NOTÍCIA
Será que estamos prestes a criar uma geração de humanos com dificuldades de memorizar, pensar criticamente, aprender? Leia reportagem de capa da edição 317
Um estudo recentemente publicado pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, chamou a atenção dos educadores: o trabalho analisou o impacto da inteligência artificial (IA) no desempenho cognitivo, linguístico e comportamental de 54 alunos voluntários por quatro meses, dividindo-os em três grupos — os que usavam a IA para redigir textos; para mecanismos de busca e, por fim, um grupo que produzia redações sem lançar mão dos recursos digitais. A conclusão mostrou que, quanto mais intensa a utilização da IA, menor o engajamento neural, linguístico e menor a atividade cerebral. Principalmente, mostrou que há sinais de dependência e menor autonomia cognitiva.
A pesquisa feita pelo MIT é apenas um exemplo de uma preocupação crescente de cientistas — e também de educadores — de investigar mais profundamente os impactos da difusão de recursos de inteligência artificial, em particular os chats, que hoje permitem a geração de textos e imagens com velocidade e qualidade mais do que surpreendentes. Será que estamos prestes a criar uma geração de humanos com dificuldades de memorizar, pensar criticamente, aprender?

Pesquisadores são unânimes em assumir que a IA veio para ficar — e tende a se aprimorar em velocidade desconhecida (Foto: Shutterstock)
Ainda há muito a descobrir. Os pesquisadores são unânimes em assumir que a IA veio para ficar — e tende a se aprimorar em velocidade desconhecida —, mas alertam reiteradamente para uma postura ativa da sociedade em compreender o impacto desses novos recursos, discernindo entre os hábitos que simplesmente delegam à tecnologia funções que antes eram esperadas do cérebro humano, e atitudes que promovem o pensamento crítico, potencializado pelo uso da IA. Daí um crescente número de pesquisas, que vêm ganhando escala e a abrangência para colocar uma lupa em um fenômeno tão complexo, ainda sofrem da falta de séries históricas comparativas e da complexidade de um tema apenas emergente.
Ao mesmo tempo que acompanha os estudos mais recentes, a professora e pós-doutora em Psiquiatria pela USP, Telma Pantano, também observa as transformações cotidianas de seus alunos de graduação. “Eu tenho visto uma dificuldade muito grande dos alunos na produção, na criação, na estruturação do pensamento, nos últimos dois anos”, diz.
Por isso, a estratégia da qual Telma lançou mão é pedir que os jovens escrevam à mão suas produções — o que, invariavelmente, provoca um enorme susto. “Quando não permitimos que usem a inteligência artificial, ficam bloqueados e se perguntam por onde começam, como se o acesso às redes neurais próprias não tivesse sido estimulado”, conta a professora.
Segundo Telma Pantano, as pesquisas têm mostrado uma diferença muito importante entre pessoas que usam inteligência artificial para responder questões e para adquirir conhecimento e aquelas que usam inteligência artificial para resolver as atividades por elas. “Uma coisa é utilizar a inteligência artificial como fonte de organização e de busca. Outra é usar a inteligência artificial como se fosse a minha produção”, resume. Conforme a pesquisadora, os estudos vêm provando que o uso da IA pode levar a menor mobilização de recursos cognitivos.
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Embora a IA tenha adicionado um sentido de urgência às pesquisas, inclusive pela rapidez com que se difundiu, não é de hoje que os cientistas se preocupam com os efeitos do crescente uso de recursos digitais. Em alguns casos, vêm enfatizando a importância de se preservar aspectos que hoje parecem ultrapassados.
Em 2024, por exemplo, estudo realizado por universidades norueguesas revelou que escrever à mão — como propôs Telma Pantano a seus alunos — traz um impacto positivo ao aprendizado. Analisando as atividades cerebrais, os pesquisadores identificaram aumento das atividades de regiões do cérebro essenciais para o aprendizado, como aquelas ligadas à memória e ao processo de informações visuais, bem como do funcionamento motor.
Por que isso acontece? Entre outras razões, porque o ato de escrever à mão leva a uma complexa mobilização do corpo humano: o movimento dos dedos, o encadeamento motor, do aparelho visual e do cérebro, o tato para a pressão correta do lápis ou da caneta, o que requer uma coordenação de incontáveis processos.
Assim como esse trabalho, muitos pensadores da educação já demonstraram a força da conexão entre pensar e agir, saber e fazer — o estadunidense John Dewey (1859–1952), por exemplo, criou o conceito de learning by doing.
Há quase 50 anos, no MIT, o sul-africano Seymour Papert desenvolveu o conceito do Construcionismo, expandindo as ideias de seu amigo Jean Piaget e evidenciando a potência do conhecimento construído na produção de artefatos, projetos, na resolução de problemas. Das ideias de Papert se originaram movimentos hoje globalmente difundidos, como a cultura maker e a aprendizagem criativa.

Telma Pantano, pós-doutora em Pisiquiatria: Quanto mais fizermos uso de recursos automatizados, menor estímulo dedicaremos aos meios cognitivos internos de busca e produção de conhecimento (Foto: arquivo pessoal)
O impacto do digital não se resume à abdicação do uso da terceirização da própria inteligência para a IA, nem mesmo pela importância de se preservar processos que implicam a interação corpo e mente. O fenômeno é tão complexo que os cientistas vêm fazendo alertas sobre o declínio de capacidades como a da leitura de textos longos.
Em uma das mais importantes feiras literárias do mundo, a de Frankfurt, na Alemanha, na edição de 2023, um grupo de cientistas europeus fez um alerta surpreendente sobre o futuro da leitura, expresso no Manifesto de Ljubljana. Para os pesquisadores signatários, embora os recursos digitais tenham o potencial de fomentar a leitura de forma inédita, também favorecem a leitura superficial e fragmentária.
“A leitura de nível superior é a nossa ferramenta mais poderosa para o pensamento analítico e estratégico. Sem ela, estamos mal equipados para enfrentar simplificações populistas, teorias conspiratórias e desinformação, e consequentemente nos tornamos vulneráveis à manipulação”, diz o Manifesto.
Segundo o documento, rapidamente encampado por instituições ligadas ao livro e à leitura de diversos países, são especialmente os textos de formato longo, como livros, que aprimoram nossas habilidades de leitura. “Eles nos treinam para testar diferentes interpretações, detectar contradições, vieses e erros lógicos, e estabelecer as conexões sofisticadas e frágeis entre textos e contextos culturais que precisamos para o intercâmbio de julgamentos e emoções humanas”, diz o Manifesto.
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Entre os articuladores da proposta, o pesquisador Adriaan Van Der Weel, da Universidade de Leiden, na Holanda, vem conduzindo diversas pesquisas sobre o assunto. Segundo ele, a revisão de uma centena de estudos tornou evidente que os hábitos de leituras características da tela, que requerem períodos de atenção mais curtos, leitura fragmentada, menor envolvimento com o texto e menor retenção, estão sendo transferidos para a leitura em papel. Para Van Der Weel, as pessoas tendem a não levar o texto digital tão a sério quanto levam o texto impresso. “Não estão preparadas para gastar tempo pensando sobre isso”, diz.
Hoje, quando usa a tela de seu smartphone ou seu computador, a expectativa de um jovem leitor é de que terá de dedicar menor tempo de atenção. Com isso, pesquisadores dessa linha recente de pesquisas vêm chamando a atenção para o crescente déficit do que chamam de ‘paciência cognitiva’.
Segundo explicou o pesquisador holandês à revista Educação, o texto impresso de um livro, por exemplo, exige uma leitura linear, do começo ao fim, com argumentos sucessivos e encadeados. Assim, o hábito de leitura sempre implicou a dedicação de um tempo específico para a compreensão do texto. “Nossa forma de pensamento lógico, analítico e linear é baseada em texto, e a leitura supunha uma dedicação mais longa da atenção”, resume o autor, que integra uma nova frente de estudos sobre as competências leitoras.

Adriaan Van Der Weel, holandês, é um dos articuladores do Manifesto de Ljubljana, divulgado na Feira de Frankfurt, em 2023, em que se alerta sobre o futuro da leitura (Foto: arquivo pessoal)
Em São Paulo, o Colégio Alef Peretz vem se dedicando a intensificar o tempo dos alunos dedicado à leitura. A escola foi uma das primeiras a proibir o uso do celular em sala de aula, um ano antes da proibição determinada pelo Ministério da Educação. Para o diretor Marcelo
Davidovici, a tradução de paciência cognitiva pode ser notada facilmente na ansiedade dos alunos quando têm dúvidas. Antes mesmo de tentar responder, já procuram diretamente seus amigos, professores, recursos de IA, sem se debruçar sobre os problemas — em qualquer área, inclusive a matemática. “É uma geração imediatista, condicionada a responder tudo muito rapidamente, e isso é um grande problema”, analisa.
O colégio chegou a incluir mais de 20 obras anuais para os alunos do ensino fundamental 2. “Sabemos que os alunos não vão ler realmente todos os livros, mas, como a exigência é alta, acabam lendo pelo menos 10 obras por ano, o que já é um grande sucesso nesse contexto”, diz o diretor. Segundo conta, embora os alunos tenham reclamado muito em um primeiro momento, aos poucos eles têm se habituado a dedicar mais tempo à leitura.
Para Marcelo, a suspensão do uso de celular em sala de aula foi fundamental para que os alunos pudessem elevar paulatinamente o grau de concentração. “Vimos uma melhora significativa no desempenho acadêmico dos alunos e na postura em sala de aula”, conta. Ao mesmo tempo, os alunos estão escrevendo mais — o que vem levando a um aumento expressivo nas médias de redação nas avaliações externas. “Avançamos, mas não é uma luta que vencemos”, afirma.
Para o diretor, o advento da inteligência artificial generativa, nos últimos dois anos, acrescentou complexidade ao desafio — pois representou um atalho para os alunos com as entregas acadêmicas. “O grande desafio das escolas é o combate ao uso indevido da inteligência artificial”, diz.

“É uma geração imediatista, condicionada a responder tudo muito rapidamente, e isso é um grande problema”, diz Marcelo Davidovici, diretor do Colégio Alef Peretz (Foto: arquivo pessoal)
Para Telma Pantano, o uso da IA como uma forma atual da lei do menor esforço é de certa forma esperada. O cérebro humano quer produzir mais com o menor dispêndio de energia. “Assim, a inteligência artificial é muito confortável porque num curto período de tempo, eu consigo respostas”, diz Telma. Mas, no atual contexto, o risco é grande. “Quanto mais fizermos uso de recursos automatizados, menor estímulo dedicaremos aos meios cognitivos internos de busca e produção de conhecimento”, diz.
Por isso, a seu ver, o papel dos professores e dos gestores é essencial. “Precisamos ensinar a criança e o adolescente, devemos mostrar que a IA não pode ser o final do processo, mas o meio. Caso contrário, os alunos não serão capazes de produzir, inovar, fazer algo diferente, pois o cérebro não estará preparado”, diz.

Colégio Alef Peretz, em São Paulo, foi um dos primeiros a restringir o uso de celular na sala de aula e tem notado avanços positivos após a medida (Foto: divulgação)
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Sem tabus: como avaliar a educação midiática?
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A discussão tende a esquentar no curto e médio prazo, com novas pesquisas, e também com a incorporação do tema a sistemas internacionais de avaliação, como é o caso do Pisa — que em 2029 incluirá a dimensão Media and Artificial Intelligence Literacy, que pode ser traduzido como letramento midiático e em inteligência artificial.
Conforme os primeiros documentos divulgados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que realiza o Pisa, a prova vai levar em conta como os jovens compreendem o que vem a ser a IA, o conhecimento dos riscos e dos benefícios potenciais para a sociedade, as possibilidades da interação homens e sistemas inteligentes, as novas competências demandadas no uso crítico da IA e, por fim, a capacidade dos alunos de usar bem a IA para ampliar a criatividade e a aprendizagem.
Com isso, o Pisa quer sinalizar para duas tendências centrais: de um lado, a inexorável tendência de difusão da IA, que crescerá de forma exponencial; de outro, a urgência de se educar para o uso consciente e intencional da IA, sempre privilegiando o desenvolvimento do pensamento crítico, a criatividade e a ética, com o protagonismo dos seres humanos. Afinal, simplesmente delegar para os chats a tarefa de ‘raciocinar’ pode ser o caminho mais curto para o impensável futuro previsto nas distopias da ficção científica: aquele em que as pessoas se tornam meros coadjuvantes em um mundo dominado pelas máquinas.

Colégio Alef Peretz vem se dedicando a intensificar o tempo dos alunos dedicado à leitura (Foto: divulgação)
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