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Autor

Paulo de Camargo

Publicado em 10/06/2025

Educar para a esperança e o pertencimento e, assim, combater a violência escolar

Há evidências cada vez mais contundentes do sofrimento psíquico em crianças e adolescentes. Mesmo a escola não sendo consultório, seu papel preventivo inclui a criação de um ambiente de bem-estar, acolhimento e boa convivência

Os números não mentem. Segundo dados recentes do SUS, pela primeira vez a incidência de ansiedade e depressão entre crianças e adolescentes superou a taxa dos adultos. Na rede estadual de ensino paulista, o número de suicídios entre alunos passou de sete para 67, entre 2019 e 2023 — já as tentativas passaram de nove para 325. O Índice Contínuo de Avaliação da Saúde Mental, calculado pelo Instituto Cactus, é menor para os jovens entre 16 e 24 anos do que para todas as demais faixas etárias.

Há gráficos, tabelas e projeções para todos os gostos. Para todos os desgostos, na verdade. Crianças e jovens brasileiros vivem uma situação angustiante, em todos os campos — um conjunto de evidências que explodem dentro da escola, espaço social e de convivência em que passam grande parte do seu tempo. Crises de ansiedade, autoferimentos, atentados contra a própria vida — não há escola que possa se dizer livre desses episódios.

“Quando adolescentes levam adolescentes para se cortar no banheiro, sempre é um pedido de socorro: olhem para mim, a vida está muito difícil”, reflete Simone Pannocchia Tahan, diretora pedagógica da Parthenon Bom Clima, em Guarulhos (SP). “De uns 10 anos para cá, começamos a ver uma mudança acentuada em questões como a agressão a si próprio”, testemunha Simone, que também é psicóloga e pesquisadora da PUC-SP.

Os indicadores são cada vez mais alarmantes e, ainda assim, mostram a ponta de um iceberg cuja profundidade total ainda é desconhecida. O ambiente de vulnerabilidade emocional e sofrimento psíquico vivido pelos estudantes alimentam um submundo de horrores. Enquanto esta matéria era produzida, a Polícia Civil do Rio de Janeiro evitou um atentado combinado nas redes sociais, como um desafio, que levaria a dezenas de vítimas e envolveria a morte de uma criança, para ser gravada e transmitida nas redes sociais, durante o show de Lady Gaga, no Rio de Janeiro.

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Mas, como meninos e meninas que sofrem bullying e vivem questões sérias de autoestima se tornam jovens capazes de barbaridades, como atear fogo em pessoas em situação de rua? Ocorre que estas são as vítimas mais buscadas para o recrutamento em subcomunidades de plataformas conhecidas, como TikTok e Discord, ou menos familiares para os adultos, como a Roblox.

“Foi o tempo em que a dark ou a deep web, ambientes virtuais acessíveis apenas por entendidos em programação, eram os lugares mais sinistros. Agora as subculturas online e, muitas vezes, transnacionais, estão em todas as plataformas”, conta a pesquisadora e escritora Michele Prado, que se tornou uma das mais conhecidas ativistas a denunciar o que vem ocorrendo no submundo da internet. “Passou da hora de serem tomadas medidas mais drásticas”, diz.

No final de abril, ela acionava suas redes de relacionamentos institucionais para que o governo brasileiro fosse à cadeia nacional pedir atenção ao tema. “O FBI fez isso duas vezes apenas em abril”, lembra a escritora, constantemente perseguida nas redes pelas suas denúncias.

De acordo com suas pesquisas, são dezenas de grupos que se interconectam, mas de forma descentralizada, o que torna difícil o desmantelamento das células. Envolvem de simples criminosos a neonazistas, ou grupos mais exóticos, como o de adoradores do ‘demônio’, os quais preferem plataformas de jogos. É lá que encontram meninos e meninas fragilizados e sós, que começam a ser, como chamam os especialistas, ‘dessensibilizados’. Ou seja, são expostos progressivamente a cenas cada vez mais chocantes, como a execução de animais online, ou seduzidos até que revelem fotos íntimas e passem a ser chantageados.

Há também os grupos que promovem desafios (alguns remunerados), que vêm levando à morte crianças e adolescentes mundo afora, como a menina Sarah de Castro, que morreu após inalar desodorantes.

O papel das redes

O papel das redes sociais no quadro dramático dos jovens ainda é uma questão em aberto. Não se trata de uma relação de simples causa e efeito, mas da evidência de correlações complexas que envolvem, sim, as redes desreguladas e que pairam acima da lei, a uma sociedade narcisista e competitiva, com ideais inatingíveis de sucesso, beleza e consumo. Do mesmo cenário, famílias que não cumprem seu papel por ignorância ou impotência, escolas que lavam as mãos e ainda não deram a devida atenção ao tema, todos mergulhados em um poço profundo de solidão, em tempos de hiperconectividade. É o que se vem chamando de a solidão dos hiperconectados.

“Nenhuma polícia vai dar conta desse quadro”, alerta Michele. “Nossa melhor chance é o trabalho preventivo, envolvendo professores, educadores, pais e mães”, acredita. Mas, a seu ver, ainda falta muita informação para que escolas e famílias possam atuar. Tirar o celular não resolve nada, lembra. “As famílias precisam conversar com os filhos, olhar nos olhos, perguntar-se sobre como se socializa. Não existe uma bala de prata, precisamos entender o adolescente”, diz a pesquisadora.

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Contudo, como entender a cabeça das novas gerações que tantas vezes são etiquetadas como Y, Z, Alfa, Beta, mas das quais pouco de fato se conhece? Muitas pistas estão em um dos mais amplos conjuntos de pesquisa sobre o tema, realizados pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem), que acaba de completar 20 anos. São dezenas de mestrados, doutorados, convênios com estados e municípios para o desenvolvimento de programas de convivência escolar — como o Conviva, realizado com o estado de São Paulo.

Para a pesquisadora Luciene Regina Paulino Tognetta, coordenadora do Gepem, a juventude atual é caracterizada pela incerteza do jovem quanto ao futuro — que, de certa forma, qualifica seu presente. “A incerteza quanto às transformações sociais, culturais, econômicas, e também na relação com o espaço e o tempo, deixa a sensação de que este mundo futuro, na prática, não existe”, diz Luciene. “Isso lhes confere uma condição de desesperança”, sintetiza.

Desesperança

Quando se decompõem os elementos da desesperança, surgem as marcas do sofrimento psíquico, quase sempre ligado a desafios da convivência ética. “A gente separa didaticamente a violência em preconceito, bullying e cyberbullying, violências estruturais, a violação de si e muitas outras, mas para o sujeito que sofre não importa de onde venha, se é causa ou consequência: é violência”, ressalta a pesquisadora.

Fato é que se trata de um desafio global — mas também é certo que as informações disponíveis mostram uma exacerbação dos desafios no Brasil. Dados recentes do Pisa compararam o sentimento de solidão entre jovens e mostraram que cerca de 27% dos alunos de 15 anos concordam com a afirmação ‘Sinto-me solitário na escola’, contra uma média de 16% entre os países que integram a OCDE.

“Nossas pesquisas mostram uma parcela dos jovens em situação de muita vulnerabilidade emocional”, acrescenta a pesquisadora do Gepem. Surge, então, um caleidoscópio cruel de índices elevados de automutilação, ideações suicidas, e sentimentos como solidão, exclusão e medo de perder aquilo que lhes dá segurança.

Escola segura e acolhedora para prevenir violência escolar

Aqui entra o papel da escola e dos educadores. É preciso pensar a educação de crianças e jovens sob a perspectiva da esperança e da convivência. Para isso, há um fator decisivo, segundo os estudos mais recentes: o sentido de pertencimento. “Os jovens que se sentem menos pertencentes são os que mais demonstram sofrimento”, relata Luciene Tognetta. As pesquisas mostram a importância de se pensar estratégias e políticas integrais para a juventude. Os autores da área defendem a necessidade de um currículo para o tema.

É o que fez o Colégio Pioneiro, na zona sul de São Paulo. Segundo conta o diretor de ensino fundamental 2 e ensino médio, Mário Fioranelli, a escola iniciou, em 2020 — antes do início da pandemia —, a disciplina Convivência Ética, com 50 minutos semanais. “São espaços de escuta e reflexão, onde os estudantes analisam dilemas reais, discutem empatia, justiça e respeito mútuo”, relata o diretor. “Foi um divisor de águas. Em um primeiro momento, cria no espaço escolar uma oportunidade verdadeira de o aluno ser ouvido. Como proposta preventiva é espetacular: discutimos os problemas ainda no início”, conta Fioranelli.

violência escolar

Equipe de ajuda do Colégio Pioneiro é composta por alunos voluntários para colegas denunciarem bullying e outras violências (Foto: divulgação)

Além disso, entre outras estratégias, há no Colégio Pioneiro o trabalho de assembleias escolares quinzenais e a adoção da metodologia das equipes de ajuda, na qual alunos voluntários se tornam referência para que colegas denunciem bullying e outras violências. Por fim, a escola mantém um atendimento individualizado para apoiar estudantes em situações emocionais delicadas. “São estratégias silenciosas, mas essenciais para prevenir violências simbólicas e afetivas”, diz o diretor.

Não se trata, portanto, de acrescentar mais uma tarefa para o professor — que também vive sob pressão e com suas próprias angústias. As mudanças devem ser estruturais, o que inclui pensar espaços institucionais para que os jovens possam se organizar, apontar problemas, buscar coletivamente soluções; espaços em que os professores os conheçam, apoiem e os estimulem a participar. “É preciso ter clareza de que a convivência é de responsabilidade de toda a comunidade educativa: o grande perigo é que esses alunos sejam tomados como salvadores da pátria”, diz Luciene, que também é coordenadora da rede Equipes de Ajuda do Brasil.

Para Luciene Tognetta, ao mesmo tempo em que as novas gerações têm mais habilidades para resolver alguns tipos de problemas que as gerações anteriores, há também competências que precisam desenvolver. “Resta-nos compreender, e não julgar”, alerta a pesquisadora. Afinal, o ambiente em que vivem também é completamente diferente para a humanidade, e é a esse novo contexto que precisam se adaptar.

Equilíbrio e equilibristas

E que contexto. Para o psicanalista Marcelo Veras, doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, estamos em um momento atual civilizatório só comparável ao surgimento da imprensa ou da escrita. “É um momento único”, diz — e faz questão de ressaltar o lado positivo e otimista do ambiente digital, pelo que traz de universalização de acesso ao conhecimento.

Por outro lado, na sua visão, o novo contexto requer repensar o processo de formação. Para ele, os jovens atuais têm acesso a tanto conteúdo que precisam aprender o que chama de ‘enquadrar o mundo’, ou seja, encontrar ângulos e perspectivas de observar e entender o mundo que os rodeia para construir sua individualidade. “A vida não tem equilíbrio, só tem equilibrista, e os jovens precisam se equilibrar neste mundo”, diz.

Na visão de Marcelo, os jovens estão expostos a um projeto civilizatório da hiperconectividade. No novo cenário, a ideia de um conhecimento universal, de uma grande autoridade que nomeia o que deve ser aprendido, se dilui e fragmenta. A ‘verdade’ é a que está nas bolhas frequentadas pelos internautas.

Para o psicanalista, o compartilhamento de desinformação e outros conteúdos indevidos acontece como uma ação impulsiva para se livrar da angústia que o indivíduo sente e com a qual não consegue lidar. “Tenho certeza de que, se as pessoas parassem para pensar no que leem, grande parte desses encaminhamentos não aconteceriam”, acredita Marcelo, autor de Selfie. Logo existo (ed. Corrupio), entre outros livros que se tornaram referência.

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Marcelo Veras coordena, na Universidade Federal da Bahia, um dos mais bem-sucedidos projetos de prevenção ao suicídio nas universidades brasileiras — o PsiU (Programa de Saúde Mental e Bem-Estar). Com 18 mil atendimentos e dois suicídios registrados — índice

da elevadíssima eficácia do programa –, o PsiU tem entre suas virtudes o atendimento imediato. “Uma pessoa angustiada, que sofre bullying, que pede auxílio, precisa ser ouvida na hora, não pode esperar a semana seguinte”, diz. “A gente tenta oferecer algo que é precioso, que é o tempo para a escuta individual”, complementa.

Para ele, entre as características dos tempos contemporâneos está a menor capacidade de suportar frustrações, o imediatismo e a cultura sob demanda. “Não acho que exista epidemia de depressão, mas há sim uma epidemia de frustração”, diz Marcelo Veras.

Em sua visão, os algoritmos da internet são eficientes porque capturam e estimulam mecanismos que transformam indivíduos em consumidores, para depois oferecer mais do mesmo, como se faz com os adictos, ou seja, os dependentes. “Isso faz com que a gente goze mais do mesmo e não saiba como lidar com o desejo. A gente vive a vida como uma playlist, é uma máquina de segregação que gera continuamente a sensação de falta”, alerta.

Por isso, uma das funções da educação é oferecer diversidade, mostrar opções — ou, o que ele nomeia como filtro e enquadramento (na verdade, Marcelo sugere aulas de fotografia, literalmente). “É função da escola e do educador permitir o contato com diferentes realidades para furar essa bolha”, acredita.

Violência escolar: o papel da escola

Ok, vamos partir do princípio: escola não é consultório. Mas entre essa constatação e a limitação do atendimento a reuniões de pais vai uma grande distância. As escolas têm, sim, um papel preventivo de grande importância.

Em primeiro lugar, admitir o tema como uma tarefa de todos, que precisa ser discutido às claras e sem preconceito — e, claro, sem expor casos individuais. Nenhuma escola está livre dos riscos — o que muda é a forma como são enfrentados os problemas. “Ambiente saudável é o que não estigmatiza”, diz Luciene Tognetta, do Gepem.

“Precisamos olhar para a agressividade, mas também para todos os que se sentem marginalizados, mesmo que não tenham razão. Se não conseguem se ver representados, vão se sentir marginalizados e aí começam a nutrir ódio por quem sente”, diz Luciene.

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Para a diretora Simone Tahan, da Parthenon Bom Clima, as escolas não podem ver o adolescente como se via. há 20 anos e precisam aprimorar a escuta. “São jovens altamente engajados, quando provocados. Argumentam, têm atuações. Em contrapartida, seus projetos de vida são muito imediatistas e lhes falta potência”, analisa.

O diálogo com a família é essencial nesse processo. Para Simone, os alunos mostram dificuldades com a vida cotidiana, o que é fruto de um misto paradoxal de superproteção e ausência. “Muitos são órfãos de pais vivos”, diz. Na sua visão, na falta de bons modelos, coerentes e constância nas relações parentais, os jovens também ficam muito vulneráveis a qualquer referência que o grupo eleja como ‘sabido’.

Na Parthenon Bom Clima, os espaços de diálogo com os jovens e com as famílias são muito estimulados, desde as séries iniciais. “Para qualquer situação de conflito, temos formas de escuta”, conta Simone Tahan. Existem rodas de conversa e outras estratégias de participação dos jovens para o debate de questões éticas e morais. Da mesma forma, existem encontros periódicos com os pais para o debate de questões educativas da infância e da adolescência, a partir de temas selecionados.

violência escolar

Na Parthenon Bom Clima, os espaços de diálogo com os jovens e famílias são estimulados desde as séries iniciais. “Para qualquer situação de conflito, temos formas de escuta”, conta a diretora pedagógica Simone Tahan (Foto: divulgação)

Qualquer que seja o caminho adotado pelas escolas, ele precisa ser coerente. “Não podem existir regras que funcionam só de vez em quando: todos precisam ter consciência de que o ambiente é seguro e, se isso estiver claro, estabelecem-se bases para o processo de desenvolvimento moral”, pontua a diretora.

Outro princípio fundamental é a escuta — não só de quem merece, e nem só quando acontece o conflito. “E escutar não é concordar com tudo”, diz Simone. “O olhar afetivo também envolve limites, o que é protetivo. A psicologia barata deixou a ideia de que crianças e jovens não podem ser frustrados. Essa geração não está exposta à frustração, e isso contribui para que fiquem à mercê da loucura que está no mundo”, finaliza Simone Tahan.

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