NOTÍCIA
A vida escolar e a militar exigem disciplina. Porém, de formas diversas e até antagônicas
O governo do Estado de Goiás acaba de tomar uma medida que afeta dezenas de escolas públicas. A partir de um projeto de lei enviado à Assembleia Legislativa local, a administração dessas instituições e o zelo pela disciplina dos alunos passam às mãos dos militares, que atuarão em cooperação com os professores civis responsáveis pelo ensino das matérias regulares. As razões alegadas para a implantação dessa mudança fazem referência a uma suposta superioridade das escolas militares em testes de rendimento da aprendizagem e em alegados problemas com a conduta dos alunos. E seus efeitos não são pequenos nem desprezíveis: os alunos passam a vestir uniformes militares, a serem ordenados e classificados por uma hierarquia fundada em patentes e a se conduzir de acordo com um rígido modelo de obediência a regras identificadas com o modo de vida militar.
É evidente que a vida escolar, tal como a militar, exige disciplina. Não obstante, é um equívoco grosseiro fundir em um todo indiscernível duas formas de disciplinas que são não só diversas, mas muitas vezes antagônicas. Um soldado disciplinado é aquele que obedece a ordens superiores de acordo com as normas que regem a hierarquia militar. Não se supõe, ao menos em princípio, que a disciplina militar deva incluir o cultivo do exame crítico imediato, por parte dos subordinados, das normas e regras a que estão submetidos. Imaginem o caos que seria se cada soldado, em um momento de ação, demandasse a seus superiores as razões de suas alegações ou comandos! Mas o mesmo não se passa nas relações entre professores e alunos.
Um aluno disciplinado não é aquele que simplesmente obedece a comandos. Ao contrário, o que se espera como produto de sua formação escolar é justamente o desenvolvimento da capacidade de pôr em questão as razões de uma norma ou a veracidade de um enunciado. E embora isso também exija uma disciplina, ela tem um teor e um sentido diversos da disciplina militar. Como destaca o filósofo norte-americano Israel Scheffler, o ensino escolar implica que as razões pelas quais eu creio que algo seja verdadeiro ou desejável se submetem ao juízo independente de cada aluno. O exame crítico das ideias, normas e regras não abole a hierarquia das funções e papéis escolares, mas dá a ela um teor específico.
A instituição escolar não visa a preparação de súditos obedientes, mas a de cidadãos autônomos. Um objetivo como esse não se logra impondo regras heterônomas e criando uma hierarquia estigmatizadora que separa alunos em categorias e estamentos de acordo com sua conformação a padrões prévios. Isso porque a noção de cidadania implica a criação da experiência da igualdade; de um âmbito de nossa existência que suspende as marcas identitárias de cada um (rico, pobre, negro, branco, homem, mulher) em favor da igualdade de direitos e de responsabilidades em face de um mundo comum. Disso decorre um desafio precípuo para as escolas: edificar um tempo e um espaço de formação no qual cada criança possa experimentar o igual direito de ajuizar acerca do verdadeiro e do falso; do belo e do feio; do justo e do injusto. À escola o que é da escola e ao quartel o que é do quartel!