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Januária Cristina Alves

É jornalista, educomunicadora, ganhou duas vezes o Jabuti e é membro da UNESCO MIL Alliance.

Publicado em 09/10/2020

E no princípio eram as redes…

É urgente entender de que modo nossos desejos e percepções estão sendo mobilizados e modulados por máquinas e corporações, e mais, as razões pelas quais estamos permitindo que isso aconteça

Nas últimas semanas foi difícil passar em branco diante do documentário O Dilema das Redes, disponível na Netflix. Jornalistas, sociólogos, advogados, economistas, educadores, todos viram e se puseram a opinar a respeito. Sob todos os pontos de vista, o filme foi esquadrinhado, gerando as mais diversas críticas e interpretações. Quem não viu, correu depressa para ver e não ficar de fora da discussão: afinal de contas, estamos todos enredados nesse imenso novelo sem ponta que as redes sociais se tornaram? E agora, como fazemos para desatar esse nó?


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Como todo dilema, talvez não exista uma resposta concreta, e muito menos uma solução. O que fazer para se resolver um dilema?

Talvez aprender a lidar com ele seja mais eficiente do que procurar respostas prontas (e únicas) para questões complexas e multifacetadas, que não se resolvem apenas com um like ou mesmo com uma avalanche de cliques. Dilemas, via de regra, são situações nas quais nenhuma resolução será satisfatória. Por isso, há que se considerar as diferentes variáveis que fazem parte dele, e buscar encaminhamentos para uma convivência possível entre opostos e, muitas vezes, entre situações antagônicas.

Numa síntese rápida, o que vemos no documentário de Jeff Orlowski são depoimentos de profissionais ligados às maiores empresas do Vale do Silício – Microsoft, Google, Facebook, Twitter – que relatam como criaram mecanismos de extração dos nossos dados, ferramentas de monitoramento dos nossos comportamentos, atitudes e desejos, além de revelarem como toda essa estrutura não apenas influencia a tomada de decisões em nossa vida privada e social, mas nos torna cada vez mais dependentes dela e sujeitos a um tipo de controle jamais imaginado. Ou melhor, ele foi sim imaginado e descrito como uma ficção por George Orwell, em sua obra mais famosa 1984.

Esses profissionais americanos – arrependidos de terem criado um “monstro” –  contam como o que era um projeto de redes de conexão entre pessoas para possibilitar interações, trocas de ideias e o exercício da liberdade de pensamento, se transformou num “grande irmão” – instrumento máximo de restrição da liberdade humana – em redes que nos prendem por meio de seus algoritmos e nos enredam numa história da qual estamos deixando de ser autores.

O documentário provocou tanta discussão menos pelo que revela, do que pelo dilema que expõe de maneira por vezes até pueril. Não é novidade para quem é usuário da internet e das redes sociais que tudo o que fazemos lá é visto, registrado, empacotado e usado como capital (a isso chama-se “capitalismo de vigilância”). As redes sociais estão inseridas num modelo de negócio bastante conhecido por todos: empresas vendem e consumidores compram. Nesse caso, o que se quer é coletar e vender os nossos dados, os nossos cliques, as nossas buscas na internet. E o que recebemos de volta, embalados como um pacote bastante atraente, são “sugestões” de produtos similares aos que compramos e gostamos, de amigos que pensam como nós, de ideias que reforçam o nosso viés de confirmação. E assim as redes nos enrolam e nos tornamos, para elas, um dos maiores experimentos humanos de que se tem notícia.

O Dilema das Redes toca numa questão fundamental para o ser humano e talvez aí esteja a razão pela qual ele tanto incomoda. A internet foi anunciada como o arauto da liberdade, da circulação democrática das ideias, do livre acesso à informação sem censura.

E o que vemos agora é o exercício de uma falsa liberdade, que nos leva a aceitar totalmente as regras das plataformas quando aceitamos o “sujeito aos termos e condições”, aquelas letras miúdas que nenhum de nós lê porque hoje em dia, acessar a internet é parte do nosso trabalho, das nossas pesquisas, da nossa convivência social (que nesses tempos de pandemia ficou ainda mais dependente das tecnologias).

Desde 2011 a internet foi considerada um direito básico do ser humano e, no entanto, atualmente, apenas 50% dos habitantes do planeta estão conectados a ela. Então, quando falamos de exercício de liberdade é preciso lembrar que metade dos que exercem esse direito básico, acabam influenciando e tomando decisões por todos, e que essa metade hoje é profundamente influenciada por meia dúzia de empresas americanas que, por meio de suas plataformas, sequestram a nossa atenção. A internet é o espelho do mundo em que vivemos e nos lembra de que estamos negociando a nossa liberdade de conduzir os nossos passos em troca do conforto de sermos conduzidos, mesmo que não saibamos bem para onde.


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Alguém escolhe por nós o que nem imaginamos querer. Por isso, é urgente entender de que modo os desejos, os afetos, a atenção e a percepção estão sendo mobilizados e modulados por essas máquinas e corporações, e mais, quais são as razões pelas quais estamos permitindo que isso aconteça.

Quando as pessoas se dão conta disso, bate a dor da consciência, o incômodo que faz perder o sono – “o que estou fazendo com o meu tempo, minha atenção, minhas escolhas?”  – e, mesmo no documentário, observamos a tentativa tão desesperada quando inútil de se resolver o dilema com “dicas”, com “10 passos para” ou com um simples desligar do celular ou do computador, e o retorno à natureza, que é de onde nunca deveríamos ter saído. Mas o dia começa e nos certificamos que abandonar a rede, no mundo em que vivemos, da forma como a sociedade está (injusta e desigualmente) organizada é inviável, e para fugirmos da exclusão –  econômica, social, educacional – é na rede que temos de seguir navegando.

Porém, antes de desistirmos e nos sentarmos paralisados no meio dessa encruzilhada, é bom lembrar, como nos revela o documentário – que as regras, os termos e condições, os algoritmos, são elaborados por seres humanos e que, pelo menos por enquanto, bots ainda não são capazes de escrever um bom romance. Portanto, sem querer ser otimista em demasia, ou cair na mesma armadilha do filme de achar que há soluções simples, é fundamental atentarmos para o fato de que foi a mesma sociedade na qual estamos inseridos quem produziu as redes sociais. O desvio “no meio do caminho” como relatam os entrevistados do documentário, não foi obra do mero acaso, mas do contexto em que vivemos.

As plataformas são intermediárias, nas pontas estamos nós e as nossas escolhas.

Não dá para responsabilizar apenas a indústria pelos vícios, pela ausência de reflexão, pelo automatismo a que estamos acostumados e acomodados. Todos somos responsáveis pelo uso que fazemos das tecnologias, os algoritmos não são a “mão invisível”, são as ferramentas que estamos utilizando para fazer a nossa história.


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Sendo assim, não há como não cair na conduta central quando se trata de dilemas: a educação sempre será o caminho. É preciso, mais do que nunca, educar para a reflexão, para a compreensão histórica dos fatos, para a seleção criteriosa das informações, para discriminar, desconfiar, para perguntar e questionar, especialmente o nosso modo de ser, pensar e organizar a sociedade em que vivemos. As redes sociais possuem uma arquitetura informacional – como todos os meios de comunicação – e é fundamental compreender não apenas como elas funcionam, mas o contexto no qual estão inseridas, o que são e a quem interessa mantê-las funcionando desse modo. A isso podemos chamar de educação para as redes, para que também nós possamos refletir sobre como podemos regular de maneira critica e consciente nossos usos e nossa maneira de se relacionar com e nelas.

Descortinar os dilemas éticos que estão na base do nosso sistema de comunicação pode ser um importante começo de conversa. Um pouco mais de filosofia, de ética, de história, de educação sobre as mídias nas escolas fará uma grande diferença na formação daqueles que, daqui a alguns anos, estarão programando os artefatos tecnológicos que serão disponibilizados para, quem sabe, nos ajudar a tornar esse mundo um lugar mais justo de se viver. É preciso que não nos esqueçamos que, se “no princípio eram as redes” e que elas são “assim na terra como na nuvem”, a escolha de comer ou não a maçã (Apple?!), será sempre do homem. E é imprescindível lembrar de que não há serpente que possa nos tirar esse direito.

Para saber mais:

Acesse o projeto Redes Cordiais para descobrir como se comportar de maneira saudável nas redes sociais: https://www.redescordiais.com.br

Januária Cristina Alves é mestre em Comunicação Social pela ECA/USP, jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira É pesquisadora do folclore brasileiro e da cultura popular. Também realiza palestras e oficinas para educadores, crianças e jovens sobre educação literária, alfabetização midiática e storytelling (www.entrepalavras.com.br).

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