NOTÍCIA

Olhar pedagógico

Autor

Ana Gabriela Nascimento

Publicado em 12/05/2025

Cicatrizes da pandemia na infância

Cinco anos após o surgimento da Covid-19, danos ao desenvolvimento infantil ainda persistem. Contudo, educadores têm sido fundamentais ao notar em certas crianças possíveis atrasos

Pode parecer que foi ontem ou há décadas que uma realidade completamente desconhecida se apresentou: em março de 2020 era instaurada a pandemia mundial do coronavírus, afetando a vida de pessoas em todos os cantos do globo. Certamente temos lembranças nítidas daqueles primeiros dias de atividades presenciais suspensas e da ficha caindo aos poucos. Eles não têm. Bebês e crianças pequenas, tão imersos quanto nós naquela circunstância dura, não puderam entender bem, mas eles também foram afetados.

É o que revelam dados do estudo Pobreza multidimensional na infância e adolescência no Brasil 2017-2023, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). A taxa de crianças de oito anos não alfabetizadas saltou de 14% para 30% entre 2019 e 2023; 4 milhões de estudantes sofrem com atraso escolar; e 619 mil crianças e adolescentes não frequentam a escola.

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Parte desse quadro tem relação com o período da pandemia, em que escolas ficaram fechadas por quase dois anos, impactando especialmente a primeira infância. “Os pequenos perderam uma etapa crucial de transição para o ensino fundamental. Atividades como, por exemplo, sentar em roda, ficar em fila, conhecer letras e números e comer no refeitório, próprias do ensino infantil, são essenciais para preparar a criança para a nova etapa. Em 2022, muitos deles retornaram à escola no 1º ano e não conseguiram se situar naquele espaço, o que dificultou a aprendizagem”, explica Ronny Pires, professor de artes da rede municipal do Rio de Janeiro.

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Os pequenos perderam uma etapa crucial de transição para o ensino fundamental. O que dificultou a aprendizagem, avalia Ronny Pires, professor de artes da rede municipal do RJ (Foto: arquivo pessoal)

Aulas suspensas e prejuízos ao desenvolvimento

Não mais pracinha, não mais colo de vó e não mais a creche ou a escola. Durante o isolamento social — fundamental para frear o vírus —, os dias passavam longe de outras crianças e familiares com quem conversavam e brincavam semanas antes. Além disso, quem cuidava desses pequenos em casa, de repente, se tornou muito mais preocupado. Medo de adoecer, ansiedade com o emprego ou o desemprego, luto pela perda de gente querida: tudo parecia estranho para as crianças e elas nem imaginavam os prejuízos que aquele contexto traria para suas vidas.

Com dois meninos em casa, a pedagoga Karlita Silva logo precisou começar a ajudar o mais velho, Matheus, hoje com 10 anos, com as atividades remotas propostas pela escola particular. Para Pedro, o filho mais novo, que tinha apenas dois anos no anúncio da pandemia e estava no maternal, não havia essa possibilidade. “Foi um período bem desafiador, conciliando os cuidados com eles, o trabalho, a casa, o suporte para acessar as tarefas propostas pela professora. Precisávamos também conversar da melhor forma para que entendessem todas aquelas limitações de ficar em casa, usar máscara. Além disso, também inventávamos várias brincadeiras para entretê-los e apoiar no desenvolvimento. Não foi fácil”, conta a mãe.

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De acordo com ela, a escola foi rápida em organizar tarefas e estabelecer uma rotina de aulas para Matheus, que ela considera ter funcionado bem. Para Pedro, ainda muito pequeno, ela avaliou que não havia sentido mantê-lo em esquema remoto naquele momento.

A pesquisa O impacto da pandemia no desenvolvimento infantil e evidências de recomposição das aprendizagens, conduzida pelo Laboratório de Pesquisa em Oportunidades Educacionais (LaPOpE-UFRJ) em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, destaca: “Os déficits de aprendizado estimados em meses para linguagem e matemática, tendo o grupo de 2019 como referência, sugerem efeitos maiores para os grupos que tiveram menos oportunidades de vivenciar a pré-escola com atividades presenciais”. O estudo foi feito com alunos da rede pública municipal de Sobral, no Ceará, e reforça que sim, a suspensão das atividades presenciais em si teve efeito especialmente danoso nas crianças menores.

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Foto: Shutterstock

A falta de rotina e suas consequências

Muitos outros aspectos se somaram à ausência da escola. O estudo A pandemia da Covid-19 e os impactos no desenvolvimento e na aprendizagem das crianças: uma revisão sistemática da literatura, de Letícia da Silva Freitas e Noélia Rodrigues dos Santos, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), apontou alterações no sono, na alimentação, no peso e na imunidade dos pequenos, bem como mudanças comportamentais, por exemplo, irritabilidade, agitação e desânimo.

“A pandemia foi um fator ambiental de risco para o desenvolvimento infantil. O principal atraso que notei no consultório foi na linguagem: crianças que já deveriam estar falando ou apontando e não estavam. A falta de interação com mais pessoas e o uso de telas tiveram impacto especial nessa questão da comunicação”, explica Eliete Faria, neuropediatra, mestra em neurologia pela Unifesp e médica voluntária do Programa de Transtornos do Espectro Autista do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (Protea IPq-USP).

“A pandemia foi um fator ambiental de risco para o desenvolvimento infantil. O principal atraso que notei no consultório foi na linguagem”, diz a neuropediatra Eliete Faria (Foto: arquivo pessoal)

Retorno às aulas

Em 2022, no retorno às atividades escolares presenciais, novos desafios surgiram no caminho dos pequenos. Isso porque há dados do desenvolvimento infantil que as famílias custam a perceber sozinhas. “Na pandemia, os responsáveis estavam atravessados por diversas questões além de não terem informações suficientes para notar potenciais problemas. Sem o contato com professores aptos a identificar e comunicar dificuldades particulares tanto na parte motora quanto cognitiva e social, os alunos perderam muito”, comenta o professor Ronny, responsável pela sala de leitura no colégio onde atua.

Esse olhar específico dos profissionais de educação foi essencial no retorno à escola de Pedro, filho mais novo de Karlita, aos quatro anos de idade. Primeiro, indicaram a busca por um otorrinolaringologista para avaliar os incômodos auditivos do menino. Depois, notadas uma dificuldade de vínculo com mais de uma criança e uma sensibilidade maior, manifestada com choros longos, a escola orientou a visita ao pediatra e, após avaliações neurológicas, ficou constatado o transtorno do espectro autista nível 1.

O filho mais novo de Karlita Silva retornou à escola aos quatro anos; instituição indicou otorrinolaringologista e pediatra. “Se não fosse a escola ter sinalizado, eu não teria aberto os olhos” (Foto: arquivo pessoal)

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“Antes da pandemia, no maternal, ele não tinha dificuldades e, a princípio, associei aqueles choros ao apego que desenvolvemos em dois anos em casa. Se não fosse a escola ter sinalizado, eu não teria aberto os olhos para ver o que era”, comenta a pedagoga, que estabeleceu uma relação de confiança com o colégio, o qual acolhe e direciona as recomendações médicas.

A dúvida da mãe de Pedro foi a mesma de muitos cuidadores que chegaram ao consultório da doutora Eliete logo após o retorno às aulas. Na pandemia, muitas crianças passaram por um período de baixo estímulo sensorial, a barulhos, ao movimento nos brinquedos do parquinho e mesmo ao sol, por exemplo. “Foi comum os pais associarem déficits de desenvolvimento à pandemia, minimizando-os. Mas quanto antes avaliamos, melhor. Ainda que não se feche diagnóstico, é importante já iniciar estimulações como fonoterapia ou intervenção precoce com psicólogo, para melhorar a vida da criança”, explica a médica.

Recompor aprendizagens: projeto além da pandemia

Cinco anos depois, o impacto da pandemia na educação segue exigindo esforços contínuos e coordenados. Nesse contexto, o Pacto Nacional pela Recomposição das Aprendizagens, lançado no ano passado pelo governo federal, surge como uma estratégia para enfrentar os desafios impostos pelo fechamento das escolas tanto da Covid-19 quanto em outras emergências como as enchentes do Rio Grande do Sul. Criado para apoiar os estudantes que mais sofreram com a interrupção das atividades presenciais, tem como foco a recuperação das habilidades cognitivas e socioemocionais dos alunos.

“Muitos alunos ainda enfrentam dificuldades ocasionadas pela pandemia e faltam recursos para conseguirmos ajudá-los. Na nossa realidade escolar, felizmente, temos uma união muito forte: colegas dispostos a ajudar, gestão parceira, muito atenta e solidária. Posso dizer que enxergo a diferença que fazemos e é isso que me inspira a seguir”, conta o professor Ronny.

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