NOTÍCIA

Edição 308

Autor

Laura Rachid

Publicado em 17/12/2024

Psicologização da educação impõe ao professor demandas que vão além do seu papel

"Os pais da teoria do desenvolvimento são, em sua maioria, psicólogos, e essa perspectiva foi incorporada pela escola, sobrecarregando os professores", afirma o presidente do Conselho Nacional do Sesi, Fausto Augusto Junior. Os desafios sociais que influenciam a evasão escolar e a importância de políticas para a saúde mental nas escolas também são destaques nesta entrevista​

Nomeado este ano por Luiz Inácio Lula da Silva, o atual presidente do Conselho Nacional do Serviço Social da Indústria (Sesi) é um dos poucos docentes a ocupar este cargo na entidade, criada em 1946. Doutor e mestre em educação pela Faculdade de Educação da USP, e graduado em ciências sociais pela mesma universidade, Fausto Augusto Junior é professor há 16 anos na FIA Business School. Também leciona na Escola de Ciências do Trabalho do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), instituição na qual trabalhou por 28 anos, chegando ao cargo de diretor técnico. Ele já foi professor do estado de SP, lecionando geografia para o ensino fundamental.

Atualmente, o Sesi possui cerca de 450 escolas que contam com mais de 300 mil estudantes, sendo uma das maiores redes educacionais do país. Há ainda a Faculdade Sesi de Educação, localizada na cidade de SP, cuja inscrição e mensalidade são gratuitas. Nesta entrevista, realizada presencialmente, abordamos temas como saúde mental, educação inclusiva, valorização docente, evasão escolar, educação integral e, de um lado, o que é papel da escola, do outro, quais cargas ela não pode carregar sozinha. Confira alguns trechos.

 

Fausto Augusto Junior

Educação crítica, integral, é aquela cujo sujeito é incentivado a questionar. “Em todo o processo da aprendizagem, isso, para nós, é o mais importante”, diz Fausto Augusto Junior (Crédito: Everton Amaro/Sesi-SP)

Como avalia o papel e os limites da escola na saúde mental dos estudantes?

Gosto de pegar um pedaço da frase famosa do Paulo Freire e trabalhá-la: a educação não muda o mundo, mas o mundo não muda sem a educação. A questão da saúde mental não é um problema da escola. É um problema da sociedade, está nas crianças que chegam à escola, está com os professores que têm de lidar com uma nova realidade, está com os trabalhadores dos diversos setores, está com a população em geral que não tem uma política de saúde mental definida no nosso país. E a pandemia jogou isso na nossa cara de um jeito bastante relevante e estridente. As nossas instituições não estão preparadas para lidar com saúde mental.

Hoje, no INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), está crescendo o número de afastamentos por doenças mentais. Só que a maioria dos peritos que faz análise de afastamento tem dificuldade para compreender o que é afastamento mental, porque está acostumado com LER/Dort [lesão por esforço repetitivo], está acostumado com problema ortomolecular, com problema de voz. O perito sabe quanto tempo leva mais ou menos para uma recuperação de luxação de um osso. Isso já não acontece com a questão da saúde mental.

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O Sesi tem papel importante na educação, mas poucas pessoas sabem que somos a principal instituição no Brasil de saúde do trabalhador, temos uma área dedicada a isso, e a saúde mental é importante nessa nossa atuação. No Brasil, a discussão da saúde do trabalhador sempre passou pelo lado de proteção, EPI (equipamento de proteção individual) etc. Precisamos desenvolver políticas claras de prevenção de doenças relativas às questões mentais, [dialogar com] as dinâmicas das cidades, do trabalho, com o direito à desconexão — porque pessoas conectadas, muitas vezes, são demandadas o tempo todo pelo próprio trabalho. Entre os anos 90 e os anos 2000, era comum as pessoas se exercitarem, se levantarem da cadeira. Com saúde mental, também precisamos de momentos de descompressão. Nisso, a cultura é um espaço importante de descompressão, na qual o Sesi também tem atuação com grupos de teatro, coral, música.

Quando se foca esse problema na escola, destina-se muito tempo, num processo que chamo de psicologização da educação — todas as teorias que têm balizado a educação no Brasil, pelo menos nos últimos 50 anos, passam pela discussão das teorias do desenvolvimento. Os pais da teoria do desenvolvimento são, em sua maioria, psicólogos, e essa perspectiva foi incorporada pela escola, sobrecarregando os professores. Porque ele tem uma sala de 40 alunos e não será o psicólogo de todos. Essa demanda chegou há muito tempo ao professor. Ele nunca deu conta e adoeceu mentalmente.

Vamos precisar encontrar saídas para lidar com isso coletivamente. Precisamos entender que o professor não é indivíduo naquela escola. Ele é um grande sujeito chamado professor — do mesmo jeito que com uma criança de perfil do espectro autista, quem vai lidar com ela não é o professor, e sim a sala de aula, a escola. Temos de ter um espaço escolar que no mínimo não aumente a taxa de adoecimento presente na sociedade em geral.

Estamos agora no debate de proibir ou não o celular dentro da escola. Analiso que a escola precisa ser um espaço que de alguma forma controle algumas coisas que por algum motivo atrapalham o aprendizado. Ninguém pode fumar dentro da escola, já pôde e nós passamos a proibir. Podem dizer, sobre liberdade individual, que o carro é seu, porém, é preciso usar cinto de segurança. O debate do celular passa por isso. Isso significa que vamos de alguma forma regular seu uso; não é proibir.

Diante da falta de interesse dos jovens pela profissão docente e pensando também nos que hoje a exercem, como valorizar a carreira do(a) professor(a) e quais políticas públicas devem ser implantadas no país?

A gente precisa valorizar socialmente. A desvalorização da carreira não é simplesmente uma decisão. É um processo. O professor foi perdendo espaço social por vários motivos; recentemente, vemos uma desvalorização da própria educação. Temos de olhar com atenção as eleições que aconteceram e notarmos que a educação vai deixando de ser pauta. Por mais que exista um bom discurso para a educação, temos vários pontos que mostram sua desvalorização. É óbvio que nós temos uma disfunção salarial; não é possível que o professor seja o profissional de nível superior que menos ganha no Estado brasileiro. Temos problema de financiamento e no número de professores. Objetivamente, não é possível que a diferença de um salário de um professor para um juiz possa chegar a 10 vezes. Não dá.

A outra questão é que precisamos pensar nas condições do trabalho docente. O professor não adoece porque quer, ele adoece porque tem muitas funções que foram sendo delegadas a ele. No Sesi estamos fazendo uma discussão importante de introduzir a inteligência artificial dentro da educação. Primeira pergunta: o que é isso e para o quê? Professor precisa passar mais tempo do seu horário em sala de aula e preparando atividades pedagógicas. O pedagógico tem de estar no miolo da sua atividade. Final de bimestre e semestre, o professor está preenchendo boletim, relatório de cada aluno. Precisamos modificar essas coisas. Claro que essa parte burocrática é importante para a gestão, mas há uma série de tarefas que pode ser automatizada e a inteligência artificial pode ajudar.

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Vocês [revista Educação] são uma exceção na nossa imprensa, porque quase todos os jornais possuem, hoje, um setor de economia, um de política, outro de cotidiano com esporte e segurança pública, e uma coluninha de saúde. Quem fala de educação na nossa imprensa, de verdade? Exemplos como esse indicam que por mais que falem da importância da educação, no mundo real ela vem perdendo importância. Temos de atrair e valorizar os professores. Inclusive, estamos preocupados. Fizemos uma pesquisa pelo Observatório Sesi da Educação e, o Rio Grande do Sul, em uma década, terá apagão de professor. Ou seja, não teremos professor e professora em nossa sociedade para dar o impulso de que precisamos.

O que o Sesi tem feito para capacitar os jovens frente às novas funções oriundas da tecnologia e quais os limites da aproximação entre escola e emprego?

Há uma discussão antiga e que se torna uma bolha dentro da educação de que o Sistema S forma para o mundo do trabalho, na perspectiva de treinamento. Ao analisar o nosso currículo, nossos materiais diversos e adentrar uma escola, nota-se que não é exatamente assim. Trabalhamos a formação de um sujeito que seja capaz de pensar, que seja crítico. Falamos de alguém [estudante] que precisa lidar com transformações que aceleraram rapidamente, com as novas linguagens e, ao mesmo tempo, conseguir vincular teoria e prática. De alguma forma isso está dentro da discussão pedagógica do Sesi. A base é a metodologia Steam (ciência, tecnologia, engenharia, artes e matemática), mas por dentro dela trabalhamos a discussão tecnológica desde cedo: no fundamental 2 a criança já tem aula de robótica e programação e são atividades que não estão desvinculadas do currículo geral.

O Sesi, inclusive, já ganhou vários prêmios nos torneios internacionais de robótica. Mas, além da robótica, temos iniciação científica, em que vários estudantes do ensino médio estão desenvolvendo produtos, e produzindo conhecimento. Um dos casos mais famosos é de uma menina do Rio Grande do Sul que desenvolveu um composto para o ‘boa noite, Cinderela’, o qual já tem uma empresa transformando em copo. Isso é pesquisa aplicada e pesquisa de ensino médio. Temos na Bahia vários níveis de pesquisa que começam embrionários, entre ensino fundamental e médio, e que de alguma forma entram na relação entre conhecimento e indústria. Mas não é só. Como olhamos esse sujeito de forma integral, estamos formando figuras que serão gestores, políticos, engenheiros, temos de tudo. O atual prefeito de Rio Grande da Serra, última cidade do ABC, SP, é ex-aluno Sesi.

O país já não tem mais o bônus demográfico (mais da metade da população jovem) e vive um aumento da população idosa. O que ainda dá para ser feito e qual o papel do setor educacional?

Temos mais de 10 milhões de jovens entre 18 e 29 anos que não concluíram o ensino médio. Isso é inadmissível em um país com uma taxa de natalidade em torno de 1.7. Precisamos parar de perder esses jovens. Só aqui temos bastante trabalho. Políticas como o Pé-de-Meia, voltado à permanência estudantil, são muito importantes, mas sozinhas não dão conta. Mas, se não tomarmos cuidado, a gente acha que é tudo a mesma coisa, e não é. Um jovem entre 18 anos e 29 anos está, na verdade, no período de escolarização. Ele poderia estar numa universidade. Então o trabalho com ele é de maneira ‘muito mais escolar’. Quando as faixas etárias avançam, adentramos a discussão da educação ao longo da vida, que é outro modelo, outra metodologia, porque os sujeitos são outros — normalmente possuem filhos, estão com família constituída; o tempo desse sujeito já é limitado, tem de dialogar entre o mundo produtivo de maneira muito efetiva.

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Digo que temos estudantes que trabalham e trabalhadores que estudam e precisamos diferenciar essas duas coisas. Quando o foco é o estudante, ou seja, a permanência dele na escola, o trabalho para ele é uma complementação desse processo. Por exemplo, não faz sentido introduzir o ensino a distância (EAD) para um jovem porque o processo de educação é muito mais do que o conteúdo, a escola é muito mais do que o conteúdo escolar, ela é o espaço escolar, a comunidade escolar. E o estudante está construindo sua personalidade, individualidade e de sua coletividade.

Já quando ele vai para o mundo do trabalho, por volta dos 23 anos, adentra o universo em que o EAD faz mais sentido porque a prioridade é o trabalho e será necessário acomodar a escola dentro dos espaços que ele tem de vida, como cuidar dos filhos, trabalhar, minimamente transitar pela cidade — em grandes cidades sabemos o absurdo que é.

Na educação, há cuidados para não ‘ferir sua essência’, o que pode e o que não pode. Ao mesmo tempo, os dados mostram problemáticas que devem ser enfrentadas. 

A Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) faz sistematicamente um encarte sobre por que os jovens não estão na escola. A grande maioria dos jovens não está na escola porque quer e, sim, porque não consegue estar na escola. Uma parte está trabalhando, outra procurando emprego. No caso das meninas, há a economia de cuidados do filho, irmãos, e é ela que agora tem de cuidar do pai, avós ou bisavós. Uma sociedade que envelhece, que não tem política pública de cuidado, todo esse cuidado recai sobre a mulher. Qual mulher? Normalmente, aquela que fica em casa, ou seja, aquela que está estudando e que precisa largar a escola para ficar em casa. Então temos dilemas sociais que não é a escola que vai resolver.

Os dados de evasão escolar mostram que toda vez que a taxa de desemprego cai, a evasão cai, porque, normalmente, o chefe ou a chefe de família consegue manter o seu filho na escola. Toda vez que a taxa de desemprego cresce, a evasão cresce. Por quê? Porque aí esse jovem precisa se lançar no mercado de trabalho para minimamente equilibrar o orçamento da casa — o qual é um problema sério no Brasil até do ponto de vista estatístico: normalmente, analisamos a renda média a partir do indivíduo. Mas, no mundo real, em especial nas periferias, a renda nunca é assim. A renda é sempre familiar, quer dizer, um é aposentado, outro tem trabalho formal, outro trabalha informalmente, isso vai compondo a renda. Quanto maior a renda do chefe de família ou da chefe de família, mais o jovem consegue ficar na escola. Lidar com isso é fazer uma discussão séria sobre evasão escolar. A culpa não é só da escola — a escola tem culpa, mas precisamos entender que isso faz parte de uma discussão muito maior.

De que forma o projeto de robótica do Sesi contribui para a formação dos estudantes?

É uma das políticas mais estruturadas e mais avançadas de ensino tecnológico. Primeiro, o estudante começa logo cedo com os robôs de Lego — um projeto muito bonito e bem feito. Segundo, é inserido um conjunto enorme de conhecimento que o estudante vai tendo por dentro do currículo, o que dá sentido a ele: ninguém faz programação se não entende matemática, ninguém faz minimamente um desenho de um robô se não entende de física. E não para no robô. O projeto é um grande trabalho coletivo, de equipes, e cada qual tem um papel que vai do design até relações públicas. O concurso de robô é só o meio pelo qual o estudante acessa um conjunto grande de conhecimento — esse conhecimento passa a ter sentido.

Quando os alunos começam a ter noções mínimas de programação, entendem que por trás do que aparece no celular existe uma programação, um comando lógico, um conjunto enorme de conhecimentos matemáticos. A discussão do que de fato é a educação crítica, integral, é o sujeito não naturalizar a vida dele. É ele aprender a fazer perguntas, questionar o que está por trás de algo, por que a sociedade é desse jeito, o motivo de o carro funcionar daquele jeito. Isso para nós é o mais importante.

Como as escolas da rede Sesi atuam para a inclusão de estudantes com necessidades educacionais específicas? Há formação desses profissionais? São Paulo, por exemplo, possui o professor facilitador e o que personaliza para pessoas surdas.

Temos um referencial. O Sesi é um sistema federado, cada estado tem a sua política própria, vamos dizer assim, e ela é organizada a partir de grandes linhas que o nacional estabelece. Há uma referência muito importante com a educação inclusiva que passa, primeiro, pela teoria. Acreditar numa escola inclusiva é transcender a ideia de caridade, de que vai receber um aluno que sabe menos. Não é isso. Mas sim trazer um sujeito que deve ser integrado naquela comunidade escolar, e cada qual trará suas dificuldades, como qualquer um de nós. Quando se entendem essas dificuldades é que se organiza a estrutura e se pensa em um mediador ou coordenador para a realização da ponte com o professor que está na sala de aula. Deficiente auditivo tende a necessitar de um professor específico. Mas há casos em que podemos ter sistemas mistos. Não existe um padrão, mas uma referência, porque o que precisamos é garantir a inclusão desse estudante.

O professor precisa ser formado para lidar com essas crianças, mas precisamos formar a comunidade, e isso não é fácil. É bonito dizer, mas ao adentrar a sala de aula, nos grupos de WhatsApp das famílias, as situações não são simples, elas precisam ser trabalhadas e comunicadas. As famílias gostam da educação inclusiva desde que não seja na sala de seu filho. O trabalho de formar a comunidade escolar precisa ser feito o tempo inteiro. Hoje, o maior problema é a não inclusão da maior parte das redes educacionais no Brasil, tanto escolas públicas quanto escolas privadas. O que faz, muitas vezes, com que o Sesi acabe sendo sobrecarregado; temos uma taxa de estudantes de inclusão muito maior que a média da escola pública e maior ainda que a escola privada. Precisamos avançar: a escola pública tem de assumir o seu papel e a escola privada precisa respeitar a lei de não negar matrícula. Não é fácil, e tem a ver com os passos civilizatórios da sociedade.

Estamos discutindo como incluir produtivamente os nossos alunos que estão se formando no Sesi e Senai e precisam ser incluídos na sociedade do trabalho. Como fazer isso quando metade das cotas para deficientes, no Brasil, não são ocupadas? Quais políticas deveríamos implementar para que essas cotas sejam ocupadas? Estamos discutindo isso agora com o governo, Sesi, Senai e instituições que pensam a inclusão. Precisamos encontrar um caminho e criar um processo.

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