Alexandre Le Voci Sayad é jornalista, educador e escritor. Mestre em inteligência artificial e ética pela PUC-SP e apresentador do Idade Mídia (Canal Futura)
Publicado em 19/09/2022
A tolerância deve começar na escola. A educação é o único sistema de “correção” da própria cultura do cancelamento
Que o castigo o irrite e o estimule mais do que o crime que o impeliu. Se o orgulho o fez cometer um crime, que seja ferido, que a punição o revolte. As penas infamantes são eficazes porque se baseiam na vaidade que estava na raiz do crime.” As palavras de Michel Foucault (1926-1984), filósofo e incorrigível ativista francês, ecoam atuais. Vigiar e punir (1975), de onde o trecho acima foi retirado, é uma obra de referência em diversos campos hoje, inclusive no direito.
O tratado de Foucault se apresenta ainda mais contemporâneo em tempos de “cultura do cancelamento”. Nesse tipo de julgamento moral, com um simples clique, isola-se alguém no mundo digital que teria se comportado de maneira não adequada – seja na vida pessoal ou profissional. A punição, que segue na vida offline, baseada em princípios da política de um contrato social rígido e sem espaços de respiro, resulta sempre em demissão, julgamento pessoal e ostracismo. O papel do Estado, em vigiar e punir, se torna uma espécie de mantra pessoal.
A cultura do cancelamento faz parte também do ambiente escolar, e, em muitos casos, se confunde com práticas de bullying numa mistura turva e confusa de comportamentos. Isso porque, geralmente, o motivo é torpe ou, simplesmente, é boato. A estudante que “ficou” com o namorado da amiga segue muitas vezes o mesmo caminho amargo; vive uma versão repaginada (mais rápida, cruel e de impacto maior) do isolamento social e difamação que uma estudante sofreria na escola em épocas pré-internet.
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Mas o boca a boca não existe mais. A cultura do cancelamento traz em si um elemento fundamental característico das mídias digitais, que é fazer com que a disseminação da informação tome proporções gigantescas em segundos. Pode-se assim desmoralizar e destruir uma vida e, não raro, isso termina de maneira trágica. Por isso, é um assunto que deve ser abordado pela escola, sobretudo em práticas de educação midiática, considerando os seguintes pontos (dentre outros):
• A cultura do cancelamento não abre espaço para o debate de ideias e tolerância. De forma geral é unilateral e reforça o comportamento de “cardumes” estimulados pelas redes sociais – quando a opinião da maioria cala as vozes da minoria;
• Muitas vezes a ação é guiada pela emoção do momento, e não pela razão. O impulso em se fazer justiça é mais presente do que as premissas para o pensamento crítico diante da situação;
• Um erro de julgamento é possível e, quando acontece, não há espaço, nem intenção, de se voltar atrás. A autocrítica é limitada e a velocidade da informação, sobretudo no ambiente digital, faz com que a correção da ação aconteça sempre em menor proporção e impacto;
• A ideia de maniqueísmo (o bem contra o mal) se sobrepõe à realidade de que o ser humano é falível. A compreensão das nuances de comportamento e a falibilidade típicas do comportamento humano têm menos apelo emocional do que as atitudes extremas;
• As “penas infamantes”, como se referiu Foucault, têm efeitos moralizantes, e muitas vezes não conhecem os limites. Em alguns casos, doses de sadismo reforçam a noção de “justiça feita com as próprias mãos” e levam o cancelamento ao extremo. O caminho da cultura do cancelamento para o linchamento público é curto, convidativo e extremamente fácil de ser trilhado.
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Entretanto, a questão principal sobre a cultura do cancelamento diz respeito à falta de escuta. Ninguém deseja ou dá espaço à voz do acusado. Ele raramente é escutado, pois o julgamento já aconteceu no calor dos fatos; é mais simples, e prazeroso, punir a tentar compreender.
Nesse ponto, vale lembrar que Foucault escreveu Vigiar e punir baseado em escuta, distribuiu questionários aos presos de penitenciárias durante escândalos que eclodiam na França à época. Queria compreender como eles eram tratados dentro das prisões e se as penas tinham poder de “correção”.
É importante ressaltar, também, que há crimes, e crimes. Racismo, estupro, roubo, violência são casos de polícia. A questão da problemática da cultura do cancelamento vai em outro sentido: a violência moral. Quem cancela e persegue, em muitos casos, realiza um julgamento pessoal, unilateral, imediato, emocional e moral – assim, se vê no direito de punir. O acolhimento e a tolerância são o oposto do cancelamento e também as bases para a construção de uma cultura de paz na escola.
A promoção de ambientes e dispositivos de escuta, no locus democrático da escola, são fundamentais para se evitar a cultura do cancelamento. Cabe a todos os funcionários, dos inspetores aos alunos e professores até a diretoria, ficarem atentos aos casos que, na maioria das vezes, se iniciam em grupos de WhatsApp, ou redes sociais, de maneira silenciosa, e tomam proporções gigantescas em pouquíssimo tempo. Se desejamos a tolerância no Brasil, ela deve começar justamente na escola, na compreensão de que a educação é o único sistema de “correção” da própria cultura do cancelamento. E no caso de crime, num regime republicano e democrático, esse dever é do Estado.