NOTÍCIA
Neste artigo, o presidente da Associação Brasileira de Educação a Distância contextualiza a origem do ensino online no mundo
*Por Fredric Michael Litto
Toda verdade passa por três estágios. No primeiro, ela é ridicularizada. No segundo, é rejeitada com violência. No terceiro, é aceita como evidente por si própria”, Arthur Schopenhauer (1788-1860), filósofo alemão.
A disseminação de uma nova doença contagiosa está causando uma situação incomum e difícil para milhões de brasileiros, jovens e adultos, que estudam nos níveis obrigatórios (fundamental e médio), superior e continuado. Para diminuir o avanço do contágio, autoridades da saúde recomendam a imediata descontinuação de encontros presenciais em instituições de ensino. Para não prejudicar o andamento dos estudos, há entidades que optaram por usar a educação a distância (EAD) como solução para superar a barreira do distanciamento social exigido.
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A primeira geração de EAD ocorreu no início do século 19, quando cursos profissionalizantes e técnicos foram oferecidos na América do Norte, Europa e Brasil, usando material didático impresso, entregue pelos correios (meio pelo qual os alunos enviavam dúvidas e trabalhos acadêmicos). O programa pioneiro de EAD no ensino superior coube à Universidade de Londres, em 1858, atendendo estudantes em todo o império britânico da época (Austrália, África do Sul, Índia, Canadá, Reino Unido). Entre seus aprendizes mais célebres estavam Mahatma Gandhi, Nelpson Mandela e quatro ganhadores do Prêmio Nobel que obtiveram seus primeiros diplomas no Sistema Externo. Instituições norte-americanas, como a prestigiada Universidade de Chicago, lançaram EAD logo depois, favorecendo aqueles que moravam no vasto território interior do país.
As subsequentes gerações tecnológicas de EAD foram rádio, cinema, televisão (com vídeos), e agora a internet, estendendo acesso ao conhecimento e a certificação de competência acadêmica não apenas às massas vivendo em metrópoles, mas também aos milhões de indivíduos morando em grandes países, como o Brasil. A EAD igualmente contribui para incluir, democraticamente, os 14% da população brasileira com mobilidade reduzida e àqueles que optam pela educação domiciliar.
Típica do fator de inclusão representada pela EAD, a primeira universidade “aberta”, a Open University do Reino Unido (UKOU), teve início em 1969, representando a massificação de acesso ao conhecimento avançado, porque dispensa exame vestibular e exige dos candidatos a ingressar em seus rigorosos cursos apenas idade acima de 18 anos. Há, hoje, mais de 70 universidades abertas; a última a ser criada num país com população acima de 100 milhões de pessoas foi a Universidade Aberta do Brasil (UAB), implantada em 2006. Um modelo exemplar é a Indira Gandhi Distance University, da Índia, totalmente virtual, que atende atualmente 3,4 milhões de alunos. A EAD hoje faz parte da oferta acadêmica de muitas das mais importantes instituições globais de excelência acadêmica, como Oxford, Cambridge, Harvard, MIT, Stanford, Universidade da Califórnia, Berkeley e Los Angeles.
O Brasil foi um dos países mais destacados no uso de EAD na década de 1970, conhecido mundialmente pelos programas Telecurso (Fundação Roberto Marinho), Projeto SACI (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, do qual participei como consultor), e a TV Educativa do Maranhão, entre outros.
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No Brasil, muitas sucessões de alunos estudaram via aprendizagem a distância, notavelmente o sociólogo Florestan Fernandes (1920 – 1995), que concluiu o 2º grau pelo Artigo 99 (Madureza), a senadora Marina Silva (1958- ), que se formou no 2o grau pelo Telecurso 2000 e o deputado Vicentinho (1956- ), que também completou os estudos do 1º e 2ºg raus pelo Telecurso 2000.
A maior parte das pessoas supõe que EAD tem apenas uma estrutura de curso, seja de 15 minutos ou 15 semanas, o que é um equívoco, pois é possível aprender a distância usando internet e aplicativos de realidade virtual, simulações e animações produzidas por computer graphics, além do controle à distância de equipamentos científicos sofisticados localizados em outras cidades. Trata-se de enriquecer a aprendizagem que frequentemente se limita ao livro-texto e ao discurso do professor.
EAD também inclui acesso via web a acervos ricos de imagens, documentos históricos e livros digitalizados em bibliotecas e museus virtuais distantes. Há muita interação e colaboração virtual entre os alunos de EAD, incluindo “peer-assisted learning” [aprendizagem apoiada pelos pares]. Para quem estuda assuntos mais avançados, há MOOCs-Massive Open Online Courses [Cursos Abertos Online Massivos], totalmente automatizados e normalmente gratuitos, permitindo a participação de um grande número de estudantes cada vez que é oferecido (acima de 100.000 não é incomum).
Esta nova visão admite a combinação do presencial com a intermediação da tecnologia que a EAD oferece. Programas que incluem EAD podem variar as porcentagens de virtualidade, dependendo da natureza do conteúdo (cursos de saúde e engenharia com maiores exigências de presencialidade) e da maturidade acadêmica dos estudantes. Por ser principalmente assíncrona, a EAD permite ao aluno estudar “a qualquer hora, em qualquer lugar e na velocidade mais conveniente”. Possibilita ainda ao aprendiz empregar o dispositivo de que já disponha: BYOD (“Bring Your Own Device” – “Traga Seu Próprio Aparelho” – celular, computador…). Para alunos sem equipamento digital próprio, as escolas devem ter um sistema de distribuição manual, ou via correio, do material didático.
No caso do ensino násico, a educação a distância pode ser extremamente importante para alunos academicamente fortes, preparando-os para os rigores do ensino superior, e para alunos fracos, que podem seguir um programa remedial, de fortalecimento, a distância. Assim como ocorre com adultos, EAD não serve para todo mundo, porque exige motivação, disciplina e autonomia que vão além do ensino convencional. EAD pode ser considerada uma forma de ampliar o horário escolar do ensino básico presencial (predominantemente de apenas 4 horas), envolvendo os aprendizes em mais contato com conhecimentos novos.
Importa fazer uma comparação: ensino presencial é feito por um professor atuando sozinho numa sala com um grupo de alunos; o sucesso da aula depende inteiramente de sua eventual “inspiração” no dia. A EAD, por sua vez, é produzida por uma equipe de mais de 10 profissionais – o conteúdo é mais informativo e apresentado de forma mais burilada; a “inspiração” não é eventual – está embutida permanentemente no material didático.
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Tudo indica que o termo “educação a distância” desaparecerá num futuro próximo porque haverá uma saudável sobreposição de modalidades: quase todos os cursos hoje considerados “presenciais” terão elementos “não presenciais” ou “virtuais” … e muitos programas EAD terão, para aumentar a eficácia da aprendizagem, momentos presenciais, especialmente na área de saúde, na qual, embora possível haver simulações gravadas, é imprescindível o contato direto com o paciente, assim como o ambiente de um “teatro de operações cirúrgicas” fornece experiências dificilmente substituíveis.
Felizmente, não há ainda um “padrão dominante” de EAD (caso do automóvel, que sempre tem quatro rodas). Estamos ainda numa fase de experimentação didática que permitirá permutações numerosas à medida que nossas explorações de possibilidades, no cruzamento de atividades cognitivas e novas tecnologias, abram novos caminhos para aprendizagem produtiva. A qualidade da EAD praticada no Brasil hoje é satisfatória em relação ao presencial: os resultados do Enade [MEC] no período 2007-2012 revelaram que quem estudou a distância obteve notas mais altas do que quem estudou presencialmente; agora as médias são similares.
Os números atuais de universitários brasileiros são estes: estudantes matriculados em cursos presenciais, semipresenciais e a distância são 7.773.828. Alunos EAD são 1.320.025, ou 17% do total. Em 2019, houve mais novas matrículas em EAD do que em cursos presenciais. Esses dados falam por si. Econômica, conveniente, enriquecedora e inclusiva, a EAD, com milhares de educadores brasileiros já experientes com sua produção e operação é, sem dúvida, solução eficaz para reduzir os aspectos mais negativos de um distanciamento social obrigatório.
*Fredric Michael Litto é presidente da Associação Brasileira de Educação a Distância-ABED, Professor Emérito da ECA-USP e Membro da Academia Brasileira de Educação-ABE
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