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João Jonas Veiga Sobral

É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional

Publicado em 17/12/2021

O sol vai voltar amanhã

Apurar os ouvidos e os sentidos para as letras das canções é, sem dúvida, um exercício de inteligência e de sabedoria

Há alguns anos, vivemos mergulhados em mar de ódio. A nossa passionalidade de cada dia, à flor da pele, exala – entre nós – um odor fecundo de raiva e de revolta, às vezes gritadas, às vezes silenciadas.

O mito da nossa cordialidade, mal entendido, nos supõe – em leitura grossa – afáveis e festivos, embora o autor que cunhou o estigma nos revelasse passionais – seres que regulam os códigos sociais e morais pelo afeto.  O que, na leitura dele, nos empurra para a pessoalidade afetiva em todas as instâncias da vida – do público ao privado.

Sérgio Buarque, leitor do Brasil e pai do Chico, sugere que o coração é a mola mestra que modula as nossas relações e a pilastra onde se sustentam nossos valores. Segundo o pensador, o brasileiro age tangido pelas cordas do coração; e esse comboio de cordas não toca música pacífica, ele entoa ardor e passionalidade. Tomados pela emoção, agimos com amor e ódio. Dançamos conforme o som que nos bate no peito.

Para o crítico, o homem cordial é aquele avesso às regras que organizam a vida de forma impessoal, porque a cordialidade se impõe a qualquer sistema unificador. A cordialidade faz do brasileiro um bicho solto, contrário às normas sociais e racionais. A motivação dos afetos, em nós, propõe regular a vida pelo carinho e pela repulsa. Empunhamos bandeiras nas ruas a favor da família (nosso tipo e definição de família, é claro) e a favor da ditadura e da tortura, com uma voracidade assustadora. 


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Manifestações de ódio

Em tempos de redes sociais e de possiblidade de manifestação sem filtro e sem freio, acobertados pelo distanciamento digital, proferimos ódios à baciada. À espreita por qualquer deslize à direita e à esquerda, como urubus que esperam carniça, estamos prontos a atacar, a ofender, a incriminar, a executar qualquer desafeto político. Andamos às turras com o contraditório, como paladinos hipócritas da bondade. Ou como propunha o mineiro Guimarães Rosa: “Os outros têm uma espécie de cachorro farejador, dentro de cada um, eles mesmos não sabem. Isso feito um cachorro, que eles têm dentro deles, é que fareja, todo o tempo, se a gente por dentro da gente está mole, está sujo ou está ruim, ou errado… As pessoas, mesmas, não sabem. Mas, então, elas ficam assim com uma precisão de judiar com a gente…”

A tolerância e a intolerância andam de braços dados, enamoradas e enciumadas. E como tal, prontas para o amor e para ódio. A violência, em todas as suas formas, ganhou, por essas bandas, corpo e estrutura. Se validada pela lente ideológica encontra respaldo e anuência; se embaçados os óculos, é ela repudiada com paixão. Acostumados a essa discrepância, caminhamos fagueiros e festivos, como se a violência não estivesse arraigada ao sangue e à pele. Desde tempos coloniais, em que pelourinhos – onde se penduravam negros para o castigo – se misturavam à paisagem repletas de casarios elegantes, palacetes e igrejas, a dicotômica tolerância molda nossa arquitetura afetiva. O racismo, a homofobia, o feminicídio, o ódio à pobreza e o abismo da nossa diferença social se escamoteiam no nosso suposto caráter carnavalesco e agregador.

Mensagens nas canções

Caetano Veloso, em parceria com Gil, em Haiti, denuncia “…a fila de soldados, quase todos pretos/Dando porrada na nuca de malandros pretos/De ladrões mulatos e outros quase brancos/Tratados como pretos/Só pra mostrar aos outros quase pretos/(E são quase todos pretos)/Como é que pretos, pobres e mulatos/E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados”. Renato Russo engrossa e emenda em Que país é este?: “Terceiro Mundo se for piada no exterior/Mas o Brasil vai ficar rico/Vamos faturar um milhão/Quando vendermos todas as almas/Dos nossos índios num leilão”. Os cantores baianos irmanados ao carioca entoam didaticamente a nossa dissonância distraída, diante de mortes de indígenas, de negros e de pobres.

Talvez devêssemos dar mais atenção às canções que vão na contramão do ódio e aliar nelas forma e conteúdo para compreender o que o gênero escolhido disfarça ou ironiza. Se o rock de Podres Poderes nos leva à dança, pode também nos levar à indignação; se o som do rap de Haiti instiga o corpo, é necessário que incomode a mente. Se o rock de Renato Russo traz um som nervoso, pode também denunciar a indecência. Há muito, as canções brasileiras deram voz aos violentados e violados (embora haja canções que abracem o ódio tranquilamente) e há muito também as boas parecem esquecidas, em tempos de músicas eletrônicas sacolejantes e dancinhas de TikTok.

Exercício de interpretação

Apurar os ouvidos e os sentidos para as letras das canções é, sem dúvida, um exercício de inteligência e de sabedoria. Muitas delas ainda são instrumentos pedagógicos e civilizadores que podem contribuir absolutamente para que nos vejamos no espelho roto das nossas contraditórias sociedade e saciedade.   Nelson Cavaquinho, por exemplo, em parceria com Elcio Soares, compôs, em Juízo final, um hino à compreensão do maniqueísmo brutal que nos assola: “É o Juízo Final, a história do bem e do mal/Quero ter olhos pra ver a maldade desaparecer/O amor será eterno novamente”. Se o cantor carioca não driblou de todo a tristeza com sua voz rasgada e seu dedilhar dissonante e forte, não jogou para escanteio a possibilidade de rea­vivar, em nós, alguma luz de amor nas trevas da maldade. 

Que consigamos – nas festas do ano que finda e nas promessas do que entra – resgatar as canções pacificadoras e prolongar em nós um tempo solar e duradouro que nos afaste das trevas, como propôs a Legião Urbana: “Mas é claro que o sol vai voltar amanhã/Mais uma vez, eu sei/Escuridão já vi pior, de endoidecer gente sã/Espera que o sol já vem”. 

 Bom final de ano e um recomeço, quiçá, promissor.

*João Jonas Veiga Sobral é escritor, professor de língua portuguesa e orientador educacional

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