NOTÍCIA
Numa sociedade de desigualdades, trazer esse conceito requer ampla compreensão: não se trata apenas da ausência de guerra e sim da busca de convivências harmônicas
Publicado em 23/10/2023
A cultura de paz não é um estado permanente, mas um processo, que se constrói no dia a dia, na relação com o outro, numa sociedade equitativa e com igualdade de direitos. A ONU a define como “um conjunto de valores, atitudes, tradições, comportamentos e estilos de vida, baseados no respeito pleno à vida e na promoção de liberdades fundamentais, propiciando o fomento da paz entre as pessoas, os grupos e as nações, podendo assumir-se como estratégia política para transformação da realidade social”.
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Educação para a promoção da cultura de paz
O primeiro passo para compreender a noção de cultura de paz é a desconstrução da ideia romantizada do que é paz. Em qualquer sociedade democrática e múltipla, como a nossa, haverá conflito, pois ele é inerente às relações humanas. Pessoas possuem visões e necessidades diferentes e é essa diferença que nos caracteriza enquanto humanos. Não há sociedade sem conflitos. Se existisse, as diferenças seriam eliminadas. O conflito é a expressão da nossa diversidade e é positivo, nos leva para a frente, quando passamos a respeitar direitos de outras pessoas. Carolina Cassiano, facilitadora de comunicação não violenta (CNV) e de autocompaixão, além de especialista em gestão de pessoas pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP), explica que paz não é a ausência de conflito, de incômodo, de desconforto, tampouco de emoções desagradáveis, como raiva, medo, tristeza, ansiedade, entre outras.
“A gente precisa se reeducar para entender que os incômodos são sábios e que não devem ser evitados, pois contam que há algo importante na relação, que precisa ser visto e cuidado”, esclarece Carolina.
Carolina conta que não é atacando o sintoma, como uma expressão de raiva, por exemplo, que se constrói a paz. Deve-se ir na raiz para entender a razão do incômodo, do sentimento e de comportamentos desafiadores, pois, do contrário, toda solução que se tente construir será um paliativo com baixa sustentabilidade.
A comunicação não violenta e a cultura de paz compartilham dos mesmos valores e intenções, portanto, a CNV é um caminho concreto para viver a cultura de paz na prática. Nos cursos, palestras e programas que realiza em escolas, Carolina Cassiano, que também atua como professora de mindfulness e autocompaixão nos EUA, nota a potência desse trabalho no ambiente escolar, quando abre espaço para que todos sejam vistos, ouvidos e que possam falar de suas dores e medos, construindo um ambiente psicologicamente seguro. “Um dos grandes desafios é formar as pessoas que ajudam a sustentar essa visão no dia a dia e o professor tem um papel essencial, assim como toda a direção da escola”, afirma.
Professores e equipes de coordenação e direção devem receber apoio para desenvolver sua própria habilidade em CNV, porque, para espalhá-la entre os estudantes e toda a comunidade escolar, não basta ensinar a técnica, é preciso sustentá-la, com suas próprias posturas e novos rituais. Espaços de mediação, salas de empatia para que as pessoas sejam ouvidas, construção de momentos de check-in (pausas para compreensão dos próprios sentimentos em relação a um determinado episódio) e rodas de conversas são exemplos de novos rituais na escola visando uma cultura de paz.
“Mudar a escola é impactar um sistema e isso requer cuidar da formação das pessoas que sustentam esse sistema, assim como cuidar dos processos que mantêm o sistema vivo”, orienta Carolina.
Existem múltiplas formas, metodologias e abordagens que contribuem com o processo de pensar a cultura de paz na escola, chamada de educação para a paz. São utilizados processos pedagógicos estruturados para alcançar objetivos: qualificação das convivências, mediação dos conflitos, valorização dos valores humanos e direitos humanos. Algumas abordagens têm crescido no Brasil, como a CNV, as práticas restaurativas, a terapia comunitária integrativa, todas adaptadas para o campo educacional. Investir no autocuidado, seja com o apoio da escola ou pelos próprios meios, é tarefa do professor quando se quer educar para a paz.
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Nei Alberto Salles Filho, mestre e doutor em educação e coordenador do Núcleo de Educação para a Paz da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), PR, observou em mais de 10 anos na luta contra o bullying e outras formas de violência que, além da prevenção, qualificar as convivências escolares entre estudantes, estudantes e professores, professores e equipe de gestão é fundamental para melhorar o processo de ensino e aprendizagem.
“Tudo o que impede um melhor desenvolvimento do ser humano, nas suas capacidades, nos seus sonhos, nas suas disposições, ou seja, tudo o que impede o crescimento da criança e do adolescente, é violência. Seja a violência direta, como bullying, agressão, ou mesmo violências indiretas e estruturais, como a pobreza, a desigualdade social etc.”, aponta Nei.
Michele Lupepsa, gestora da Escola Kamal Tebcherani, da rede municipal de Ponta Grossa, num trabalho conjunto com a coordenação pedagógica e com apoio da rede municipal de ensino, desenvolve um trabalho de formação de professores para implantar a ideia de uma escola de paz. No currículo da escola há a disciplina de formação humana, em que são trabalhados os pilares da cultura de paz.“Estamos atentos a todas as problemáticas da escola: bullying, desrespeito, violências, etc., mas enxergamos que tais conflitos são oportunidades para desenvolvermos valores, diálogo e a comunicação não violenta”, esclarece Michele.
Como projetos que buscam desenvolver a cultura de paz na escola, há o Relaxamento, trabalho voltado para os valores e o autoconhecimento. O Conselho Mirim é um projeto pioneiro cujas crianças ajudam a resolver os conflitos do dia a dia da escola. Há também o Conselho Escolar, com a participação das famílias de toda a comunidade, e um projeto de Residência Pedagógica, em que acadêmicas do curso de pedagogia desenvolvem um trabalho na escola para desenvolvimento global do cidadão, ensinando às crianças que suas ações têm consequências no mundo.
Michele aponta o imediatismo que as famílias cobram como uma dificuldade no trabalho em busca de uma cultura de paz na escola. O exemplo recente dos ataques às escolas, em que se cobrou segurança, portões, muros e grades, para que o problema fosse solucionado é um exemplo da cobrança por uma resolução imediata.
“Não adianta erguer muros e não trabalhar a paz dentro da escola. Que as famílias entendam que não existe uma solução imediata no combate à violência, é uma construção, um processo, que precisa da colaboração de toda a comunidade escolar: gestão, professores, pais, alunos e funcionários”, afirma Michele.
Ao trabalhar a criança de forma global, a escola precisa da participação da família, que muitas vezes é o berço da violência. Assim, os professores precisam, cada vez mais, se capacitar para tornar a escola um lugar de vivência de paz, estabelecer vínculos com os alunos e família, abrindo portas para que a educação flua como um todo, em todos os âmbitos. Reconhecer que as crianças são seres humanos integrais, com coração, consciência e emoção e que com elas, na sala de aula, está o tiroteio que presenciaram no bairro, a mãe que foi agredida na noite anterior, ou o pai embriagado.
“Quando se trabalha a cultura de paz para desenvolver o ser humano de forma global, para que compreenda que suas ações têm consequências para si próprio e para o meio em que vive, ele passa a pensar antes de fazer o bullying e de agir por meio de uma comunicação violenta”, finaliza Michele Lupepsa.
*A lei 13.663/2018 determina que todos os estabelecimentos de ensino têm como incumbência promover medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de violência, “especialmente a intimidação sistemática (bullying)” e ainda estabelecer ações destinadas a promover a cultura de paz nas escolas