NOTÍCIA

Edição 239

Um agasalho tingido de vermelho

José Sérgio Fonseca de Carvalho escreve carta a Maria Eduarda Alves da Conceição, jovem de 13 anos que morreu vítima de bala perdida dentro da própria escola no Rio de Janeiro

Publicado em 08/05/2017

por Redacao

Foto: Shutterstock

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Duda,
Acordo na manhã fria de sábado, 1o de abril. Penso que melhor seria se tudo isso fosse mentira. Mas não é.
Enquanto meus dedos teclam letras e palavras de indignação, a pá de um coveiro lança terra sobre seu corpo, cobrindo de dor e desesperança o olhar de sua mãe, a raiva de seu irmão, a revolta de seus professores. O que faremos com aquele agasalho, agora tingido de vermelho, que sua mãe guardou como último legado de sua breve passagem entre nós? Se não fôssemos covardes, nós o hastea­ríamos como a bandeira de sua escola, dele faríamos o grito de guerra de seu time, o símbolo de sua geração. Mas somos pequenos, Duda. Você bem o sabe, pois viu um país inteiro negociar sua dignidade política pela promessa de crescimento econômico que sequer foi cumprida.
Imagino você se levantando na manhã de sua última sexta-feira, esfregando os olhos e falando mole, como faz minha filha ao se levantar. Grito para você não sair de sua casa, não ir à escola, mas é inútil. Estamos separados no tempo e no espaço. E você, que gostava tanto de sua escola, não deixaria de ir só pelos gritos de um doido – como se suas palavras pudessem retroceder no tempo – pedindo que você não fosse. E ele só o faz agora que você já foi. Agora que você já se foi. Para sempre.
Se tivéssemos coragem, a partir de agora nosso time de voleibol jogaria só com cinco. Seu lugar de craque ficaria, assim, marcado. E sua ausência se faria presente. A gente levantaria a bola para você cortar com força; para cravá-la no chão da miséria; para explodir o bloqueio desse time que nem sabe olhar no rosto do adversário e faz tudo pelas costas, por trás dos muros. A gente ia gritar seu nome da arquibancada. E quando você tivesse uma filha, como eu tenho, ela iria para uma escola pública onde aprenderia a ler, a jogar basquete, a fazer amigos, a se desviar dos perigos. E a escola dela ia ter dor e alegria, como todas. Aulas boas, outras chatas. Mas seria uma escola onde a gente cresce, não onde a gente morre. Mas a gente é tão covarde, Duda…
E se ela estudasse com minha neta? Já pensou? A gente poderia mesmo se conhecer, Duda. Você me agradeceria pelo aviso que tentei lhe dar, por ter insistido para não que não fosse à escola naquela sexta-feira. Mas me explicaria que, infelizmente, ele chegou tarde; que quando você o ouviu, já tinha ido. Para sempre. E eu me desculparia porque nossa voz tem chegado a vocês sempre tarde demais, sempre no dia seguinte à tragédia. E principalmente porque depois do atraso a gente se cala. Finge que nada aconteceu até que venha a ser, de novo, tarde demais.
Sabe, Duda, eu queria lhe prometer que a escola do tempo que seria de sua filha, se este tempo ainda fosse seu, seria diferente. Ela ainda teria carteiras, lousas, cadernos… essas coisas de escola. Mas seria um cantinho seguro, onde ela pudesse crescer. E os professores… bom, você sabe, os professores às vezes são meio chatos mesmo, mas eles pelo menos iriam ouvir sua filha com respeito, explicar as coisas com paciência e se interessar sinceramente pelo seu destino. Queria lhe prometer pelo menos isso. Nem é muito, Duda. Mas talvez seja tarde demais e eu já não tenha mais tempo para poder cumprir sequer essa promessa tão simples.
Você nos perdoa, Duda? Ou será que já é tarde demais?

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