É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional
Publicado em 24/08/2022
“É um Estado que é obviamente anti-intelectual, porque as ideias ameaçam”
Bernardo Carvalho, em seu sexto livro, mergulha em uma investigação sobre a morte misteriosa de um antropólogo estadunidense, Buell Quain, que aos 27 anos, em 1939, supostamente se suicida após um período em que esteve em uma aldeia indígena encravada no Tocantins, Brasil, quando misteriosamente regressava de seus estudos.
Segundo relatos – é o que resta na narrativa e na busca do narrado -, Quain, no meio da floresta, sem motivos claros ou aparentes, retalhou seu próprio corpo e se enforcou na frente de dois indígenas assustados e horrorizados que o acompanhavam em sua volta para a cidade de Carolina.
Munido de poucas informações, muitas delas imprecisas e conflituosas, Bernardo tece um romance utilizando o trágico destino do antropólogo como base, entrelaçando história e ficção na tentativa de compreender a morte de Buell Quain, o Brasil e a si mesmo.
Nas palavras do professor Alcir Pécora sobre o livro Nove noites, de Bernardo Carvalho: “ao contrário, tudo é ou se torna suspeito; todas as personagens aparentam saber mais do que dizem; toda a investigação parece estar fadada a não descobrir e mesmo determinada a deliberadamente encobrir”.
Bernardo Carvalho corrobora a leitura do crítico literário, “o livro é cheio de armadilhas formais, armadilhas narrativas. E isso tem a ver com a literatura que eu faço normalmente e o tipo de literatura que me atrai também”. E a narrativa respalda: “Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui (…) A verdade está perdida entre todas as contradições e os disparates. Quando vier à procura do que o passado enterrou, é preciso saber que estará às portas de uma terra em que a memória não pode ser exumada, pois o segredo, sendo o único bem que se leva para o túmulo, é também a única herança que se deixa aos que ficam, como você e eu, à espera de um sentido”.
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Nos dispositivos labirínticos de que se compõe a narrativa, o leitor atônito demora a entender o que é ficção e o que é realidade na morte do antropólogo, embora dela tenha notícia desde o início da história, quando o narrador Manoel Perna anuncia que “o antropólogo americano Buell Quain, meu amigo, morreu na noite de 2 de agosto de 1939, aos vinte e sete anos. Que se matou sem explicações aparentes, num ato intempestivo e de uma violência assustadora”.
É verdade que talvez seria ir longe demais na leitura do livro sugerir que o antropólogo tenha sido assassinado, e sua morte, pouco esclarecida à época, houvesse provocado entre etnólogos discussões e desconfianças por conta da obscuridade e da violência aterradora do caso.
Sabe-se, porém, que o Brasil é um sítio perigoso para antropólogos, etnólogos, indigenistas, ativistas ambientais e políticos, sobretudo quando eles se embrenham nos confins do país. Muitas mortes foram anunciadas e outras tantas executadas.
Em entrevista sobre o livro, Bernardo Carvalho sugere atualidade da narrativa. “É um Estado que é obviamente anti-intelectual, porque as ideias ameaçam, mas tem a ver com a própria sociedade brasileira. Eu nunca tinha percebido antes como os brasileiros podem ser racistas e xenófobos. O que esse antropólogo representa, para mim, é essa desconfiança quase fantasmagórica do outro como o inimigo.”
Para tratarmos dos casos mais recentes e midiáticos, na noite de 22 de dezembro de 1988, o ecologista Chico Mendes, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, no Acre, foi morto a tiros de espingarda, no quintal de sua casa. Em 12 de fevereiro de 2005 a missionária estadunidense Dorothy Mae Stang foi assassinada aos 73 anos, em Anapu, no Pará, com seis tiros, numa emboscada, em área do PDS (Projeto de Desenvolvimento Sustentável) no assentamento Esperança. Recentemente, em 5 de junho de 2022, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista e repórter fotográfico Dom Phillips desaparecem nas cercanias de Atalaia do Norte, oeste do estado do Amazonas, onde colhiam dados como parte de uma pesquisa para um livro sobre a preservação ambiental da floresta. Todos eles faziam um trabalho sério de preservação da floresta e dos indígenas, e foram mortos justamente por isso.
Esses assassinatos não são ficcionais, não são narrativas literárias como no misterioso Nove noites e, pior, fazem parte da absurda realidade estatística que assola este país. Foram presos os assassinos pequenos e alguns mandantes diretos do caso de Bruno e Dom, e outros foram investigados sem que conclusões mais claras sobre tudo o que cercou cada um dos crimes fossem devidamente reveladas e definidas.
Ultimamente, há, no país, uma escalada de ódio e uma sanha por morte. Frases figuradas e literais propõem resolver as desavenças a tiro. E há muitos que ansiavam pela deixa, como um grito de ordem, para levar a morte aos adversários políticos, ideológicos e a quem faz frente a interesses ilícitos na Floresta Amazônica. O estímulo à morte e os interesses escusos de gente pequena, média e graúda são defendidos com mãos sujas de sangue. Talvez os mandantes desses crimes sejam estes mesmos – o incentivo público, o ódio a algumas categorias profissionais e o apetite de quem pode mandar e matar, acobertados por mãos apequenadas que puxam o gatilho.
Ainda, haverá de se descobrir no emaranhado de investigações, os dedos graúdos que fazem – à distância – os gatilhos de morte e de ódio dispararem. Enquanto a descoberta não se aclara e os crimes não cessem, estaremos – como a investigação insolúvel e incômoda de Nove noites – com o peso dos mortos sobre os ombros dos vivos encurvando nossas cabeças.