque de Holanda é músico, letrista, dramaturgo e romancista. Ziraldo escreve, desenha, é pintor, dramaturgo, caricaturista, humorista. O escritor português Valter Hugo Mãe é artista plástico e cantor.
É uma vontade de criar mais, de experimentar as palavras no texto, mas também outras texturas e possibilidades. Uma escola insensível para esta vontade de descobrir sons, movimentos, cores, humores, composições, que permanece apegada a um currículo estreito, que atende a apenas alguns aspectos da formação integral, não abre espaço para literartistas.
Os literartistas terão de aprender em outros lugares. Quem perde é a escola, obviamente.
Todas as escolas deveriam ser escolas com projetos literartísticos, e com professores literartísticos. Ou contratamos professores que o são, ou convidamos literartistas para atuarem como professores em nossas escolas. Sua presença despertaria talentos que já estão ali, aguardando apenas os sinais provocadores. Artistas provocam o surgimento de artistas. E artistas tornam a sociedade mais rica.
E outra característica, fundamental: os literartistas querem criar a si mesmos.
A inglesa Leonora Carrington era escritora, pintora e escultora. Não há nada seu traduzido em português. Num livro sobre sua vida, de Elena Poniatowska, ela aparece discutindo com o pai:
— Papai, estruturas totalmente diferentes apoiam nosso senso de realidade. É como na pintura: quando você começa a fazer uma alteração no meio de um trabalho em andamento, surge uma imagem diferente. É o que se chama pentimento.
— Do que você está falando, Leonora?
— Estou procurando uma outra forma de viver.
— Minha filha, a sua forma de viver é condicionada pelo seu nascimento, pela educação
que nós lhe demos, e pelas heranças familiares. Se você se comporta como uma
ingrata, acabará pagando caro por isso.
— Não, papai, eu aprendi outras formas de viver no mundo. Não sou uma criação
sua. Eu quero reinventar meu próprio eu. Estou indo embora.
Os literartistas conversam assim com a escola. E é comum que dela se afastem. Pagam o preço dessa “ingratidão”, e acabam recebendo muito mais em troca!
Gabriel Perissé é professor e pesquisador da pós-graduação em Educação da Universidade Católica de Santos – www.perisse.com.br