NOTÍCIA

Educação no Mundo

Consciência de classe

Como a nova burguesia da China está buscando uma educação alternativa na pedagogia Waldorf

Carolyn Drake
Primeira escola Waldorf na China, localizada em Chengdu, a 1,5 mil km de Pequim


Em 1994, Harry Huang e sua esposa, Zhang Li, gerenciavam o Lily Burger, um minúsculo restaurante de mochileiros às margens do rio Jin, em Chengdu, capital da província de Sichuan. A cidade ainda não era a metrópole de sete milhões de habitantes que é hoje e muita gente ainda morava em pitorescas casas tradicionais de madeira. Mais de 1,5 mil quilômetros a sudoeste de Pequim, Chengdu era refúgio das grandes cidades litorâneas da China e um portal para o Tibete.

Um dia, um casal australiano foi ao restaurante. O homem, magro e asceta, com olhos penetrantes, começou a falar de um sistema educacional idealista que havia adentrado a Europa Central no começo do século 20. Com o foco na necessidade de ajudar as crianças a se desenvolver como indivíduos, o sistema era baseado em ideias de reencarnação, livre-arbítrio e individualidade. Depois de quatro dias, o casal foi embora, instigando Harry e Li a manterem contato.

Harry ficou pensando no que os australianos haviam dito. Para os chineses de sua geração – ele nasceu em 1968 – aquela era uma época incerta. Na década de 1980, houve um forte senso de otimismo político. Depois da morte de Mao e do fim da Revolução Cultural, as amplas reformas de Deng Xiaoping fizeram o futuro da China parecer desobstruído. A aniquilação dos protestos de estudantes em 1989 acabou com essas esperanças e a energia da geração Tiananmen foi desviada para outros canais, como o do empreendedorismo. Harry concluiu a faculdade em 1992 e vagou pela China sem saber o que fazer da vida. Ele firmou raízes em Chengdu depois de conhecer Li, que era professora primária lá. A visita dos australianos revelou a possibilidade de uma meta menos egocêntrica do que ganhar dinheiro. E sua filosofia educacional era atraente. O trabalho de Li a havia deixado frustrada com os métodos rígidos e o aprendizado mecânico da educação chinesa.

Algumas semanas depois, Harry escreveu para a Emerson College, uma instituição de educação alternativa na Inglaterra, e recebeu a oferta de uma bolsa integral para estudar a pedagogia Waldorf e as ideias de Rudolf Steiner, o místico austríaco que fundou o movimento. Ele nunca havia lido uma palavra das obras de Steiner, mas aceitou na hora. Li estava grávida do primeiro filho do casal, mas depois se juntou a Harry na Inglaterra e começou a estudar também.

Steiner desenvolveu sua filosofia educacional em 1919 quando o dono da fábrica de cigarros Waldorf-Astoria, em Stuttgart, pediu que ele organizasse uma escola para os filhos dos funcionários. A Alemanha estava em alvoroço – uma revolução pós-Primeira Guerra – e a nova escola teria o papel de corrigir a disciplina severa das escolas tradicionais. Steiner acreditava que as crianças deveriam ser lentamente guiadas para fora do que ele chamava de “mundo etérico”, onde elas existiam antes do nascimento, e que a educação deveria se concentrar primeiro nas mãos, depois no coração, e depois no cérebro. As crianças educadas pelo método de Waldorf brincam bastante quando são novas e normalmente só aprendem a ler na segunda ou terceira série. Depois de quase uma década estudando o sistema de Steiner, Harry e Li voltaram a Chengdu para abrir a primeira escola Waldorf da China.

A Escola Waldorf de Chengdu abriu as portas no outono de 2004. No começo, mal passava de uma frágil creche num resort de pesca abandonado. Fria e úmida no inverno, abafada no verão e infestada de mosquitos o ano todo, era tão desagradável que no fim do primeiro período todos os pais já haviam retirado seus filhos de lá. Os próprios Harry e Li mandaram os filhos para ficar com a família de Harry. A escola não conseguia se sustentar e o casal começou a se questionar se a China estaria pronta para Waldorf.

Ainda assim, por todo o país, a pedagogia Waldorf discretamente arrebanhava seguidores. Na internet rodavam histórias sobre um jovem alemão educado pela Waldorf que estava trabalhando com aldeias pobres no sul da China. Ele aparecia na TV estatal chinesa e era admirado por seu idealismo. Também tinha gente se interessando pelas teorias de Steiner sobre estilos de vida alternativos: agricultura biodinâmica (um tipo de prática orgânica); antroposofia (uma complexa filosofia espiritual); e dança eurítmica (uma comunhão xamânica com o mundo dos espíritos).

Para reconquistar pais de alunos, Harry e Li organizaram oficinas e aulas de modelagem em argila, confecção de bonecas e pintura em aquarela. Voluntários começaram a surgir na escola. A maioria era chinesa, mas também havia estrangeiros, e todos começaram a conviver no terreno da escola. Nasceram romances, e rixas também. Os waldorfianos estrangeiros temiam que a maioria dos chineses nem tivesse lido a obra de Steiner, enquanto os chineses se questionavam se a visão de Waldorf era compatível com a cultura chinesa. Esses debates perduraram até o festival da primavera, no Ano Novo Chinês.

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“Todos estavam de olho em nós e se perguntavam se seria bom”, diz Li. “Por fim, depois do festival da primavera de 2005, eles vieram. Não sei por quê, mas de uma hora pra outra, eles vieram.”

A escola de Harry e Li agora tem mais de trezentos alunos, desde o jardim até a oitava série. A lista de espera é de cinco anos e já há planos para que a escola quadruplique de tamanho com a criação de um colégio e um campus para pelo menos mil alunos. Há menos de uma década, não havia instituições da Waldorf na China; agora há duzentos jardins de infância e mais de trinta escolas de ensino fundamental. Num país que ainda busca sua identidade nacional, o movimento está rapidamente se tornando uma das contraculturas mais influentes.

A ascensão da Waldorf desafia as suposições ocidentais sobre as “mães-tigre” chinesas que pressionam seus filhos para virarem prodígios robóticos. Um número crescente de pais está repensando os méritos e os perigos desse sistema. As pessoas têm se chocado com casos como um muito divulgado em outubro passado de um menino de Chengdu que cometeu suicídio saltando de um prédio de 30 andares. Ele deixou um bilhete dizendo, “Professor, eu não consigo”.

A educação tem estado no centro dos levantes na China há mais de cem anos. Na maior parte do século 19, reformistas buscaram reverter o declínio da China adotando elementos da tecnologia ocidental. Um dos obstáculos era o sistema de exames imperiais, que por séculos selecionou candidatos para cargos oficiais através de exames competitivos baseados na memorização de textos confucionistas. O sistema fortaleceu os tendões de um vasto império, mas criou uma casta de mandarins pouco conhecedores de questões práticas. Em 1906, os exames foram abolidos. A estrutura imperial de dois mil anos caiu cinco anos depois, quando o imperador abdicou.

Seguiram-se décadas de expe­riên­­cias para reconstruir os siste­mas político e educacional da Chi­na. Quase todos os grandes filósofos, escritores e líderes políticos lançaram ideias e planos, muitos deles inspirados por modelos estrangeiros. Em 1919, o filósofo e reformista linguístico Hu Shih convidou o teórico da educação americano John Dewey à China para expor sua filosofia do pragmatismo. Dewey se empolgou tanto com as perspectivas que ficou lá por dois anos. “Nada no mundo hoje – nem mesmo a Europa reconstruída – se iguala à China”, escreveu.

Depois que os comunistas tomaram o poder, em 1949, o país embarcou num programa de educação em massa. Apesar de a Revolução Cultural levar ao fechamento de escolas e ao deslocamento de estudantes universitários para trabalhar no interior, as primeiras três décadas de governo comunista erradicaram o analfabetismo – um contraste marcante com países como a Índia, que até hoje luta para criar uma força de trabalho alfabetizada. Todas as maiores cidades agora têm extravagantes “colégios-chave” e o currículo enfatiza matemática, ciências e línguas. O sistema tem sido muito elogiado em avaliações internacionais; em um exame rea­lizado pelo Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), estudantes do ensino médio de Xangai superaram por repetidas vezes seus rivais nos Estados Unidos e Europa.

Apesar disso, muitos intelectuais chineses veem a educação como um dos maiores problemas do país. Eu visitei Ran Yunfei, um veemente escritor e comentarista social, em seu apartamento, num bairro histórico de Chengdu. Em um de seus livros, Deep Pit, ele lista seis questões que, segundo ele, poderiam causar uma crise nacional, entre elas o “sistema educacional banal, superficial e engessado”. Ele acredita que uma reforma educacional é a única maneira de eliminar a corrupção e outros problemas que parecem intrínsecos à China.

Ran tem 48 anos e é membro da minoria étnica Tujia, que habita as montanhas de Wuling, a leste de Sichuan. Baixo e de pele escura, ele se descreve como sendo parecido com um fora da lei de algum livro chinês clássico – na internet, seu apelido é tufeiran, “Ran, o salteador”. Nós nos encontramos em seu estúdio, uma estrutura parecida com uma estufa que ele construiu no terraço de seu prédio. Quando perguntei sobre educação ele apontou para dois grandes baús de madeira em um canto.

“Venho colecionando livros sobre educação chinesa há anos – muitos anos mesmo”, disse, com sua voz entrecortada, os olhos arregalados para dramaticidade. “Tenho livros didáticos da dinastia Qing, da época republicana, de mosteiros budistas, prisões, o que você quiser. E, claro, da era comunista.” Ele disse que todos os grupos na China trataram a educação como uma oportunidade para moldar pessoas, mas que os comunistas foram mais longe: “Eles achavam que podiam moldar as pessoas moldando a história que elas aprendiam. O efeito é o declínio moral.”

Escolas particulares são raras na China e as crianças chinesas não podem frequentar escolas paroquiais, então o currículo do Estado, que é carregado de política e da versão do Partido da história, predomina. Quando os jovens descobrem que os heróis sobre os quais eles aprendem são produtos de propaganda do Partido, eles se tornam céticos. Um universitário chamado Zhong Daoran recentemente publicou um livro que elucidou o sentimento geral de repulsa: “No ensino fundamental, eles tiram nossos valores de independência; no ensino médio, eles tiram nossa capacidade de pensamento independente; e na universidade, eles tomam nossos sonhos e ideais. Assim, nossos cérebros ficam tão vazios quanto a cueca de um eunuco.”

Apesar de todos os estudantes chineses aprenderem de acordo com o mesmo currículo nacional, as escolas variam muito. Em algumas regiões rurais mais pobres, as crianças têm de levar um banquinho para a escola todos os dias porque lá não há onde se sentar; em áreas mais abastadas, computadores e laboratórios completos são regra. As melhores escolas requerem que os alunos passem por testes de admissão e o suborno é algo comum. Recentemente, o diretor de uma escola de ensino fundamental foi a julgamento por ter aceitado mais de 20 mil dólares liberando matrículas em sua escola. Um administrador em um colégio afiliado a uma universidade de elite em Pequim me contou que os pais podem chegar a oferecer 50 mil dólares para seus filhos entrarem. “Eles acham que vale a pena, porque quem está no colégio pode entrar para a universidade”, diz. A pressão para conseguir entrar é imensa. Apesar do boom na construção de universidades nos últimos 15 anos, as melhores continuam sendo as mais concorridas. A entrada em uma universidade depende de um famoso exame chamado gao­kao. Os alunos passam a 12ª série inteira se preparando para ele e muitos ainda vão a cursinhos à noite e nos finais de semana. São muitas as histórias sobre métodos extremos de garantia de sucesso: há alunos que respiram por tanques de oxigênio para estudar com mais afinco e meninas que tomam pílulas anticoncepcionais para que seus ciclos não comprometam seu desempenho.

Os funcionários do governo começaram a reconhecer a pressão intensa sobre os estudantes. No ano passado, o ministro da Educação aboliu, para a segunda e terceira séries, as lições de casa para as férias. O governo disse que reduzirá a importância do gaokao e que poderá considerar outros fatores para a entrada na faculdade. Isso abriu espaço para discussões sobre como reformar as escolas e já há uma enxurrada de livros com títulos como Por favor, deixe-me crescer devagar. Ran se entusiasmou com esses avanços, mas disse que problemas culturais mais profundos ainda permanecem, como a crença inquestionável nas virtudes da memorização, um legado dos exames tradicionais do período imperial. Cada vez mais, a China teme que esses métodos não produzam o tipo de criatividade e pensamento independente que pode fazer os chineses competirem com o Ocidente.

“Hoje, muitos pais simplesmente largam as crianças na escola e pensam ‘Pronto’”, ele diz. “Mas nós temos de assumir a responsabilidade de educar nossos filhos.”

Todos os dias às 8:30 da manhã, os alunos da terceira série da escola de Chengdu fazem fila para apertar a mão da professora, Shi Beilei. É um dos pequenos rituais da pedagogia Waldorf que transmitem igualdade e respeito. Shi fala com cada aluno por alguns segundos, olhando-os calorosa, porém firmemente, nos olhos, e estimulando-os a falar ou prestar atenção em algum tópico que ela sabe que será difícil.

As paredes da sala de aula estavam pintadas com um amarelo-esverdeado, efeito que dava uma sensação acolhedora ao lugar. No sistema Waldorf, as cores, texturas e materiais nas salas de aula são cuidadosamente selecionados para não confrontar as crianças com um ambiente quadrado, superintelectualizado. No jardim de infância da escola, a mobília é encapada em tecido rosa. Revestido com tecido, o mural da sala de Shi é coberto por pinturas de árvores e flores feitas pelas crianças. Como em todas as salas de aula waldorfianas, não há computadores, projetores ou telões retráteis. No lugar disso, há um grande quadro-negro articulado com dois painéis laterais, como um tríptico.

A aula começou com as mesinhas encostadas na parede. As crianças formaram uma roda e começaram a bater palmas em ritmo. A diversão emendou-se num exercício de matemática para explicar tabuada. Shi cantava as multiplicações nas três primeiras palmas e os alunos davam a resposta na quarta. Gradativamente, Shi aumentava o ritmo, fazendo os alunos pensarem mais rápido. Alguns ficavam para trás, mas ninguém se constrangia.

Então Shi desdobrou os painéis do quadro-negro e revelou um magnífico desenho feito por ela com giz colorido, representando Pangu, um gigante cabeludo da mitologia chinesa que criou o universo separando o céu e a terra com um golpe de seu machado. O currículo da Waldorf reflete a crença de Steiner de que o desenvolvimento de um indivíduo espelha-se no de uma civilização, então os primeiros anos incluem muitos mitos e fábulas sobre a criação. Ao lado do desenho, Shi havia escrito uma história em versos para ajudar os alunos a aprender os dez troncos celestes e os doze ramos terrestres, parte do tradicional sistema ordinal chinês usado para dar nome aos dias da semana e aos anos do zodíaco.

Shi rapidamente separou os alunos em dois grupos para fazer um teatrinho sobre a história de Pangu. Enquanto interpretavam, ela lia o conto em um livro, usando uma baqueta e um pequeno tambor para marcar o tempo, como um contador de histórias em uma das tradicionais casas de chá de Chengdu. Depois, ela orientou cada um a trazer sua mesinha da parede e eles copiaram a história nos cadernos, usando lápis de cera para enfeitar as margens.

As crianças tiveram uma pausa de vinte minutos no meio da sessão e tomaram um lanche, não sem antes recitar agradecimentos ao céu, à terra e aos fazendeiros. Mais dois períodos de 45 minutos vieram em seguida, um de inglês e um de trabalhos manuais, que no caso da terceira série era tricô. Depois eles almoçavam e, à tarde, violino e caligrafia.

Shi, como vários outros professores, me contou que ela entrou para a profissão como um meio de se desenvolver tanto intelectual quanto espiritualmente. Com 35 anos, ela já trabalhou em ONGs que buscam amenizar a pobreza e melhorar o meio ambiente. Moldar vinte e poucas crianças pareceu algo mais fácil de gerenciar.

“É uma plataforma para eu realizar meu trabalho”, ela diz. “Sinto que aprendo muita coisa também. Estou trabalhando os mitos da criação, que é um assunto que me interessa bastante.”

Porém, nem todas as classes recebem tanto cuidado. Uma turma de quarta série que visitei em junho saltava de crise em crise. A professora original estava de licença-maternidade e sua substituta era inexperiente. Normalmente, os professores da Waldorf acompanham os alunos de uma série à outra, uma prática que cria um laço mais forte, mas que torna mais difícil para que um novato assuma a turma. Muitas das crianças chegaram atrasadas. Elas ignoraram a professora substituta e algumas chegaram até a dormir.

David Wells, professor natural de Chicago que ensina inglês na escola, disse que os pais e funcionários são tão inseguros com a ideia de impor regras que às vezes a anarquia reina. “Eu vi comportamentos assim na zona oeste de Chicago”, ele conta. “É falta de limites. Quando cheguei e disse que precisávamos de disciplina, alguns professores acharam que eu me referia a punições e recompensas no estilo chinês. Não era isso, mas se um aluno manda o professor à ‘m…’, é preciso ter uma diretriz sobre como proceder.”

Conheci um casal que havia retirado a filha da escola. Eles me contaram que já foram professores e não queriam que sua filha passasse pelos rigores do sistema chinês. Eles se interessaram pela Waldorf por causa de sua forte ênfase nas artes. Mas conforme foram conhecendo a escola perceberam também que a pedagogia Waldorf parte de certos valores culturais em falta na China. O marido disse que é admirável que a Waldorf dê liberdade às crianças, mas que antes disso introduza valores básicos, como noções de cortesia e igualdade. Ele acredita que isso não esteja presente nos lares chineses em parte porque a política do filho único criou uma geração de “pequenos imperadores” paparicados por dois pais e quatro avós. Levantes políticos como a Revolução Cultural também contribuíram para eliminar as formas tradicionais de respeito.

“Quando você traz as ideias de Steiner para a China, você não tem esse alicerce de igualdade”, ele diz. “As crianças se desenvolvem de forma egocêntrica. Não há limites, então elas fazem o que querem.”

Isolada do resto da China por montanhas, Chengdu tem fama de tolerante, embora resistente a uma autoridade central. Talvez por causa de seu isolamento, a cidade era frequentemente usada como fortaleza em tempos de guerra e foi cenário de várias insurreições. Por duas vezes a população inteira foi massacrada, e, depois de uma rebelião no século 17, a cidade ficou tão vazia que o governo a repovoou com pessoas de outras províncias. Os habitantes locais normalmente atribuem a esse capítulo a famosa tolerância da cidade; como as pessoas falavam vários dialetos e observavam tradições diferentes, elas tiveram de aprender a aceitar visões divergentes.

Os muitos parques e templos de Chengdu possuem áreas livres onde as pessoas se encontram e conversam sobre assuntos públicos por horas a fio – em contraste com a maioria das cidades chinesas, que tradicionalmente têm menos desses espaços. A cidade é famosa por suas casas de chá, que podem ser encontradas em qualquer esquina do centro histórico. Dizem os moradores que essa singular atmosfera urbana propicia discussões abertas sobre acontecimentos públicos e coíbe a propaganda ideológica. É difícil de provar essa alegação, mas a cidade é lar da maior concentração de dissidentes depois de Pequim e tem uma vibrante cena gay, algo que ainda é incomum em outros lugares.

Depois de certo tempo na cidade, aprendi a reconhecer os pais adeptos da Waldorf. Os homens tendem a usar calças largas e camisetas. As mulheres usam saias esvoaçantes. Eles tomam o cuidado de comprar giz de cera coloridos naturalmente e se perguntam se seria importante visitar a Escola Waldorf original, em Stuttgart, em suas férias pela Europa. O fato de esses pais terem condições de viajar de férias para a Europa me levou a perguntar o que eles faziam da vida. As respostas eram vagas. “Negócios”, alguns diziam, ou “importação e exportação”. Um homem me disse que ficou rico vendendo casacos de pele a russos. A anuidade da escola é de 3 mil dólares, quase o salário anual de um morador médio de Chengdu. Mas nem todos os pais são ricos. Alguns viram professores da Waldorf para que seus filhos possam estudar lá pela metade do preço.

Conheci uma dessas mães, Ju Zhen, no jardim de uma casa de fazenda compartilhada por várias famílias Waldorf. Estávamos debaixo de um dossel de magnólias, florescendo amarelas no límpido ar de outono, e observamos a filha dela, de sete anos, pregando dois pedaços de madeira: um banquinho ia tomando forma.

Ju entrou para a escola no verão passado. Por oito anos antes disso, ela foi uma premiada professora de física em Nanjing. Aos 37 anos, ela já possuía praticamente tudo que o sistema estatal poderia oferecer: bom salário, carro, apartamento. Mas ela se preocupava com a filha. Ju cresceu no interior e não pisou numa sala de aula antes dos sete anos. Sua filha, aos cinco anos, já estava no preparatório para o ensino fundamental aprendendo língua e matemática. Ju sabia que a menina logo enfrentaria infindáveis provas e lições de casa. Então ela largou o emprego e se mudou para Chengdu, mais de mil quilômetros a oeste. Sua filha está na primeira série na Escola Waldorf de Chengdu e Ju foi contratada para ajudar a elaborar um currículo de ensino médio para este outono, quando a nona série irá começar.

Ela ganha bem menos do que antes e o novo emprego não é tão prestigiado. Na verdade, ela só contou aos pais depois que a transição já havia acontecido. “Teria sido apavorante para eles”, ela diz. Eles ainda não aprovam, mas ela está feliz por ter dado este passo. Sua filha agora tem menos lição de casa e está aprendendo artes manuais. Ju vendeu o carro, tornou-se vegetariana e começou a usar saias de algodão.

“Antigamente eu só trabalhava, sem me importar”, conta. “Fazia horas extras e ganhava muito dinheiro, mas nunca tinha tempo livre. Usava o dinheiro em algum mercado caro comprando comida cara. Trabalhava de segunda a sexta e passava o fim de semana gastando o dinheiro. Levava uma vida fast-food.”

A fazenda onde conheci Ju fica em uma ex-comunidade agrícola de bangalôs de concreto e estuque entre cercas vivas, árvores e pequenos campos. Umas quarenta famílias haviam se mudado para lá. A maioria, em conformidade com os princípios da Waldorf, mantinha seus filhos longe de televisões e outros eletrônicos e os incentivava a brincar fora de casa. A Waldorf também sugere que a família jante unida em casa, enquanto pais em ascensão tendem a deixar os filhos com um avô ou criado e passam as noites em restaurantes construindo seu guanxi – a complexa rede de relacionamentos que são cruciais para seguir em frente.

Crianças corriam ao nosso redor passando por um portão de bambu. Todos estavam indo a um pequeno terreno que meia dúzia de famílias alugara dos fazendeiros locais. Passamos por alguns moradores, que nos encaravam. Para eles, os waldorfianos são estranhos: profissionais que queriam viver como camponeses, mas sem usar fertilizantes.

A caminho do campo, falei com um dos pais, Michael He. Designer de software, ele é alto e tem os ombros largos, e um rosto grande e quadrado. Ele contou que se interessava pela filosofia de Steiner, mas não era um seguidor ferrenho. Sua prioridade era dar à filha uma educação menos rígida e explorar um estilo de vida diferente.

“Antigamente, quando eu morava na cidade, quase nunca saía de casa”, ele diz, enquanto andamos por uma trilha de cascalho. “É bom ler livros. Antes, eu só ficava na internet.”

Chegamos ao terreno que as famílias alugavam. Os homens rapidamente dividiram o espaço em lotes individuais.

“Quero um lote grande!” gritou Ju, e os homens atenderam, com quase 200 metros quadrados. Alguns dias depois, topei com ela na escola.

“Eu plantei alface e minha filha plantou feijão”, ela diz. “Ensinei a ela como usar a enxada.”

Com o passar dos anos, os voluntários transformaram a propriedade da Escola Waldorf de Chengdu em um belo campus, com um bosque de bambu, um pagode e uma escola de ensino fundamental em forma de U, abarcando um jardim de pedras. No outono passado, me encontrei com Li em seu escritório improvisado, uma abarrotada sala de reuniões decorada com fotos de prefeitos e deputados que visitaram a escola. Agora com 42 anos, Li tem um rosto redondo e suave e lábios carnudos. Apesar de pacata, eu já a vi algumas vezes lançar olhares intimidadores, daqueles que fazem as pessoas mudarem de ideia.

Falando sobre os primeiros anos da escola, ela me contou sobre como tirou sua licença. Por causa das leis rígidas da China, a maioria das escolas Waldorf de ensino fundamental opera sem licença e os pais ficam sem saber ao certo se as credenciais acadêmicas serão reconhecidas fora do sistema Waldorf. Li diz que teve sorte: alguns colegas de seu tempo de treinamento hoje são funcionários da sede local do Departamento de Educação.

“Quando abrimos, o governo disse para não mexermos em três áreas: religião, política e segurança”, diz Li. “A segurança das crianças é essencial, claro, mas não mexa com política nem religião. Se você se envolver com isso, ninguém vai poder te salvar.” Ela diz que, apesar de seguir as ideias antroposóficas de Steiner, isso não teve influência na escola.

Li conta que o maior problema que a escola enfrenta é a necessidade urgente de se expandir. Muitas crianças estão se aproximando da idade colegial e a escola só vai até a oitava série. Os pais mais abastados estão ansiosos pela expansão e têm dinheiro para financiá-la. Muitos professores se opõem, preocupados de que não haja um número suficiente de profissionais adequadamente treinados no método Waldorf. Mas alguns pais não se importam; para eles, Waldorf não é muito mais do que uma marca ocidental.

“Um terço dos pais gostam muito da pedagogia Waldorf e estudam antroposofia”, Li continua. “Outro terço pensa ‘Gosto da pedagogia Waldorf, adoro o método, mas não acho antroposofia tão importante’. E o outro terço pensa ‘Os professores são bons, o ambiente é natural, meu filho está feliz, e é só. Antroposofia é maluquice, mas meu filho está feliz’.”

Conheci um desses pais ricos um dia, numa casa de chá. Seu nome era Wang Jundong e ele disse, vagamente, que havia feito sua fortuna no sul e agora trabalhava com marketing. Era um jovem de 47 anos: bem vestido, em forma, com cabelos curtos espetados e o rosto magro. Ele usava calças cáqui, uma camisa polo e um bracelete de enormes contas de madeira, que são comuns entre os budistas.

A disseminação do sistema Waldorf, segundo ele, “reflete a impotência que as pessoas sentem em relação ao ensino público”. Depois que sua filha nasceu, em 2008, ele e sua esposa procuraram várias escolas. Estudar no exterior está se tornando uma opção popular para os chineses ricos, e o trabalho de Wang dava a ele a chance de emigrar. Mas ele e sua esposa não quiseram sair do país e adotaram a Waldorf como a melhor das opções disponíveis. Ele parecia entusiasmado com a escola, mas achava que ela precisava ser mais ousada e se expandir mais depressa.

“O maior problema agora é que a escola é gerenciada pelo comitê de professores”, conta. “Se os pais doam tempo ou dinheiro, os professores não dão atenção. Mas agora, para construir um colégio completo, precisamos de um investimento enorme.”

Li encontrou uma construtora disposta a doar parte de um enorme terreno ao sul da cidade para o novo campus da escola. Mas mesmo com o terreno doado, o custo da construção e do equipamento chegaria facilmente aos 10 milhões de dólares. “Não se conseguem doações desse tamanho”, conta Wang.

A abadessa de um templo budista passou por ali e ela e Wang começaram a conversar. Ela disse que estava ali para encontrar um de seus discípulos, que era dono da casa de chá. Quando ela foi embora, Wang disse que iria investir mais nessa casa de chá, no futuro.

Wang começou a fazer contas comigo. Com mil alunos a escola obtém lucro, mas não o suficiente para virar uma entidade lucrativa. Assim, eles poderiam pagar os empréstimos feitos sem juros pelos pais.

“Se a escola tivesse a mente um pouco mais aberta, dinheiro não seria problema”, diz Wang. “Ela pode proteger suas diretrizes waldorfianas independentes. Mas passem as decisões sobre assuntos práticos para os pais.”

Não ficou claro se Wang realmente comprava a abordagem da Waldorf. “A Waldorf não é uma filosofia madura”, ele diz. “É meio idealista. Não se concretiza na sociedade de hoje. Já está por aí há um século, mas nunca foi muito popular. E nunca será.” Ele continua: “Acho que as crianças deveriam ir a uma escola mais como a Eton. O caráter da criança já está formado e precisa de melhores métodos de estudo. Ninguém quer que o filho tenha uma carreira ruim, certo? E sim, que ele tenha uma boa posição na sociedade. Então precisamos de algo assim para o nosso colégio”.

O crescimento da Waldorf na China surpreendeu seus proponentes ocidentais. Encontrei com dois deles em Pequim. Uma era Nana Göbel, diretora de uma fundação alemã que fornece recursos e treinamento para escolas Waldorf. O outro era Christof Wiechert, um ex-diretor representativo da Waldorf no mundo todo. Eles vieram conhecer uma nova escola Waldorf em Pequim e estavam a caminho de Chengdu. Nos encontramos em um hotel novo às margens de uma estrada poeirenta apinhada de tratores e caminhões. O hotel era decorado com papel de parede de veludo vermelho e repleto de enormes e caricatas réplicas de mobília Luís XIV. Parecia um chinoiserie ao contrário, uma aproximação de algo ocidental que um designer oriental só tenha visto de relance. Uma garçonete nos trouxe café preto. Ela parecia não ter certeza sobre como servir, então usou uma jarra de vidro.

Wiechert tem 68 anos, simpático e rotundo, mas adora um bom debate. Ele olhou para Göbel e disse que a experiência chinesa era, de certa forma, similar às origens da primeira Escola Waldorf. Tal como naquela ocasião, as pessoas estão numa correria; a primeira escola de Steiner abriu depois de poucos meses de preparos. “Ao olhar a maneira como a primeira Escola Waldorf foi fundada, diría­mos que Steiner deu um curso intensivo”, diz Wiechert.

Göbel olhou firmemente para ele. “Mas aquelas eram pessoas com Ph.D., anos de experiência em antroposofia”, ela diz. “Eles sabiam o que estavam fazendo e eram altamente capacitados. Esta comparação está errada, Christof!”

“Ainda assim havia uma disposição ao improviso, à ousadia. Foi logo após a revolução e eles queriam algo novo”, diz Wiechert.

“É verdade”, diz Göbel. “Sempre digo às pessoas na Europa que em 10 anos a China estará maior.”

A fundação de Göbel opera no mundo todo e ela diz que nenhum lugar está desenvolvendo o ensino alternativo tão rápido quando a China, onde Waldorf é um dos poucos movimentos de ensino alternativo realmente globais. O único rival à altura é Montessori, que normalmente é limitado ao jardim de infância e ao ensino fundamental. Ela reconhece que alguns adeptos do movimento estão se questionando se a China pode mudar Waldorf para pior. Visitantes frequentemente são surpreendidos pelo parco conhecimento de alguns professores e administradores chineses sobre as teorias de Steiner. Muitos chineses têm a impressão de que a Waldorf é permissiva, aceitando que as crianças fiquem brincando ao invés de estudar. Göbel tentou combater esse equívoco financiando a primeira tradução das obras de Steiner para o chinês. Ainda assim, há escolas sendo inauguradas com a promessa de uma experiência “Waldorf chinesa”, com mais memorização. Algumas oferecem salas de aula de Waldorf logo ao lado de salas de Montessori e salas tradicionais chinesas, onde os clássicos confucionistas são decorados. De certa forma, não é muito diferente de como o Zen e outras filosofias orientais foram inseridos no Ocidente – como parte de uma salada de ideias aparentemente exóticas que acabou por se aglutinar formando o movimento da Nova Era.

Göbel é um pouco cética quanto à velocidade com a qual a Waldorf tem crescido na China. Mas, com o tempo, ela também passou a admirar isso. “Eles nem sabem se seus filhos terão um diploma válido que lhes permita entrar para a universidade. Mas estão arriscando mesmo assim, por não aceitarem mais o ensino público”, ela diz.

Wiechert virou-se em direção a ela, empolgado. “Imagine isso na Europa! Seria impossível. Eles estão dispostos a sacrificar e arriscar tudo – e só o que nós europeus podemos fazer é tentar acompanhá-los e oferecer o que pudermos.”

Autor

Ian Johnson, da New YorkerTraduzido por Luiz Fernando Alves


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