NOTÍCIA
Reorganização do currículo e nova postura do corpo docente são desafios centrais para os gestores que desejam ampliar o tempo de permanência dos alunos na escola e oferecer uma educação que vá além dos aspectos cognitivos
A educação integral tem registrado considerável aumento em termos de oferta nas escolas brasileiras nos últimos anos. Seja em função de necessidades das famílias, cada vez mais atribuladas, seja por indicadores que apontam para maior possibilidade de êxito tanto no processo de ensino e aprendizagem como da formação humana, a busca por educação em período integral no Brasil cresceu 45,2% entre 2013 e 2014, incluindo escolas públicas e particulares, cujos percentuais de expansão foram, respectivamente, 46,5% e 12,5%, conforme o Censo Escolar do período.
Porém, a elaboração de um projeto bem-sucedido na área envolve a ressignificação do espaço e do tempo que o aluno passa na escola, que deve equilibrar momentos de aprendizado cognitivo com outros em que ele trabalhe aspectos socioemocionais e a sensibilidade estética. Essas diretrizes, no entanto, representam grandes desafios à gestão escolar que, entre outras tarefas, precisa repensar o planejamento do currículo e a formação do corpo docente.
“Atuar com período integral não significa deixar os alunos encerrados durante oito horas nas salas de aula. É preciso se abrir para o mundo, fazer uso do espaço público e integrar o currículo com as questões da comunidade escolar”, resume Maria Thereza Marcilio, gestora institucional da ONG Avante. Assim, as instituições devem organizar as aulas de forma interdisciplinar e trabalhar com os docentes para que se posicionem como orientadores de estudos e questionadores do conhecimento. Nessa linha, o primeiro passo para atuar com período integral deve envolver o diálogo com funcionários, famílias e alunos, de maneira a entender suas expectativas em relação ao novo formato de trabalho.
Como diretriz geral, ampliar o tempo de permanência dos estudantes nas escolas deve associar-se à ideia de também expandir seus horizontes formativos, de modo que a instituição facilite a conexão com questões do mundo adulto, entre elas o mercado de trabalho. Essa é uma forma, inclusive, de trazer questões relevantes dos jovens à sala de aula, algo que pode ajudar no processo de ensino-aprendizagem. “Os adolescentes aceitam cada vez menos ocupar um lugar passivo no processo de ensino-aprendizagem, assistindo a diversas aulas superficiais de 45 minutos”, opina Jaqueline Moll, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e ex-diretora de Currículos e Educação Integral da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC).
Para a reorganização dos tempos e espaços escolares no período integral, Jacqueline menciona escolas inglesas que criam salas adaptadas a diferentes áreas do conhecimento, por meio de mapas geográficos, materiais literários e musicais, entre outros. Nesse modelo, os espaços são adequados aos conteúdos ministrados, as aulas duram cerca de duas horas, os alunos são organizados em grupos de trabalho e o professor se responsabiliza por supervisionar e organizar esses momentos.
Maria Antonia Goulart, coordenadora da área de qualidade da Educação Básica na Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), menciona alguns casos nos Estados Unidos que envolvem a personalização da aprendizagem. No país, um dos princípios da educação integral é considerar que os estudantes aprendem de formas diferentes, de maneira que o processo pedagógico deve dar mais tempo aos alunos que dele necessitam.
Equilíbrio curricular
Ponto crucial, a reorganização do currículo requer atenção redobrada. Intercalar disciplinas da base comum a outras dedicadas ao desenvolvimento de habilidades socioemocionais e estéticas no decorrer da jornada escolar é uma diretriz consensual. Ou seja, as escolas não devem alocar as aulas cognitivas em um turno e as chamadas extracurriculares em outro. O objetivo é evitar que os alunos considerem o período da tarde como horário de lazer e o da manhã como de aprendizagem, algo que cria uma percepção de importância distinta entre as aulas.
Para o Instituto Ayrton Senna, tanto as escolas públicas como as particulares devem elaborar os conteúdos disciplinares com a finalidade de desenvolver nos estudantes as habilidades de colaboração, comunicação, resolução de problemas, fomento ao pensamento crítico, ao senso de responsabilidade, ampliação do autoconhecimento e da criatividade. “Para ganhar um propósito educativo mais amplo, o ensino de matemática, por exemplo, precisa ser pautado na resolução de problemas e na construção da capacidade de colaboração dos alunos”, defende Simone André, gerente executiva de educação. Nesse sentido, um levantamento do instituto, realizado em parceria com a Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro, mostrou, inclusive, que a abertura para o novo e o senso de responsabilidade são algumas das competências que mais geram impacto no desenvolvimento cognitivo dos estudantes.
No âmbito do estudo, os alunos com maior senso de responsabilidade ganharam até quatro meses no aprendizado de matemática – principalmente em função de sua capacidade de organização – enquanto a abertura para o novo gera o mesmo reflexo no tocante ao ensino de português. Com isso, a recomendação é que as escolas organizem as disciplinas conforme quatro áreas do conhecimento: matemática, ciências da natureza (física, química e biologia), ciências humanas (história, geografia, filosofia e sociologia) e linguagens (português, língua estrangeira, educação corporal e arte). Dessa forma, os professores podem criar metodologias comuns para o estudo das disciplinas e propor aplicação prática e integrada do conteú-
do ministrado em sala de aula. Do lado da gestão, esse modelo de trabalho requer investimentos na formação da equipe escolar, que deve ser preparada para atuar com uma abordagem interdisciplinar do conhecimento.
Embora não seja recomendado, muitas escolas concentram todas as aulas no período da manhã e deixam a tarde livre para as atividades extracurriculares |
Apesar da expansão do horário de atendimento aos alunos resultar, também, na ampliação dos desafios à gestão escolar, o período integral pode trazer inúmeros benefícios ao processo de ensino-aprendizagem. Isso ocorre, pois, em geral, as quatro horas previstas no meio período escolar acabam sendo reduzidas a duas horas e meia, em função de tarefas burocráticas, como recebimento dos alunos na sala e realização das chamadas de presença. Com isso, não há tempo suficiente para socialização e a organização de atividades para além dos muros escolares fica limitada.
Um estudo da Fundação Itaú Social reforça essa afirmação, ao mostrar que nenhuma das redes de escolas dos países mais bem colocados no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) conta com jornadas letivas de apenas quatro ou cinco horas.
Universos paralelos
Se por um lado as instituições públicas tendem a ampliar o horário de atendimento aos alunos com vistas à sua formação integral, nas escolas privadas essa expansão pode relacionar-se a necessidades das famílias da comunidade escolar. Com isso, algumas preocupações centrais à ideia de educação integral acabam ficando em segundo plano, entrando em cena apenas uma educação em tempo integral.
Permitir que os estudantes cheguem mais tarde ou saiam mais cedo da escola, quando a família dispõe de tempos livres esporádicos, é a justificativa do Colégio Rio Branco para concentrar as aulas cognitivas em somente um dos turnos. Valquíria Luchezi, orientadora educacional, explica que, com essa organização, a ideia é permitir que os pais busquem os filhos mais cedo na escola, quando seu horário de trabalho permite, algo que não seria possível caso as disciplinas cognitivas fossem distribuídas durante todo o dia.
Fernanda Flores, diretora pedagógica da Escola da Vila, defende que o ideal é contar com horários flexíveis, de modo que a composição do período integral não precise ser “tudo ou nada”. A escola organiza as propostas de período integral nas frentes: cultural (ou seja, atividades de música, teatro e circo), esportiva (esportes, capoeira e escalada), e ciência e tecnologia (com grupos de investigação científica e criação de mídias digitais).
No caso do Colégio Renovação há um edifício exclusivo para atender os estudantes do período integral – da educação infantil até o 5º ano do fundamental – no contraturno das aulas regulares. Assim, o segundo turno se centra no desenvolvimento de habilidades socioculturais, por meio de atividades como brincadeiras, oficinas, e projetos adaptados aos interesses de cada grupo. No prédio, também há um espaço onde os estudantes fazem, com supervisão docente, as tarefas propostas pelo professor do ensino regular.
Outro desafio das escolas particulares no período integral envolve o regime de dedicação dos professores. É consensual o fato de que a atuação docente é mais eficaz quando os profissionais trabalham em regime de dedicação exclusiva, o que permite estreitar o relacionamento entre a equipe de professores e coordenadores e com os estudantes, além de facilitar a organização de atividades formativas. “Investimos em formação continuada para ajudar os docentes a evitar ações descontextualizadas e fragmentadas do fazer pedagógico”, diz Maria Montes Canteras, gerente de produtos da Pearson, responsável pelo sistema de ensino Pueri Domus.
Dos gregos a Anísio Teixeira |
Diferentemente da ideia de período integral (relacionada somente ao aumento da jornada letiva), a concepção de educação integral remonta ao sistema de educação da Grécia antiga, pautada pelo objetivo de formar o corpo e o espírito do homem. Ligia Martha da Costa Coelho, professora da Escola de Educação e do programa de pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, lembra que essa concepção voltou à tona após a Revolução Francesa, no século 18, com a constituição das escolas públicas, que reacendeu o debate sobre a necessidade de formar os alunos desde uma perspectiva mais ampla, imbuída dos ideais humanistas do iluminismo. No Brasil, os esforços para oferecer jornada escolar em tempo integral na rede pública se iniciaram nos anos 1950, com as iniciativas de Anísio Teixeira, cujo grande marco foi o projeto de escolas-classe, onde os alunos teriam as aulas ligadas às disciplinas tradicionais, e as escolas-parque, que reuniriam estudantes de várias escolas para atividades físicas e artísticas, naquilo que depois se passou a chamar de contraturno. |