NOTÍCIA
É preciso esclarecer que deficiência intelectual não é doença mental e nenhuma das duas condições incapacita a pessoa, alerta Flavio Gonzalez do Instituto Jô Clemente
Publicado em 08/02/2021
Por Flavio Gonzalez*: A redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deste ano trouxe, muito acertadamente, o tema “O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira”. A palavra estigma, que na sua etimologia significa sinal ou marca, se refere à identificação coletiva de um atributo individual, tomado socialmente como depreciativo, que diminui a pessoa estigmatizada, desacreditando-a, negando e desqualificando sua identidade, por ela apresentar um suposto “desvio” que contraria os padrões sociais. O estigma, portanto, é a negação da diversidade humana, uma vez que a considera uma indevida e indesejável exceção a normas.
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No caso da deficiência intelectual, assim como nas doenças mentais, ao longo da história, amparada por valores e crenças de cada tempo e lugar, a sociedade sempre buscou segregar esses grupos, retirando-os da convivência com a comunidade em geral. Isso deixou marcas profundas no imaginário coletivo, e está, ainda hoje, na raiz do capacitismo estrutural que inferioriza e invisibiliza as pessoas, e impedem a sua plena inclusão na sociedade.
Embora haja uma clara diferença entre deficiência e doença, ou seja, deficiência intelectual não é uma doença mental e vice-versa, apesar de até mesmo muitos profissionais confundirem essas condições, a sociedade sempre se referiu a este público, na verdade muito diverso, como incapaz, inferior ou inútil. Prova disso é que muitas expressões utilizadas como ofensas no cotidiano são justamente termos que em algum momento se referiram a pessoas com estas condições.
Palavras como, por exemplo, “louco”, “débil mental”, “retardado”, “cretino”, entre outras, fazem parte do repertório ofensivo de quase todos nós. Isto fortalece o estigma e o perpetua na coletividade, sem que, na maior parte das vezes, tenhamos consciência deste fato. São os chamados vieses inconscientes, traços culturais tão arraigados que se propagam quase que espontaneamente. Vale ressaltar que, sejam pessoas com deficiência intelectual ou doença mental, o estigma nasce de velhas crenças, há muito ultrapassadas, e nada há que justifique a manutenção desses rótulos sociais que nos impedem de ver quem nós somos, no grande espectro que caracteriza a nossa humanidade e a individualidade de cada um.
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Lembramos, ainda, que depressão, síndrome do pânico e outras condições de saúde mental, hoje tão presentes no nosso dia a dia, não nos permitem olhar para essas questões como se não nos dissessem respeito, como se fossem apenas do outro. O estigma, também aí, só agrava este cenário, pois neste caso recai não mais sobre um grupo, mas na verdade sobre a maioria, nesses nossos tempos, sobre todos nós.
A “nau dos insensatos”, uma espécie de embarcação mítica que carregava pessoas estigmatizadas pelos mares para que ficassem longe da sociedade, deu lugar, no mundo científico, aos manicômios e instituições fechadas, que foram palco de grandes horrores, inclusive no Brasil, isso sem demérito de profissionais dedicados que tentaram humanizar esses ambientes ao longo do tempo, sem muito sucesso. Por tudo isso, mais do que justo, é necessário e urgente, levar os jovens e a sociedade em geral a refletirem sobre este assunto, sobretudo no momento atual, em que vemos tentativas de retrocesso a instituições de segregação, seja no campo da educação, do emprego ou da saúde.
Mais do que pensar em como prevenir ou tratar as chamadas doenças mentais, é indispensável reafirmar a diversidade humana, a neurodiversidade e a firme oposição a qualquer prática excludente que venha a repetir os erros do passado.
Temos que construir uma sociedade para todos, na qual as diferenças individuais não apenas não são negadas, mas, pelo contrário, são celebradas como parte da riqueza humana, inerente a esse imenso ecossistema em que cada um de nós tem o seu lugar e o seu valor.
Temos, também, que garantir o acesso à informação para ampliar o entendimento e os apoios tanto para quem tenha deficiência intelectual quanto aos que vivem as doenças mentais em suas vidas, para finalmente banir do imaginário social esses estigmas que, além de em nada contribuírem com o avanço da sociedade, apenas revelam aspectos refratários de um processo civilizatório ainda em construção.
*Flavio Gonzalez é psicólogo e executivo de negócios sociais do Instituto Jô Clemente (antiga Apae de São Paulo).
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