NOTÍCIA

Edição 233

Educação deve despertar consciência ética

Em tempos de polarizações, reflexão pode ajudar estudantes e sociedade a irem além de normas e condicionamentos

Publicado em 17/10/2016

por Rubem Barros

Ética

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Num cenário como o atual, em que o espaço público se apresenta literalmente cindido, seja pela crise política ou pela revolução dos costumes, parece quase criminoso o indivíduo que não expressa opinião categórica sobre os temas de grande ebulição social. Ou se é contra ou a favor, qualquer ponderação que não considere essas duas possibilidades é vista como tergiversação que esconde posição oposta à do interlocutor.
Ainda que este fenômeno da radicalização não seja exclusivamente brasileiro, pois está presente em diferentes países mundo afora, dialoga fortemente com algumas grandes questões nacionais, entre elas a crença de que tudo aquilo que se vê como torto ou desajustado é passível de resolução pela tinta legislativa. Vício este que sempre deságua na educação. Temos problemas de trânsito? Por que não criar uma disciplina de educação no trânsito? As famílias têm dificuldade de estruturar-se economicamente? Crie-se a educação financeira.
Mais novo e barulhento sinal desse olhar foi a proposta batizada como “Escola sem Partido”, lei que vedaria aos professores o direito de se posicionarem ante temas políticos ( para evitar a doutrinação ideológica) ou sobre religião e comportamento (para não afrontar os desígnios da família). Já bastante discutida pelos mais diversos veículos de comunicação, vale registrar que a proposta busca trazer para o universo escolar um regramento que parece ser de todo contrário à missão que a escola moderna, alicerçada na visão republicana de estender o exercício esclarecido da cidadania a todos, tem como desafio. Ou mesmo que a educação, em senso mais geral, tal como vista pela filosofia clássica, deveria visar ao formar cidadãos para que buscassem a excelência moral, como formula Aristóteles (384-322 a.C.) na sua Ética a Nicômaco.
Escola e sociedade, no entanto, ao falar de ética – e o tema está muito em voga ultimamente – se têm restringido a uma visão sempre normativa, restritiva, bivalente. Se é verdade que em muitos casos essa definição clara de fronteiras deve existir, também é fato que ela está muito mais ligada à lei, à imposição que vem de fora, do que a decisões tomadas pela consciência do indivíduo, ao seu julgamento decorrente do cruzamento de seus valores com o que uma determinada situação exige. Quando as fronteiras delimitadas são claras e aceitas, não há problemas. Porém, quando situações de contingência, não previstas pelas leis ou reguladas por leis que se tornaram anacrônicas, exigem reflexão, a questão torna-se problemática.
No atual panorama da educação brasileira, em especial no ensino médio (mas também no fundamental 2), etapas em que essas questões mais afloram, a escola enfrenta enormes desafios para lidar com temas sobre os quais as certezas de ontem derrapam: indisciplina, autoridade, respeito nas relações, religião, sexualidade, diversidade, além de outro tema diretamente ligado às possibilidades de maior consciência ética: uma flagrante desvalia do conhecimento.
Oito anos depois do retorno oficial da filosofia ao currículo escolar do ensino médio – por ironia do destino, por meio de lei – a disciplina, principal canal para reflexão sobre ética, tem esbarrado tanto na falta de cultura escolar após anos de abstinência, como também num ambiente pouco receptivo a seu olhar sobre o mundo.
Para o ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro, professor de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo, o Brasil padece de um déficit ético muito grande. “E não apenas no sentido trivial de que as pessoas são muito egoístas e violam a lei para tirar vantagens pessoais. Temos esse déficit porque as pessoas não têm noção do que é a escolha ética”, diz.
Há uma visão convencional, diz Janine, que atribui à ética um peso normativo, “uma ética do não”, numa linha muito ligada aos mandamentos cristãos. “Entendo que a ética é “sim”. Temos uma obrigação ética de melhorar o mundo. Essa obrigação exige conhecimento. Ninguém pode ser ético se não se interessar em conhecer melhor. E conhecer melhor significa abrir novas fronteiras”, explica.

Ética e vida pública

Para Aristóteles, a ética está ligada à política, à vida pública dos homens livres. Ela significava a busca pela felicidade. Como contextualiza a professora Carlota Boto em texto sobre o assunto (A ética de Aristóteles e a educação), é preciso que façamos um deslocamento temporal para apreender essa ideia. “A felicidade, para ele, era a vida boa; e esta corresponderia à vida digna. Nessa direção, haveria uma subordinação da ética à política.” Ou seja, a ética é um balizador para a ação do homem livre, que carrega responsabilidades públicas. E para agir da melhor forma, é preciso habituar-se a isso.
Por esse motivo, quando fala de “excelência moral” ressalta a importância de chegar a um meio- termo nas ações que se mesclam às emoções, que exigem escolha.
“Pode-se sentir medo, confiança, desejos, cólera, piedade, e, de um modo geral, prazer e sofrimento, demais ou muito pouco, e, em ambos os casos, isto não é bom: mas experimentar estes sentimentos no momento certo, em relação aos objetos certos e às pessoas certas, e de maneira certa, é o meio-termo e o melhor, e isto é característico da excelência”, escreve no livro Ética a Nicômaco. Com isso quer dizer que a moderação, o discernimento, enfim, a prudência é um dos elementos que levam a uma boa conduta ética, uma das cinco formas de virtude intelectual (as outras, além da prudência, são a arte, o conhecimento científico, a intuição intelectual e a sabedoria).
As virtudes éticas, então, são aquelas capazes de nos levar ao exame de questões sem resposta pronta ou universal, das dúvidas do contingente, que exigem a ativação do discernimento analítico. Essas virtudes não nascem da noite para o dia, precisam ser talhadas, seja pelo exemplo de outros – os professores, por exemplo – seja pelo árduo exercício de expor-se à dúvida, ao risco. Por isso, Janine conclui que se alguém age certo apenas por obediência, está apenas cumprindo a lei, não necessariamente sendo ético.
“Se queremos formar sujeitos éticos, autônomos, que possam tomar decisões, e tudo isso está junto, temos de ter pessoas que façam suas escolhas e corram riscos”, conclui.

Contrastes

Dos ideais clássicos ao Brasil de hoje há, obviamente, uma abissal diferença. Ou melhor, diferenças, pois as realidades do país são muito diversas. Se nas escolas privadas de alto padrão há exemplos que privilegiam esse tipo de formação, devotando tempo e estrutura para isso, em muitas outras, privadas ou públicas, a realidade é muito variada.
Um dos principais problemas apontados por professores da educação básica e formadores de docentes é a falta de tempo para um trabalho mais estruturado, que não envolva apenas as aulas de filosofia, mas a escola como um todo. As responsabilidades burocráticas da escola e de professores, a demanda cada vez mais forte por resultados em avaliações de larga escala, entre outros motivos, dificultam trabalhos nessa direção.
“A escola é uma instituição disciplinar, com tudo predeterminado. A educação que se dá é moralizante, com castigo, punição, medalha, prêmio. Estamos formando apenas para o mundo do trabalho, não com esse sentido da Paideia grega, de desenvolver o cidadão em todas as suas possibilidades. Isso não existe na escola de hoje”, diz Renata Lima Aspis, professora de filosofia da educação da Faculdade de Educação da UFMG.
Ex-professora de filosofia no ensino médio em colégios particulares paulistas, Renata hoje coordena um grupo de estudos ligado à rede estadual mineira. “Os professores ficam desesperados para dar conta das determinações das políticas públicas. A ideia de formação que se pratica é a que visa cumprir essas políticas, é a que é possível fazer. Uma reflexão mais aprofundada sobre o que é formação é algo muito ausente”, relata.
Para o colunista da revista Educação Gabriel Perissé, doutor em filosofia da educação, palestrante e escritor, o ensino de filosofia e ética padece tanto dessa formação incompleta como da falta de nortes claros aos docentes. Disso decorre, diz ele, a demanda por receitas prontas de ensino, manuais. Ou, no caso daqueles mais bem formados, o uso de um repertório definido pelo próprio professor, o que muitas vezes colide com a escola ou com a comunidade.
“Devemos pensar o que houve desde a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que traziam a ética como um tema transversal. Mas quem forma os professores e lhes dá autoridade para formar os alunos?”, questiona. Segundo ele, o pecado do documento é dizer “coisas bonitas’, mas não sinalizar como alcançá-las. “A linguagem é o campo de jogo fundamental da ética. [O poeta e ensaísta mexicano] Octávio Paz dizia que quando uma sociedade começa a corromper-se, a primeira coisa que se perde é a linguagem, palavras perdem seu sentido original”, diz Perissé, para sublinhar o desgaste do significado de ética, termo tão utilizado e tão maltratado.

Vida prática

No exercício da docência, os professores têm de se virar e achar uma forma de criar um canal de diálogo com os alunos. Rafael Pereira, formado pela Universidade de São Paulo e professor de filosofia há 10 anos, levou para a escola inquietações ligadas à sua formação na universidade, como moralidade e disciplina, as quais queria ver como funcionavam na prática, para confrontá-las com referenciais teóricos como o clássico Vigiar e punir, do francês Michel Foucault (1926-1984). Foi dar aulas em uma escola pública no Embu, na Grande São Paulo.
“Fui surpreendido, pois as questões prementes eram de outra ordem, de contradisciplina, de escassez material. Quando me dei conta, não conseguia colocar aquilo dentro do modelo teórico que havia me encantado na universidade”, relembra ele, hoje professor do Instituto Federal de Educação de São Paulo.
Nesse início, Pereira tentou dar aulas de filosofia política, pois achava que devia conscientizar seus alunos politicamente, para que exercitassem a cidadania. A escolha, porém, mostrou-se um retumbante fracasso, provocando desinteresse coletivo. Ao mudar a estratégia, achou um foco com que conseguiu fisgá-los. “Experimentei a lógica e seus desafios, e fui sentindo que isso os motivava bastante. Acabei sendo levado a estudar mais lógica, um campo da filosofia que antes não me interessava tanto”, conta.
Essa percepção mais aguda ou sintonia fina revelada por Pereira ainda no início da vida docente é um dos grandes requisitos dos bons professores. E a impossibilidade de readequar rumos e estratégias de acordo com o contingente, um dos temas centrais da ética, é o que leva a muitas aulas excessivamente burocráticas, presas ao currículo e desconectadas dos termos em que se coloca a interação entre professor e aluno, impedindo a criação de uma relação empática.
As aulas de filosofia são um dos espaços possíveis (não o único), para que a escola se aproxime do aluno e entenda seus desejos e preocupações. Para isso, no entanto, é preciso que haja um canal aberto. “Os alunos se interessam pelos temas. Mas, assim como existe um hiato na família entre o adulto e o adolescente, existe também na escola. Muitas vezes, o que a escola quer discutir não é o que eles querem discutir. Falta capturar o desejo desses estudantes, o que comentam em suas redes sociais. A escola não consegue enxergar isso ou, pior, quando enxerga não consegue respeitar. São pouquíssimos os projetos que partem dos próprios estudantes”, reflete Renata Aspis, da UFMG.
O grande desafio aí passa a ser caminhar nesse terreno movediço, pois há temas indigestos para escolas, famílias e comunidades, o mundo adulto, em resumo. Entre eles, os mais difíceis são a religião, o sexo e as drogas.
Renato Janine Ribeiro, da USP, conta que foi convidado alguns anos atrás para formular uma proposta para trabalhar o tema da ética para a rede de escolas do Serviço Social da Indústria, o Sesi, com mais de 500 unidades Brasil afora. O piloto do projeto deveria rodar na Escola Djalma Pessoa, em Salvador. De início, envolveria os ensinos fundamental 1 e 2 e médio, em três grandes frentes – ética da vida, ética da profissão e ética da cidadania – com diferentes abordagens em cada etapa. No final, o projeto voltou-se apenas ao ensino médio. E, mesmo assim, com um forte temor na hora de falar sobre dois temas: sexo e religião.
“O problema maior foi com a religião. No caso do sexo, preferiram protelar”, lembra Janine Ribeiro, para quem é preciso falar com franqueza das questões que afligem os jovens, caso contrário eles perdem a confiança. Ele lembra que um de seus argumentos com a direção do Sesi para tratar de sexo foi que o silêncio poderia levar a abuso sexual, gravidez indesejada e situações de risco.
“Ou você trata do assunto com franqueza, ou coloca em risco a vida. O mais importante é deixar claro que a própria pessoa deve fazer suas escolhas, que tem de saber aguentar as consequências delas, e não pode ser coagida para fazê-las. Isso é exemplar e a sexualidade coloca isso num nível muito alto. Uma escolha errada pode trazer consequências terríveis, como a menina parar de estudar, ficar grávida, o jovem ficar com Aids”, exemplifica.

Autonomia e apoio

A questão traz à tona um tópico ao qual educadores, escolas e famílias são bastante sensíveis: em que momento a criança ou adolescente está preparada para tomar ela própria suas decisões, e quais decisões? Isso reforça a necessidade de a ética ser uma preocupação não só do professor de filosofia, sem dúvida um interlocutor privilegiado, mas também da instituição como um todo.
“É importante que a ética seja vista como objeto interdisciplinar no contexto escolar, que não fique circunscrita a uma questão filosófica, pois aí vamos encarar como um assunto de especialista. Tem de ser compartilhada por toda a equipe escolar”, defende o professor de filosofia Rafael Pereira.
Muitas escolas encampam a questão de forma diferente, buscando trabalhar com valores ou com orientação educacional individualizada, para ajudar os alunos a resolver seus conflitos interiores.
Sílvia Helena Madeira, formada em geografia e hoje morando em Vassouras, onde é professora substituta numa escola particular, lembra da dificuldade de diálogo entre adolescentes e famílias, frequentemente relatada pelos jovens quando fazia orientação vocacional na Escola Móbile. Voltada à classe média alta paulistana, pode-se dizer que a Móbile é o tipo de escola que visa mobilizar os recursos possíveis para que seus alunos tenham a chamada formação crítica (mais um termo desgastado pelo uso indiscriminado).
“Via, quando fazia orientação, que o aluno não estava dando conta nem dele mesmo, que dirá do contexto. Se sentia oprimido, questionado”, diz, com relação a cobranças de desempenho. “Recebia meninos com angústias familiares, como falta de diálogo com os pais, que não tinham tempo ou não conseguiam escutá-los, com questionamentos e dúvidas quanto à sexualidade não aceita pela família, ou relacionamento problemático com professores, muitas vezes por não se sentirem acolhidos”, resume Sílvia sobre a experiência.
Para a questão da indisciplina, ela sugere algo simples: que algumas regras de convívio sejam construídas e discutidas com os alunos, às vezes a partir de problemas identificados no dia a dia. “Coisas pequenas, como rabiscar a carteira, melhoram quando você começa a conversar sobre elas”, diz.
Formada em letras e professora de língua portuguesa com 30 anos de docência, Marcly Castro está há dois anos exercendo o cargo de orientadora educacional no Colégio Pentágono, também voltado à classe média paulistana. Num contexto em que, segundo ela, sobressaem problemas como bullying e dificuldades de aprendizagem, a escola instituiu processos de mediação. “Nossas condutas saem do campo da punição para trabalhar com valores e reparação. Muitas vezes colocamos alunos mais velhos para mediar os conflitos dos mais novos”, conta. A estratégia visa criar envolvimento coletivo e fazer com que os alunos se sintam capazes de achar soluções para os problemas.
Segundo Marcly, a busca é sempre por levar o aluno a um trabalho reflexivo, feito normalmente a partir da sugestão de leituras e vídeos. Ela cita o caso de um menino judeu, de 12 anos, que falou para o colega: “pelo menos eu não sou negro”, ofensa que motivou os cinco que faziam um trabalho de grupo a assistirem ao filme Gandhi (direção de Richard Attenborough, 1982) e a ler um texto de Martin Luther King. Depois disso, redigiram um texto conjunto com suas conclusões.
A parte reflexiva, diz Marcly, vem sempre via texto. Na questão dos valores, há um direcionamento da escola. “A gente não deixa o aluno pensando sozinho, apontamos o que não é legal. Nesse sentido, é algo normativo”, afirma.

O trabalho com valores

Tradutor do recém-lançado livro O conhecimento dos valores, do espanhol Alfonso López Quintás, Gabriel Perissé lembra que, por ocasião do lançamento da Lei Geral de Organização do Sistema Educativo (Logse), em 1990, na reorganização do sistema após a ditadura franquista, o autor criou uma linha de formação sobre ética para docentes. Na visão de Perissé, ela poderia ser um norteador para as escolas no Brasil, preenchendo a lacuna deixada pelos PCNs, o “como fazer”.
“Quintás propõe uma linha alicerçada no conhecimento dos valores, um método que tem a ver com o lúdico, com a arte. Ao ler um livro ou qualquer obra de arte, a pessoa consegue compreender o drama humano da liberdade, da vertigem. Com A metamorfose, de [Franz] Kafka (1883-1924), por exemplo, em que um membro da família se deprime e não é cuidado por ela, pode-se falar de solidariedade”, diz.
Quintás parte do pressuposto de que os valores são instaurados não no plano das realidades objetivas (as coisas “tangíveis, mensuráveis, pesáveis, delimitáveis, verificáveis por qualquer um”), mas no “entrelaçamento de realidades superobjetivas”, ou âmbitos, em sua expressão. Esses âmbitos são os contextos distintos em que as situações, variáveis, exigem análise sobre o contingente, ou sobre a “riqueza e complexidade próprias de cada objeto de conhecimento”.
Ou, como resume Perissé, “os valores são uma realidade não tangível, ambígua”. “É preciso abordar isso com método, com diálogo, para detectar na vida qual a conduta a seguir. Quando os valores são introjetados, passam a ser forças, virtudes, uma segunda natureza. A ética é transfiguração do sujeito ou não é nada.”
Por esse motivo, mais do que a simples apreensão ou aprendizagem de conteúdos trabalhados ao longo da educação básica – e, por que não?, também no caminho para a docência – são os conteúdos formativos, aqueles que transformam o sujeito, que expandem as possibilidades de cada um. E eles não se resumem à questão ética, mas a tudo aquilo que mobiliza efetivamente o aluno. São eles que levam a um exercício esclarecido da liberdade.
Em resposta à questão “Que é esclarecimento?”, o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) discorre sobre o fato de a grande maioria da sociedade estar relegada a uma condição de “menoridade autoimposta”. O esclarecimento, para ele, é a saída dessa condição decorrente da preguiça e covardia.
“Princípios e fórmulas, estas ferramentas mecânicas de uso racional, ou, antes, de abuso de seus dotes naturais, são os grilhões de uma menoridade permanente. Mesmo aquele que os arrebente não arriscaria mais que um salto sobre o menor dos fossos, pois não está acostumado a semelhante liberdade de movimentação. Por essa razão, há poucos que conseguem, através do aprimoramento do próprio espírito, desprender-se da menoridade e ainda caminhar com segurança”, escreve ele.
Num sonho iluminista, a escola moderna foi concebida para que esses poucos se tornassem muitos, ao menos que o padrão da média subisse para que tivéssemos uma sociedade com novos padrões éticos e morais. Obviamente, o contexto mudou e as variáveis hoje são mais complexas, a começar do espantoso aumento populacional – em 65 anos a população da Terra quase triplicou, passando de 2,5 bilhões em 1950 para 7,2 bilhões hoje em dia.
Porém, formar sujeitos capazes de refletir e analisar sobre realidades parece cada vez mais um valor do qual não podemos abrir mão. Para isso, são imprescindíveis professores que saibam, mais do que tudo, formular as perguntas certas para fazê-los pensar.


Quando é possível…

Se em muitos espaços escolares a filosofia é tratada mais como um empecilho obrigatório do que como uma potente ferramenta de interação com os estudantes, há aqueles que podem ser considerados espaços privilegiados.
É o que acontece na Escola Nossa Senhora das Graças, o Gracinha, na zona oeste paulistana, segundo André Fávero, professor de filosofia da instituição. Aluno de escola pública durante toda sua vida estudantil, Fávero, nascido em Urupês (SP), noroeste do Estado de São Paulo, teve ele próprio de ingressar no seminário para dar vazão aos questionamentos que, adolescente, fazia sobre a vida.
“Essas inquietações encontraram respostas na religião, que era, por assim dizer, a única filosofia que havia à disposição numa pequena cidade do interior paulista”, relembra. Anos depois, estudou filosofia na Universidade de São Paulo. Quando terminou o bacharelado, assumiu as aulas de filosofia no fundamental 2 no colégio Albert Sabin. Desde 2012, está no Gracinha, onde ministra filosofia para todas as séries do ensino médio.
Nas três séries, Fávero traz a ética ao primeiro plano dos cursos. Para despertar a curiosidade dos alunos diz que, em primeiro lugar, é preciso ter bem clara a conjuntura, ou seja, em que escola está e qual o perfil dos alunos. Para despertar a curiosidade dos estudantes sobre o tema, busca ganchos que dialoguem com o cotidiano no qual eles estão imersos.
Para introduzir para as classes de 1º ano, por exemplo, o tema da boa conduta e das motivações éticas, para o qual pretendia utilizar O anel de Giges, texto de A República, de Platão, começou por uma audição da música Quatro vezes você, do grupo de rock Capital Inicial. A letra (O que você faz/Quando ninguém te vê fazendo/Ou o que você queria fazer/Se ninguém pudesse te ver) é o gancho inicial para trabalhar o texto que parte da suposição de que o homem de bem e o injusto, se pudessem fazer o que quisessem, teriam condutas similares.
A música, próxima ao universo dos estudantes, foi a via de entrada para construir a referência no sistema ético de Platão e para pensar a contemporaneidade. “É preciso fazer uma ponte entre o passado e a atualidade, mostrar que há um sentido que atravessa a experiência humana universal”, diz Fávero.
A interdisciplinaridade também tem forte presença nas estratégias do colégio. No final do 1º ano, depois de já ter trabalhado os temas da felicidade e da harmonia, em Aristóteles e Epicuro, o docente promove uma noite de celebração, “um ritual em que os alunos terminam lendo suas máximas sobre a felicidade”. A atividade é feita conjuntamente com as áreas de artes e educação física.
Mas a interdisciplinaridade também passou a ser processual. Este é o segundo ano em que as disciplinas de filosofia e sociologia concebem eixos temáticos comuns, dividindo também procedimentos de estudos e avaliação.
No 3º ano do médio, os alunos têm dois projetos de série envolvendo as duas disciplinas, um sobre identidade e outro sobre alteridade. No primeiro, produzem textos autobiográficos, no segundo, que inclui uma viagem à Amazônia, têm contato com comunidades ribeirinhas e indígenas. Na produção das autobiografias, diz Fávero, conseguem subir um degrau na compreensão de si. Na viagem, do outro.

Autor

Rubem Barros


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